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Conheça indigenista que rastreia povos isolados na Amazônia

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2023/08
30 de Ago de 2023

Conheça indigenista que rastreia povos isolados na Amazônia
Jair Candor explora áreas intocadas para encontrar evidências de grupos que vivem há gerações sem contato com o mundo externo

Manuela Andreoni Jack Nicas
30.ago.2023 às 10h00
Terra Indígena Piripkura (MT) | The New York Times

Jair Candor estava procurando na floresta amazônica havia três dias quando ouviu as vozes. Depois de uma década documentando o rastro deles, aquele dia em 2011 foi o primeiro em que os viu: uma família de nove pessoas caminhando na floresta, todos nus, com os filhos nas costas e flechas mais altas que ele.
Durante anos as madeireiras haviam dito que esse grupo indígena isolado era um mito. Mas agora Candor, escondido atrás de árvores, estava gravando o primeiro vídeo jamais feito deles.
Quando terminou, com lágrimas nos olhos, ele xingou os madeireiros, contou seu colega Claiton Gabriel Silva, e os desafiou a dizer que o povo não existia.
Candor, 63 anos, talvez seja o mais hábil rastreador de povos isolados do Brasil, membro de um grupo cada vez menor de pessoas contratadas pelo governo brasileiro para explorar algumas das áreas mais intocadas da Amazônia para encontrar evidências de grupos que vivem há gerações sem contato com o mundo externo e praticamente sem ser vistos.
O objetivo não é contatá-los, mas protegê-los. A lei exige provas da existência de grupos isolados antes que sua terra possa ser demarcada, proibindo o ingresso de forasteiros. Candor procura localizar os grupos sem ser visto, para que eles possam permanecer isolados e para ele próprio se proteger.
"Minha curiosidade é grande", disse Candor. "Mas o respeito pelos direitos deles é maior."
Ao longo de 35 anos ele já liderou centenas de expedições na floresta, contraiu malária dezenas de vezes, por sua própria estimativa, e sobreviveu a dois atentados contra sua vida, em um dos quais um indígena atirou flechas contra a equipe de Candor, enquanto no outro um grupo de madeireiros atacou o posto da Funai onde ele trabalhava.
Candor descobriu evidências da existência de quatro pequenas civilizações, cada uma das quais, creem pesquisadores, possui sua língua, cultura e história próprias. Uma delas é o menor povo brasileiro da qual se tem conhecimento, os piripkuras, com três sobreviventes conhecidos.
O trabalho de Candor levou à criação de proteções legais que cobrem uma área de 18 mil km2, uma superfície maior que a de Porto Rico. Por isso mesmo, ele é uma das figuras mais eficazes que trabalham pela preservação da Amazônia hoje.
Essas proteções têm importância crítica para a floresta no momento em que ela se aproxima rapidamente do ponto de inflexão que pode converter grandes áreas de floresta em savana, levando a Amazônia a emitir mais gases do que hoje absorve.
O trabalho de Candor também lhe valeu muitos inimigos. Uma manhã de junho, enquanto percorria uma estrada esburacada de terra penetrando na floresta, o indigenista falou sobre políticos que pressionaram seus chefes para que o demitissem, fazendeiros que tentaram suborná-lo e madeireiros que contrataram assassinos para tentar matá-lo. Hoje Candor anda com uma pistola de 9 mm enfiada em seu colete à prova de balas.
"Não estou com medo", ele disse, sorrindo. "O que me preocupa são as cobras."
O vídeo que ele filmou em 2011 foi dos kawahivas do Rio Pardo, um dos 115 grupos que se acredita que vivam isolados no Brasil -mais que em qualquer outro país. A ausência de provas significa que um terço desses grupos continua sem proteção. Por isso mesmo, mateiros peritos como Candor, que aprenderam a localizar moradores da floresta que não querem ser encontrados, são cruciais para a sobrevivência deles.
A família de Candor se mudou para a Amazônia quando ele tinha 6 anos. Eram os anos 1960, e os pais dele atenderam a um chamado do regime militar por colonos para ocupar a floresta. Eles ajudariam a domar o "inferno verde", como o governo chamava, e ganhariam um lote de terra como recompensa.
Três anos mais tarde, a mãe de Candor morreu. Sua família se espalhou. Ele acabou sendo adotado por um grupo de seringueiros. Deixou de ir à escola e começou a aprender a sobreviver na mata.
Em 1988 o governo militar havia caído e o Brasil procurava fazer aprovar uma nova Constituição que reconhecesse os direitos dos povos indígenas sobre suas terras. Para protegê-las, o governo precisava de novos especialistas na floresta. Candor, então com 28 anos, ganhara fama por trabalhar duro e fazer amizade com indígenas na floresta. O governo o contratou.
Na primeira expedição que liderou sozinho, em 1989, Candor encontrou dois membros dos piripkuras que o governo vinha procurando havia quatro anos. Outro povo lhes dera esse nome, que significa borboleta, devido à rapidez com que se deslocavam pela floresta, como se estivessem esvoaçando. Candor observou que eles precisavam de muito pouco para sobreviver: fogo, duas redes, um facão de lâmina cega.
"Nós precisamos de casa, precisamos de carro, precisamos de um monte de porcaria", ele comentou. "Aí você encontra aqueles dois homens vivendo felizes sem nada -sem roupa, sem supermercado, sem conta de água ou luz."
Ele próprio também começou a se desapegar das coisas. Em 1992, uma expedição levou mais tempo que o previsto, e ele faltou a seu próprio casamento. A noiva não o quis de volta. Mais tarde ele se casou com uma mulher diferente e teve dois filhos. Mas ainda hoje só volta para casa cerca de oito vezes por ano.
Candor também perdeu o sentimento de estar em segurança. Em 2018 um informante o avisou que um grupo de homens ligados a madeireiros estava vindo para matá-lo.
Ele estava em um posto da Funai na selva. Era longe demais para que as autoridades mandassem ajuda. Mas em vez de fugir, Candor decidiu que ele e sua equipe protegeriam o posto, apesar de seu filho adulto estar ali de visita. Ele entregou armas a seu filho e seus seis colegas. Seu filho recebeu o único colete à prova de balas.
Candor mandou que todos se posicionassem em formação de ponta de flecha, para quem não atirassem um no outro, e que atirassem morro abaixo. "Vi isso em um filme", explicou.
Os nove invasores quebraram o cadeado do portão por volta das 21h. Candor e seus homens ouviram tiros, então responderam com tiros. Um dos invasores foi morto. Os outros fugiram. A investigação posterior não encontrou provas de que os homens ligados às madeireiras estivessem portando armas, mas o líder deles foi preso.
Dois anos mais tarde, em 2020, um dos colegas de Candor foi morto por uma flecha disparada por um membro de um povo que o indigenista vinha observando havia anos. E, no ano passado, Bruno Pereira, especialista em povos isolados de uma geração de indigenistas mais jovens, foi morto juntamente com um jornalista britânico, Dom Phillips, pelo trabalho que fazia tentando proteger a terra que havia sido preservada para grupos de isolados.
Candor conhecia bem os dois indigenistas que morreram e sabe que isso poderia ter acontecido com ele.
Ele pensa que tem apenas mais quatro ou cinco anos antes de se aposentar. Até lá, comentou, vai continuar a arriscar a vida para ajudar os povos indígenas.
"Somos as únicas pessoas que estão lutando por isso", ele disse. "A voz deles aqui fora somos nós."
Tradução de Clara Allain

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