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Conflitos de terra revelam um País que não saiu do século 19

OESP, Nacional, p. A4, A6
22 de Jan de 2006

Conflitos de terra revelam um País que não saiu do século 19
Há disputas de todo tipo: com sem-terra, atingidos por barragens, comunidades quilombolas, índios e madeireiros

Roldão Arruda

A retomada da polêmica sobre o tamanho das terras indígenas nos últimos dias deixou à mostra uma vez mais o saco sem fundo dos conflitos fundiários no território nacional. Segundo especialistas ouvidos pelo Estado, o Brasil avança pelo século 21 com uma agenda de problemas, conflitos e demandas na zona rural que outros países já resolveram no século 19.
Só na região amazônica brasileira contam-se 111 milhões de hectares de terras federais que até hoje não foram destinadas a ninguém. E não há Estado em que não exista discussão sobre a legitimidade dos títulos agrários nem sem conflitos. Nos escritórios do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em Brasília, o mapa de propriedades cadastradas, montado a partir de declarações espontâneas dos ruralistas, não bate com o mapa rural do País - que mostra uma diferença, para mais, de 27,1%, que pode ser terra ocupada de forma ilegal.
De acordo com um dos principais interessados na solução desse tipo de problema, o presidente do Incra, Rolf Hackbart, o Brasil padece de uma secular insegurança na área de títulos agrários, com legislações e direitos sobrepostos. Essa insegurança está sendo agravada por uma crescente demanda pela terra. Ela é empurrada, de um lado, por grupos cada vez mais bem organizados de sem-terra, quilombolas, atingidos por barragens, posseiros. De outro lado aparecem grupos de empresários modernos e ágeis, interessados em expandir as fronteiras agrícolas para culturas de exportação.
No meio, podem ser localizados proprietários rurais tradicionais que não querem deixar as terras que suas famílias ocupam há três ou quatro gerações, para cedê-las a grupos indígenas ou quilombolas. Por fim, sobrenadando nesse caldo, irrompem com ousadia grileiros e exploradores de madeira ilegal.
Tensão
Os sinais do permanente estado de tensão estão por toda a parte. Neste momento o Movimento dos Sem-Terra (MST) mantém cerca de 150 mil pessoas acampadas em beira de estrada ou propriedades invadidas, reivindicando terra. Há ainda outras 50 organizações com o mesmo tipo de ação na zona rural. A Ouvidoria Agrária ainda não divulgou os números de 2005, mas sabe-se que em 2004 o número de invasões foi três vezes maior que o de 2002, o último ano do governo FHC. Pode-se adicionar aos sem-terra acampados um conjunto de 60 mil pessoas ligadas ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Espalhadas por 14 Estados e localizadas ao redor de áreas onde estão sendo planejadas ou instaladas hidrelétricas, elas questionam a construção de barragens e o modelo de desenvolvimento industrial do País, mas se caracterizam sobretudo pela exigência de terras e apoio financeiro para se instalarem nelas.
Os grupos indígenas estão envolvidos em disputas fundiárias em 13 Estados. E não param de surgir novos grupos, reivindicando a identificação, demarcação e homologação de terras que teriam sido ocupadas por seus antepassados.
Bagunça
As histórias envolvendo índios freqüentemente ilustram com clareza, para o bem e para o mal, o que é a bagunça fundiária no País. Em quatro Estados - Mato Grosso do Sul, Bahia, Rio Grande do Sul e Santa Catarina - há casos de assentamentos da reforma agrária que, no passado, foram erguidos sobre áreas declaradamente indígenas.
Os quilombolas, moradores de antigas áreas de quilombos, do tempo da escravidão, também aparecem com destaque cada vez maior entre os grupos de pressão. Em 2003, quando Lula chegou ao Planalto, existiam 743 comunidades quilombolas reconhecidas no País. Hoje o número passa de 2.100.
Na região amazônica, empresas que investem na exploração ordenada da floresta vivem sob constante pressão de grupos que questionam a titularidade das terras, além dos ataques dos sem-tora (grupos formados por madeireiros ilegais). De acordo com o sociólogo e administrador de empresas Roberto Waack, presidente da Associação dos Produtores de Madeira Certificada da Amazônia, a insegurança fundiária é um dos principais estímulos à exploração predatória da floresta. "Quando os investidores se retraem, pela falta de segurança quanto à propriedade e pela ausência do Estado, fica aberto o caminho para as madeireiras que agem na ilegalidade."

Sem aldeia, sem saúde, sem saída
Em Mato Grosso do Sul, guarani-caiovás perdem suas terras por decisão judicial e acampam em acostamento

Vannildo Mendes
Enviado especial
Antônio João

Todos os dias, o índio Aquino da Silva Gonçalo mira o horizonte acima de campos devastados e caminhões de soja que levantam poeira e dirige preces a ñande ru marangatu (nosso pai sagrado, em guarani). Há mais de um mês, o índio, sua mulher e sete filhos repetem a rotina de espera, medo e humilhações ao lado de 700 companheiros da etnia guarani-caiová despejados de suas terras por decisão da Justiça em 15 de dezembro.
Vítima da política indígena, Aquino não tem mais aldeia e ocupa um barraco do acampamento à margem da Rodovia MS-384, que liga Bela Vista a Antônio João, a 400 quilômetros de Campo Grande (MS). O cenário é muito parecido ao de um acampamento do Movimento dos Sem-Terra (MST).
Há crianças esquálidas, com doenças respiratórias provocadas pela constante inalação de poeira. O nome da cidade onde fica o acampamento, a 75 quilômetros de Ponta Porã, é uma homenagem ao herói da Guerra do Paraguai, no século 19, o tenente Antônio João.
Depois da saída da aldeia, o índio Aquino perdeu casa, plantações e criações. "Tudo que quero é retornar para minhas terras e viver com minha família. Não quero vingança", disse.
Cercados por jagunços e expostos a todo tipo de risco à margem da rodovia, 200 famílias caiovás do acampamento são protagonistas do maior conflito de terras indígenas dos últimos anos no País. O contestado documento "Inventário de uma Infâmia", divulgado dias atrás pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), diz que o número de índios assassinados no País saltou de 7 casos, em 2002, para 38 no ano passado.
Só nos três primeiros anos do governo Lula, conforme o documento, ocorreram 106 mortes violentas, quase o dobro das 58 mortes registradas em todo o segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ainda conforme o levantamento, outros 136 índios morreram em 2005 por falta de atendimento médico, fome e desleixo do poder público.
As estatísticas incluem a morte de 86 crianças. Desse total, 32 crianças indígenas morreram em Mato Grosso do Sul. O número de suicídios, segundo o levantamento, subiu de 18 em 2004 para 29 em 2005, quase todos relacionados à desagregação cultural, resultado do interminável conflito de terras.
Os guarani-caiovás somam uma população de 12 mil índios, distribuídos em mais de 30 aldeias assentadas em diminutas reservas em volta das cidades do sul de Mato Grosso do Sul.
Para o Cimi, o governo Lula decepciona em todos os quesitos nessa área e ostenta a marca de ser o que menos demarcou terras indígenas nos últimos 40 anos. Desde o governo Figueiredo (1979-1985), eram demarcadas em média 14 áreas indígenas por ano. A média caiu para seis áreas no governo atual.
Vargas
A situação na região em que hoje é Mato Grosso do Sul começou a mudar no governo Vargas, quando se iniciou gigantesco processo de colonização agrícola sem levar em conta que as terras tinham dono, os índios. À luz da Constituição de 1988, eles passaram a exigir direitos.
Em outubro de 2004, na pressa de resolver o conflito e baseado em laudo antropológico questionável, o governo Lula demarcou 9,3 mil hectares da reserva onde Aquino vivia e menos de seis meses depois, indiferente ao clima conflituoso, promoveu a homologação. Os índios se apressaram em ocupar a terra, mas em novembro de 2005 o Supremo Tribunal Federal deu liminar em favor dos fazendeiros que detêm títulos de propriedade da área há mais de 50 anos. E criou-se a confusão.

Benefícios atraem paraguaios

A possibilidade de ter terra e a expansão de benefícios - como Bolsa-Família - atraem para Mato Grosso do Sul índios do Paraguai. Embora de país diferente, são da mesma etnia guarani-caiová, têm relação de parentesco e passaram a migrar em proporção que pressiona o serviço público brasileiro e preocupa a Funai.
É o caso do paraguaio Felipe Gonçalves, que migrou recentemente com a mulher, seis filhos e os sogros para o lado brasileiro. Instalados precariamente na aldeia de Dourados, eles se inscreveram no programa de habitação indígena e sobrevivem com cesta básica do governo e R$ 90 do Bolsa-Família. Em portunhol mesclado ao guarani, Felipe diz: "La vida non estava buena por lá."
Aqui, um comitê gestor se instalou em Antônio João na semana passada e vai coordenar as ações de vários ministérios e órgãos como Funasa, Funai, além do governo estadual, a prefeitura e ONGs. A idéia é pôr ordem nas ações públicas existentes.

No Pará, em 3 anos soja leva 80 mil hectares de floresta

Carlos Mendes

Em menos de três anos, 80 mil hectares de florestas no oeste do Pará deram lugar a plantações de soja, que tiveram produção superior a 4 milhões de sacas e faturamento de R$ 300 milhões, duas vezes o orçamento de Santarém. O custo desse progresso, porém, é contestado por movimentos sociais e indigesto para pequenas comunidades da região que há décadas sobrevivem da pesca e da roça no interior da floresta. E as terras, em sua maioria, pertencem à União e ao Estado do Pará.
Entidades sociais apontam uma disputa entre plantadores de soja de Mato Grosso e madeireiros de Paragominas, que acusam de devastar florestas do leste do Pará, por uma extensa área do planalto santareno, no oeste do Estado. Dizem que 500 famílias de pequenos agricultores já foram expulsas nos últimos dois anos por pistoleiros.
Os grileiros, segundo ativistas, agem como se fossem donos da terra. Fecham estradas e constroem guaritas. "A impunidade é total, a floresta está sendo destruída, posseiros tradicionais são retirados à força, mas só os movimentos sociais organizados e sindicatos de trabalhadores rurais têm coragem de denunciar o que está ocorrendo no oeste paraense", afirma Eldenilson Monteiro, da Caritas Brasileira, entidade com forte presença no meio rural paraense, ao lado da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Quem resiste às pressões para deixar as terras, segundo as entidades, acaba numa lista de marcados para morrer. A diretora do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém Maria Ivete Bastos já denunciou várias ameaças de morte e, temendo uma emboscada, anda sempre com um grupo de agricultores. A polícia, reclama, não toma nenhuma providência.

Usina no Sul ficou pronta, mas briga está longe do fim

Elder Ogliari

A Hidrelétrica de Barra Grande começou a gerar energia em 1o de novembro, mas não houve festa em Pinhal da Serra, na margem gaúcha do Rio Pelotas, nem em Anita Garibaldi, na margem catarinense. A usina pode estar pronta, mas os conflitos que provocou estão longe de ter solução.
No início da obra, em 2001, a Baesa - Energética Barra Grande, já encontrou o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) mobilizado. Teve escritórios invadidos por agricultores que queriam indenizações. Em março de 2002 acamparam na entrada do canteiro de obras. A desocupação, pela Brigada Militar, deixou 22 feridos. A Baesa se comprometeu a pagar indenizações ou dar novas terras para 1.286 famílias. Em 2004, o inventário florestal da Baesa para a autorização do corte de árvores foi contestado. A Rede de ONGs da Mata Atlântica acusou o processo de concessão da usina de fraudulento.
De outubro a dezembro, agricultores e ambientalistas foram à Justiça, fizeram bloqueios e impediram o início da retirada da floresta. Um operário foi morto. No fim do ano, a empresa fez acordos com o Ministério Público, ambientalistas e agricultores, mas não solucionou o problema.
Coordenador do MAB, Marco Antônio Trierveiler diz que cerca de 200 famílias ainda não tiveram seus direitos reconhecidos. Kathia Vasconcelos Monteiro, do Núcleo Amigos da Terra Brasil, reclama da floresta que se perdeu e da demora na aquisição de terras para a unidade de conservação.
Diretor-superintendente da Baesa, Carlos Alberto Bezerra de Miranda considera injustas as críticas do MAB e dos ambientalistas.
Os agricultores defendem o MAB. "Graças às mobilizações conseguimos boas compensações", diz Adelar Sobetil de Carvalho, que recebeu da Baesa um lote. Já Oreste Lemos Cavalheiro, de 73 anos, vive situação diferente. Ele e a mulher, Alaíde, ainda esperam o lote de terra prometido pela Baesa. "Me ofereceram 3 hectares, mas aqui eu tenho 10", conta.

OESP, 22/01/2006, Nacional, p. A4, A6

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