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A conta da natureza

O Globo, Economia, p. 33-34
16 de Set de 2007

A conta da natureza
Efeito do aquecimento global sobre inflação de alimentos preocupa analistas e governos

Gustavo Paul, Patrícia Duarte e Eliane Oliveira

Nos últimos meses, autoridades, analistas, especialistas em clima e em agricultura, além de ambientalistas, começaram a detectar sinais de um ingrediente novo na economia: a influência mais freqüente das variações climáticas nos preços dos alimentos e, por tabela, na inflação mundial. Todos estão alertas para a intensidade com que enchentes e secas, que historicamente acontecem no mundo e alteram as safras, estão ocorrendo. O temor é que esses fenômenos já sejam conseqüência do aquecimento global, que deverá elevar a temperatura no planeta em um grau Celsius nos próximos dez anos, segundo os cientistas.

São vários - e preocupantes - os indícios que apontam nessa direção. Na Austrália, uma seca recorrente há uma década reduz a produção de trigo. Na Argentina, chuvas em excesso inundaram os pastos e tiveram conseqüências para a produção de leite. No ano passado, o Paraná viveu o pior período de estiagem dos últimos 70 anos, e o Rio Grande do Sul teve, em 2004, a maior seca em seis décadas. E os meteorologistas identificam variações anormais nas durações dos fenômenos climáticos El Nino e La Nina, relacionados à temperatura do Oceano Pacífico, que têm impacto no clima de boa parte do planeta.

- Observamos que as temperaturas mínimas em vários pontos do globo subiram mais de um grau (Celsius) nos últimos anos, o que provoca com mais freqüência a ocorrência de fenômenos extremos. Posso creditar a redução da oferta de alimentos também a essa vulnerabilidade do clima - diz o pesquisador Eduardo Assad, chefe-geral da Embrapa Informática Agropecuária.

Trigo subiu 81,4% e a soja, 51,6%
Não à toa, este ano já é considerado emblemático. Enquanto a inflação mundial não deve passar de 4%, os preços internacionais de algumas das principais commodities agrícolas quase dobraram. O trigo, por exemplo, subiu 81,4% em 12 meses. Reflexo da seca na Austrália, que reduziu a produção de 25 milhões para 9,9 milhões de toneladas. O impacto foi sentido em todo o globo, pois os estoques mundiais foram usados para suprir a demanda do produto, base para diversos outros, como pães e massas.

Os preços da soja e de seus derivados também vêm sendo puxados fortemente. No mercado externo, a soja em grão subiu 51,6%, comprometendo outras cadeias, com destaque para carnes (o grão serve de ração animal).

Recente estudo do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês), ligado às Nações Unidas, também alerta que, com a temperatura cada vez mais quente, a produção de grãos será gradativamente reduzida.

Diante desse cenário, os economistas começam a abrir os olhos para a possível influência do aumento da temperatura no planeta sobre os preços dos alimentos. O assunto, avaliam, terá de ser acompanhado de perto. A preocupação central é com as maiores chances de quebras de safra.

Cotações se elevariam, gerando pressão inflacionária. Como resposta, governos poderiam subir juros para segurar a variação de preços, segurando o ritmo de expansão da economia mundial, com impacto no emprego e na renda globais. Sem falar no impacto direto da cesta básica no bolso dos cidadãos.

Alterações no clima sempre aconteceram e vão acontecer. Sempre houve anos ruins e anos bons.

Agora, talvez tenhamos mais anos ruins do que bons - avalia o economistachefe para América Latina do WestLB, Ricardo Amorim.

Especialista da consultoria Tendências, Amaryllis Romano afirma que, apesar das pressões, ainda é cedo para falar em mudança permanente de patamar de preços:
- A produção, de maneira geral, está voltando a crescer. Mas é preciso ficar atento.

Ainda não há estudos conclusivos sobre a relação entre aquecimento e mudanças de clima. Por isso, tenta-se evitar alarmismo.

- Não há consenso sobre isso na comunidade científica, mas esses sinais acabam acendendo uma luz amarela - diz Charles Müller, do Núcleo de Economia do Meio Ambiente da Universidade de Brasília.

- Estamos diante de um problema sério. Não sabemos se há relação direta com o aquecimento global, mas não podemos descartar a possibilidade - corrobora o agrônomo Leonardo Sologuren, sócio da consultoria Céleres.

A preocupação imediata reside na velha lei da oferta e da procura. A inflação mundial de alimentos, apelidada de "agflação" (agriculture inflation, em inglês), tem como principal causa o explosivo aumento do apetite mundial. Como a produção no mundo cresce em ritmo menor do que a demanda, o resultado é que os estoques de alimentos despencaram.

Para o milho, havia, em 2000, estoque suficiente para atender a 32% do consumo esperado, percentual que caiu para 13% este ano. O trigo passou de 36% pra 19%. Com isso, cai a possibilidade de acomodação de preços em caso de escassez.

- O clima será cada vez mais um fator importante na formação de preços. Qualquer problema climático terá influência nos estoques, reduzindo mais a oferta, que já está pequena - reconhece o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes.

A preocupação em se estabelecer o real alcance do problema está se espalhando. No mês passado, começou a ser feito um estudo para determinar que conseqüências o processo de aquecimento global trará para a economia do país. Financiado pela Embaixada Britânica, será tocado pela Unicamp, ao lado do Banco Mundial e da Embrapa.

Apetite da China e aposta no etanol contribuem para puxar o reajuste
Demanda por produtos como o leite cresce o dobro da
expansão da oferta

Gustavo Paul, Patrícia Duarte e Eliane Oliveira

Apesar de o clima surgir como importante causa da inflação de alimentos dos últimos meses, os pontos-chaves da aceleração dos preços ainda são o apetite mundial por comida e os investimentos para estimular o uso do etanol como combustível. O bom momento da economia global, com expansão média de 5% nos últimos anos, levou as populações a comer melhor - mais proteínas, como carne, leite e ovos. É um fenômeno internacional, sobretudo na China, na Índia e nos países menos desenvolvidos e com sérios problemas sociais, especialmente os da África, avaliam os especialistas.

Um caso típico é o do leite, cuja oferta cresce 2% ao ano, mas a demanda aumenta o dobro.
Segundo Rodrigo Alvim, presidente da Comissão de Pecuária de Leite da Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a demanda aquecida vai durar muitos anos e a oferta está limitada.

A Nova Zelândia é a maior exportadora mundial, com 28% do mercado, mas tem condição de elevar em apenas 1% a produção. A Europa, que exporta 35% do que produz, está praticamente impedida de elevar suas vendas externas por questões ambientais.

Produtor brasileiro lucra, mas consumidor paga
O avanço das importações chinesas é uma das razões dessa restrição em relação ao leite, que fez com que o preço internacional dobrasse em um ano. A cotação da tonelada do leite em pó, que ficava na casa de US$ 2 mil, está sendo comercializada a US$ 5,4 mil.

- O México e a Venezuela, por exemplo, estão atrás do produto no mercado internacional e têm dificuldades em encontrá-lo - diz Alvim.

Essa movimentação é boa para os produtores brasileiros, que vivem o melhor momento dos últimos anos. Mas quem pagará a conta são os consumidores. Recentemente, a Nestlé anunciou que, para compensar a alta das commodities, teria de promover um aumento nos preços de seus produtos de, em média, 2,2%.

Já na China, lembra o economista-chefe para América Latina do WestLB, Ricardo Amorim, o principal impacto ocorre em carne suína e derivados, bastante consumidos pela população do país. No México, o problema é sobretudo com o milho e, no Brasil, também há reflexos na carne.
- Está havendo um choque nos preços agrícolas e todo o mundo sente. Com mais gente comendo, e a oferta sofrendo percalços, não dava para ser diferente - afirmou Amorim.

Desvio para cultivo de milho afeta outros produtos
Um fator adicional ao cenário é a demanda mundial por biocombustível. O sucesso do etanol já mexeu nos preços agrícolas. A fonte de reajustes são os Estados Unidos, que utilizam o milho como matéria-prima e onde a demanda pelo grão cresceu 19% este ano. Fernando Homem de Melo, especialista em economia agrária da USP, explica que os americanos diminuíram bastante suas exportações da commodity para atender o mercado interno.

Além disso, houve estímulo para que os produtores de outras culturas optem por plantar milho. Ou seja, diz Melo, a oferta de mais produtos foi afetada, num efeito cascata:
- O mercado de milho puxou um ajuste global grande. O mundo tomou uma decisão política de favorecer o combustível limpo, mas levou ao aumento do preço dos alimentos.

O Brasil poderá se beneficiar desse processo, ampliando sua função de fornecedor de alimento, como soja e milho, para o mercado internacional. Mas, ainda assim, o patamar dos preços internacionais poderá se alterar de forma permanente.

O Globo, 16/09/2007, Economia, p. 33-34

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