VOLTAR

Conta da crise hídrica não pode ser paga pelos povos do Xingu

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/opiniao
Autor: MANTOVANELLI, Thais et al
06 de Ago de 2021

Conta da crise hídrica não pode ser paga pelos povos do Xingu
Decisão judicial devolve monopólio de uso da água à usina de Belo Monte

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)
6.ago.2021

Os povos tradicionais da Bacia do Xingu já estão pagando o preço da maior crise hídrica no Brasil em 91 anos. Em decisão recente, o TRF-1, em Brasília, suspendeu decisão da Justiça de Altamira (PA) que impedia o monopólio do uso da água do rio Xingu pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

A liminar obrigava a concessionária Norte Energia a liberar água suficiente para garantir condições mínimas de vida de povos indígenas, comunidades tradicionais e das centenas de espécies de fauna e flora no trecho de 100 km de rio conhecido como Volta Grande do Xingu.

O desembargador federal e presidente em exercício do TRF-1, Francisco de Assis Betti, derrubou liminarmente a decisão sem discutir o mérito dos argumentos jurídicos. Com isso, autorizou a usina de Belo Monte a desviar a maior parte da água do rio com o argumento de que uma crise hídrica "imprevisível" exige medidas excepcionais.

No entanto, especialistas e organizações da sociedade civil vêm alertando há anos para a iminência da falta de água devido à emergência climática e ao aumento de desmatamento na região. O governo brasileiro, longe de enfrentar as causas estruturais do problema, tem optado pelo negacionismo e autoritarismo.

José Wanderley Marangon, ex-professor da Unifei (Universidade Federal de Itajubá-MG), defende que o planejamento energético não pode continuar considerando apenas as vazões históricas dos rios e deve incorporar as projeções dos modelos climáticos, que simulam cenários futuros de chuva no Brasil.

Também era conhecida, a partir do desenho de engenharia da UHE Belo Monte, a necessidade de estabelecer regras de partilha da vazão do rio entre a hidrelétrica e os territórios indígenas impactados. Essa é a principal condicionante de viabilidade ambiental da usina desde 2010, quando foi emitida a primeira licença ambiental.

Além disso, o aumento significativo do desmatamento na Amazônia e nas nascentes do Rio Xingu -maior ameaça à geração de energia da UHE Belo Monte- sequer é mencionado na decisão do TRF-1.

A bacia hidrográfica do Xingu já teve mais de 21% de sua área de floresta amazônica desmatada, excluída a parte compreendida no cerrado. Entre 2015 e 2020, o aumento foi de 166%. E o primeiro semestre de 2021 apresentou o pior resultado dos últimos três anos, com 92.104 hectares de floresta derrubados.

Embora o desmatamento, num primeiro momento, possa aumentar o escoamento superficial e, com isso, amplie a vazão de um rio durante o período chuvoso, a tendência em seguida é a de reduzir ou interromper o fluxo dos cursos d'água.

As crises hídricas têm causas e responsáveis. É mais do que urgente que as autoridades encarem o problema do desmatamento e da emergência climática como uma ameaça não só aos ecossistemas e aos povos da floresta, mas à própria geração de energia e à economia do país.

A destruição das florestas tem impacto direto no desempenho do agronegócio brasileiro, por exemplo. Recentemente, a JBS, segunda maior empresa de alimentos no mundo, defendeu publicamente a regeneração florestal na Amazônia.

Se o TRF-1 está realmente preocupado com a crise hídrica, deveria antes responsabilizar o Poder Executivo e lembrá-lo da sua tarefa constitucional de zelar pela integridade dos ecossistemas.

Do contrário, essa conta vai ser paga justamente pelos povos tradicionais -paradoxalmente, os responsáveis por garantir que as nossas florestas ainda estejam de pé e que a água continue correndo pelos rios.

André Sawakuchi
Especialista em evolução geológica e mudanças climáticas na Amazônia e sua relação com a biodiversidade (Instituto Geociências da USP)

Juarez Pezzuti
Especialista em ecologia, etnoecologia e manejo de fauna, com ênfase em répteis aquáticos (UFPA)

Camila Ribas
Especialista em biogeografia e evolução da biodiversidade na Amazônia (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia)

Alberto Akama
Especialista em zoologia, com ênfase em sistemática de siluriformes neotropicais e conservação das espécies animais (Museu Paraense Emílio Goeldi)

Eder Mileno Silva De Paula
Especialista em geografia física, hidrogeografia, geoprocessamento e sensoriamento remoto (UFPA)

Cristiane Costa Carneiro
Especialista em ecologia aquática com ênfase em quelônios (Ministério Público Federal)

Tânia Stolze Lima
Antropóloga especialista em etnologia indígena e povos ameríndios (UFF)

Thais Mantovanelli
Antropóloga que monitora os impactos da UHE Belo Monte sobre os povos indígenas da Volta Grande do Xingu UFSCar)

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/08/conta-da-crise-hidrica-na…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.