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Confrontos da ciência

O Globo, Prosa & Verso, p. 1-2
Autor: LACEY, Hugh; LARQUÉ, Lionel; FEENBERG, Andrew
07 de Fev de 2009

Confrontos da ciência
Fórum em Belém impulsiona aproximação entre pesquisadores e movimentos sociais

Rachel Bertol

Na semana passada, no simbólico palco da região amazônica, em Belém, no Pará, 50 redes de cientistas ou ligadas à ciência - representando cerca de 250 organizações de todo o mundo - realizaram um encontro inédito, pela sua abrangência e ambição, com movimentos sociais. O primeiro Fórum Mundial Ciência e Democracia, que aconteceu durante dois dias antes do início do Fórum Social Mundial, representa a consolidação de um movimento internacional de cientistas que, embora não seja novo, nunca se deu de forma tão complexa, relacionado a tantas e tão diversas questões.
Foi na França que o movimento começou a germinar, há uns cinco anos. Em grande parte, originado pela insatisfação dos cientistas com as pressões crescentes para obterem resultados rápidos e práticos em suas pesquisas, por parte dos financiadores, como o Estado e sobretudo as grandes corporações.
Era necessário começar a criar um espaço de resistência. Encontraram eco nos movimentos sociais, que, diante da avassaladora presença da tecnociência no cotidiano, sentem cada vez mais necessidade de interpelar os rumos da pesquisa científica em assuntos como células-tronco, aquecimento global, alimentos geneticamente modificados, fontes energéticas e outros.
Um dos organizadores do novo fórum, o francês Lionel Larqué, da ONG Ciências Cidadãs, lembra que, devido à crise global, até os matemáticos têm sido questionados sobre sua responsabilidade no desenvolvimento de ferramentas financeiras consideradas excessivamente opacas e complexas:
- Não se trata de controlar os cientistas, ao contrário, queremos garantir a liberdade da pesquisa.
Mas é preciso discutir as grandes orientações e a destinação das verbas, o que não acontece hoje. É preciso uma legitimidade social.
E o fato de o primeiro fórum ter acontecido na região amazônica não foi visto como coincidência. Espaço onde se entrecruzam embates internacionais, a Amazônia trouxe à tona questões de meio ambiente, biodiversidade e inspirou, a partir da intervenção de brasileiros, um peculiar debate sobre o valor científico dos saberes tradicionais e coletivos dos povos da região, em geral indígenas. Debate que embute uma crítica à maneira como se exerce a pesquisa. Até por isso a presença dos saberes coletivos mostrou-se atualíssima: quando discutem com a sociedade o valor de suas pesquisas, os cientistas (e suas instituições) saem da redoma do conhecimento especializado e assumem o risco de se verem desmistificados - a ponto de muitos terem a carreira estagnada. Mas assumir tal risco, analisam participantes do Fórum, pode ser necessário para no futuro preservar a autonomia.

Conhecimento como um bem comum
Questões sobre ciência e tecnologia são parte dos problemas e das soluções para crises, lembram participantes do Fórum

No texto do Fórum Mundial de Ciência e Democracia destaca-se, em primeiro plano, a importância do conhecimento científico como bem comum da Humanidade. Os signatários, de 18 países, defendem maior cooperação entre cientistas no mundo, em sintonia com as propostas apresentadas com ênfase por representantes de Índia e Brasil - países que, com a França, tiveram presença marcante no evento. Segundo os organizadores, um dos desafios para o próxima edição, em janeiro de 2011, será aumentar a presença dos EUA.
- A questão dos commons foi um dos tópicos mais debatidos. A internet permite uma difusão nunca vista do conhecimento, mas precisamos encontrar um equilíbrio entre remuneração e cooperação para garantir o conhecimento como um bem comum. Estávamos preocupados em buscar alternativas, não apenas em denunciar - afirmou a francesa Valérie Peugeot, outra organizadora do fórum de ciência.
O documento reitera a necessidade de intensificar a ação da rede internacional. E destaca: "Questões relativas a ciência e tecnologia formam parte importante da crise econômica, climática/ ecológica e democrática que o mundo enfrenta hoje assim como da crise relacionada ao uso e à produção de energia, segurança alimentar, guerra e militarismo. É necessário aprofundar nossa compreensão de como questões relacionadas a ciência e tecnologia são parte dos problemas e também parte das soluções para essas crises".
Segundo Ian Illuminato, da ONG Friends of the Earth, de Washington, a novidade do novo fórum foi trazer para o debate cientistas estabelecidos:
- Esses indivíduos reconhecem sua posição de poder e escolheram de forma consciente utilizála para o bem comum. Estamos vivendo um período histórico em que haverá mudanças radicais, gostemos ou não disso. Mas é nossa escolha guiar essas mudanças para nosso benefício ou para a destruição. E este poder não está apenas na mão de cientistas.
Nesta página, outros participantes do fórum destacam tópicos do debate. O australiano Hugh Lacey, filósofo da ciência, é professor emérito do Swarthmore College, nos EUA, já deu aulas na USP e integra a Associação Scientiae Studia, de São Paulo. Lionel Larqué faz parte da ONG Ciências Cidadãs e tem formação em física, história da arte e ciências políticas. Em artigo, Priscila Falhauber analisa desafios relativos à Amazônia e o filósofo Andrew Feenberg fala dos novos desafios.

Hugh Lacey: "Defendo o que chamo de 're-institucionalização' da ciência. O ponto mais radical é adotar uma concepção da ciência com metodologias hoje marginalizadas. As inovações tecnocientíficas se dão de forma descontextualizada, sem levar em conta fenômenos sociais, ecológicos ou relativos à saúde das pessoas. Mas quando se quer entender riscos, deve-se levar em conta esses contextos, que envolvem até questões de direitos humanos.

A discussão democrática será um dos tópicos maiores nas discussões científicas nos próximos anos.

Se há crescente pressão por parte dos financiadores, é importante criar espaço para pressão no sentido contrário. Sempre haverá tensões. Mas a ciência deve respeitar sua tradição, mantendo-se ligada a valores universais da Humanidade, sem servir a interesses especiais. Do contrário, não terá mais sua autoridade reconhecida pela sociedade."

Lionel Larqué: "Há dez anos, a pressão dos mercados ainda não era tão forte. Os cientistas tinham uma vida boa, mesmo que na Índia ou no Brasil houvesse uma visão bem mais cética. Essa situação vem mudando. A pressão dos mercados por novos produtos está deixando os cientistas entre a cruz e a espada. Sua cultura está totalmente em contradição com as demandas imediatistas e utilitárias do mercado. E enfrentamos graves crises, como no meio ambiente ou na economia.

Mas o importante hoje é que haja discussão sobre as grandes orientações da pesquisa. Para que tenha legitimidade. Na França, por exemplo, a maioria do orçamento na agricultura é voltada para melhoria dos processos químicos no solo, e sobre isso não há discussão. Ora, muita gente reivindica mais pesquisa em agricultura biológica. Queremos mais liberdade para os cientistas, mas a pesquisa precisa de legitimidade. Se não discutirmos determinadas questões, vamos gerar problemas que a Humanidade não conseguirá mais resolver."

Corpo a Corpo
Ainda há muita resistência"

Andrew Feenberg

O canadense Andrew Feenberg, professor da Simon Fraser University e um dos palestrantes do Fórum, fala sobre a importância do encontro.

O que é novo num encontro como este?

Andrew Feenberg: Talvez a maior inovação seja o fato de acontecer em conjunção com o Fórum Social Mundial. Problemas envolvendo ciência e tecnologia perpassam tudo mais no FSM.
Sindicatos precisam lidar com mudanças tecnológicas que eliminam empregos. Povos da região enfrentam o desenvolvimento tecnológico destrutivo.
Questões de propriedade intelectual são afetadas pela internet. Problemas de meio ambiente são causados por tecnologia poluente. Os cientistas se preocupam com o fato de que a intervenção da sociedade vai lhes trazer dificuldades. Ainda há muita resistência. Mas as universidades estão sendo cada vez mais influenciadas pelos negócios e pelo governo. Os cientistas sentem que perdem autonomia e liberdade. Sua reação pode crescer na medida em que o neoliberalismo for desacreditado pela crise e os problemas de mudança climática piorarem.

Pode resumir sua palestra no fórum?

Feenberg: Quando falamos em democratização da ciência, queremos dizer que cientistas e o público estejam engajados em trocas livres e abertas sobre problemas relevantes, como a contaminação por lixo tóxico ou os experimentos médicos em seres humanos. Quando falamos em democratização da tecnologia, queremos dizer que os governos democráticos estendam sua regulação da indústria para proteger o interesse público. Ninguém quer governos ditando a "verdade" para cientistas, e só a comunicação entre homens de negócio e o público não será suficiente para prevenir a poluição e outros problemas. Mas ciência e tecnologia não devem ser vistas com o mesmo valor. A ciência busca a verdade e a tecnologia produz bens úteis.
Há muitas estratégias e é importante não haver confusão entre elas.

O Globo, 07/02/2009, Prosa & Verso, p. 1-2

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