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Conflito em reserva vai além da questão indígena

OESP, Política, p. A12-A13
12 de Jan de 2014

Conflito em reserva vai além da questão indígena
Combinação de interesses de garimpeiros, madeireiros e também dos índios transforma em 'barril de pólvora' região com embates no sul do Amazonas

JOSÉ MARIA TOMAZELA , ENVIADO ESPECIAL

HUMAITÁ (AM) - A combinação de garimpos, madeireiras e reservas indígenas com a quase ausência do Estado transformam a região sul do Estado do Amazonas numa área de conflitos. Em 25 de dezembro, revoltada com o desaparecimento de três homens numa área indígena da Transamazônica, uma multidão queimou veículos, barcos e instalações de atendimento ao índio em Humaitá, a 675 km de Manaus. Madeireiros se armam no distrito de Santo Antônio do Matupi, vizinho da Terra Indígena Tenharim Marmelos, depois que os índios anunciaram que vão reconstruir pedágios incendiados.
Os indígenas se preparam para reagir caso haja novo ataque. "Estamos lidando com um barril de pólvora", disse o prefeito de Humaitá, Cidenei Lobo do Nascimento (PMDB). Cerca de 600 guerreiros tenharins, parintintins e jiahuis estão prontos para o confronto. "Da outra vez não reagimos para evitar sangue, mas índio não tem medo e, se tiver um ataque, nossa reação vai ficar para a história", afirmou Aurélio Tenharim, na presença do comandante militar da Amazônia, general Eduardo Villas Bôas. Segundo ele, os índios vão se defender com arcos, flechas e tacapes, mas o serviço de inteligência do Exército apurou que eles também têm armas de fogo.
O pedágio é pano de fundo de um explosivo conjunto de interesses. O distrito de Santo Antônio do Matupi, em Manicoré, ao lado da reserva dos tenharins, tem a maior concentração de serrarias do Estado. Além das 36 madeireiras legalizadas, há dezenas clandestinas. A terra indígena guarda imenso depósito natural de madeira nobre. Para o bispo de Humaitá, d. Francisco Merkel, os madeireiros estão no centro de uma campanha contra os índios porque querem a madeira da reserva. "Isso teve peso na revolta, pois muitos aproveitaram a situação dos desaparecidos para colocar à frente interesses econômicos."
Os índios acusam os madeireiros de furtar madeira da reserva. De acordo com o cacique Zelito Tenharim, eles abriram cinco estradas vicinais para entrar na área protegida a partir do km 180 da Transamazônica. "Toda madeira que está saindo do Matupi é da reserva. O Ibama fiscaliza nós (sic), mas não fiscaliza o madeireiro", disse o cacique ao general Villas Bôas.
Madeireiros do distrito integravam o grupo que, após o primeiro conflito, no dia 27 de dezembro, invadiu a reserva e incendiou os postos de pedágio dos índios. O presidente da Associação dos Madeireiros de Matupi, Samuel Martins, repudiou a acusação dos índios e disse que a madeira provém de áreas de manejo florestal.
Fiscalização. O Ibama não dispõe de efetivo e frota para manter uma fiscalização eficiente. A sede do órgão em Humaitá, que guarda pilhas de madeira apreendida, fica sem segurança à noite. Das oito viaturas, cinco estavam em manutenção ou conserto. E dos quatro servidores, apenas um está apto a fiscalizar.
Os minérios também são alvo de disputas. Os índios estão sobre grandes jazidas de cassiterita, mas o que atrai mineradores e garimpeiros são ouro e diamante. Aventureiros já tentaram abrir garimpos no Rio Marmelo, no coração da reserva. Dos seis garimpos em operação no Amazonas, dois estão na região.
Na presença do general Villas Boas, os índios usaram a defesa desse território como argumento para manter o pedágio na Transamazônica. "O pedágio é o único que não dá trabalho para o governo brasileiro. Suspender a cobrança é perigoso, pois os tenharins podem se aliar com os empresários, e aí vai embora madeira e vai ter garimpo. Nós sabemos onde tem ouro e diamante aqui e não queremos fazer isso, mas, na necessidade, pode acontecer. Eu não vou conseguir segurar meu povo", disse o cacique Zelito Tenharim.
A exemplo do que ocorreu com o sudeste do Pará, à derrubada da floresta pelos madeireiros segue a entrada do gado e se acirra a disputa pelo território. Ao longo da Transamazônica e da BR-319, brotam fazendas de gado na terra em que a floresta já foi derrubada. A maioria das áreas é de posse e surgem as primeiras lavouras de soja. A expectativa do asfaltamento da BR-319, que liga Porto Velho a Manaus, atrai levas de forasteiros para a Vila de Realidade, a 100 km ao norte de Humaitá. Entre os recém-chegados está um grupo ligado ao Movimento dos Sem Terra (MST).
Para o general Villas Bôas, é importante a atuação dos órgãos do governo para organizar a expansão e reduzir conflitos. "A região é muito rica e tem oportunidade para todos." O prefeito de Humaitá, em conjunto com os de Apuí e Manicoré, vai pedir ao governo a presença permanente da Força Nacional de Segurança na região.

Morte de Ivan sela destino de Ivã na Funai
Coordenador de fundação foi demitido em meio a confronto iniciado com assassinato de cacique

Lourival Sant'Anna

No dia 29 de novembro, habitantes da Terra Indígena Tenharim Marmelo se reuniram na aldeia Vila Nova para celebrar o encerramento dos trabalhos da primeira brigada indígena de combate ao incêndio florestal, fruto de um convênio com o Ibama. Lá estavam o cacique Ivan Tenharim, da aldeia Kampinhu'hu, assim como os chefes da maioria das 13 aldeias, e seu xará Ivã Bocchini, coordenador da Regional Madeira da Funai.
Quatro dias depois, a morte do cacique desencadearia uma sequência de acontecimentos que culminaria na exoneração do coordenador da Funai, publicada na sexta-feira. A foto feita pelo repórter do Estado (acima), em que os dois aparecem juntos, foi não só talvez a última do cacique, mas também o último instante de uma estabilidade tensa que se romperia em seguida. Até hoje não se sabe do que o cacique morreu. Seus familiares dizem tê-lo visto caindo de sua moto, e sustentam que a morte foi acidental. Entretanto, dias depois, Bocchini publicou no blog da Coordenação Regional do Madeira que o cacique teria sido assaltado e espancado até a morte por homens brancos.
A versão passou despercebida na região, até que o desaparecimento de três brancos, no dia 16, levou à especulação de que eles teriam sido vítimas de vingança pela morte do cacique. O paradeiro de Aldeney Salvador, funcionário da Eletrobrás, do representante comercial Luciano Ferreira e do professor Stef de Souza ainda é desconhecido.
Mas a vinculação entre a versão do coordenador da Funai e os desaparecimentos levou centenas de moradores da vila de Santo Antonio do Matupi, no município de Manicoré, que abrange parte da Terra Indígena, a atacarem as aldeias, desmantelando os odiados postos de pedágio mantidos pelos índios, e levando à fuga de muitos deles.
Fazendeiros e madeireiros do Matupi e também de Apuí, o próximo município ao longo da Transamazônica, queixam-se de que o pedágio, imposto pelos índios em 2007, representa mais uma sobretaxa para os produtores da região, que já enfrentam a estrada de terra e o alto preço da tonelada do calcário usado na correção do solo - que sai por R$ 15 de Cáceres (MT), a 1.800 km, e chega a Apuí por R$ 380. Os índios cobram R$ 70 das carretas, R$ 60 dos caminhões, R$ 20 das caminhonetes, R$ 15 dos carros e R$ 10 das motos - na ida e na volta.
De acordo com fiscais do Ibama, graças ao pedágio, os índios pararam de vender madeira. Em 2011, o Ibama fez uma grande apreensão de madeira ilegal na Terra Indígena. Mas, segundo o cacique Zelito Tenharim, funcionário da Funai, os índios tinham vendido a madeira para "botar pressão" para que o pedágio, considerado ilegal, fosse mantido. "O pedágio nos trouxe qualidade de vida, os índios estão bem nutridos graças a ele", afirmou Zelito. Segundo ele, a receita custeia os estudos de 22 indígenas nas universidades de Humaitá e uma aluna de medicina em Cuba.
O ressentimento é alimentado pelas disputas de terra. Fazendeiros do Matupi disseram ao repórter do Estado que algumas das terras mais férteis da região estão na Tenharim Marmelos. "Estamos lutando para mudar, deixar as melhores terras para a produção e as terras que não produzem para a reserva", disse o pecuarista Maximiano Carreta, que mantém contatos com os governos em Manaus e Brasília. Dois agricultores acenaram, em aprovação.
"Não dá certo", reagiu mais tarde o cacique Domingos Tenharim, da aldeia Vila Nova, a quem o repórter perguntou o que achava dessa ideia. "Essa troca é muito ruim." Segundo o cacique, "não nasce nem pasto" nos campos que os fazendeiros querem deixar para os índios. Domingos disse que os índios plantam mandioca, arroz, feijão, milho, batata, melancia, abacaxi e cana. "Por enquanto, não temos gado, mas pretendemos ter."
Para completar, a aldeia Vila Nova tem eletricidade e conexão de internet por rádio - confortos inexistentes na maioria das fazendas da região. Tudo isso serviu de combustível para a explosão de revolta em pleno Natal.

OESP, 12/01/2014, Política, p. A12-A13

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