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CONEXÃO TUPINAMBÁ

A Tarde
Autor: CAMILLA COSTA E PEDRO FERNANDES
18 de Dez de 2007

Depois do desvio de asfalto esburacado e de uma estradinha de terra, o carro parou em frente à placa que dizia: "Entrada de nãoiacute;ndio só com autorização da liderança". Aquela era a entrada da Aldeia Itapoã, território ocupado há cinco meses por 52 famílias de índios tupinambás, em Olivença, sul da Bahia.

Decidimos conversar com os tupinambás de Olivença depois de descobrir que eles eram colaboradores de um portal indígena na internet.

Por isso não esperávamos o que encontramos lá. Chegamos a comentar que "eles já não deviam ser índios de verdade" porque, hoje em dia, ninguém é. Antes de entrar na retomada [como eles chamam a ocupação], imaginávamos que as casas fossem improvisadas, mas não dava para prever uma configuração tão próxima a uma aldeia mítica. Casas de palha e de taipa se seguiam uma à outra no terreno retangular.

No centro, um grande quiosque de palha e uma fogueira. Crianças nos olhavam curiosas, adultos, desconfiados. Pouco a pouco se aproximavam e contavam suas vidas. Mostravam fotos, livros escritos sobre eles, falavam sobre a colonização, a falta de energia elétrica e atendimento médico, a beleza da vida na aldeia.

No último dia, depois das despedidas e agradecimentos emocionados, ainda não sabíamos o que significa ser índio hoje. Mas já sabemos um pouco do que é ser tupinambá. "Ser tupinambá é ser guerreiro, é ser importante", define a cacique Valdelice Jamopoty, 45.

Novos guerreiros para enfrentar novas guerras

Boné de hip hop, bermuda praieira, pinturas de jenipapo no corpo, alargadores de madeira nas orelhas. É uma mistura curiosa de referências culturais. Mas, depois de meia hora de conversa com Jaborandy Yandê, 24, a impressão de que ele é um surfista tirando onda de índio vai embora. O responsável pela transformação é o discurso contundente e seguro sobre sua identidade e seu povo.

Como um dos jovens líderes indígenas da região, Sosígenes do Amaral e Silva Junior, que escolheu o nome Jaborandy, viaja pelo País, debate com a Fundação Nacional do Índio [Funai], discute a política pedagógica da escola indígena com a Diretoria Regional de Educação e parece conhecer cada um dos parentes distribuídos nas 23 comunidades tupinambás de Olivença. "Não gosto de pedir nada, mas só estamos exigindo o que é nosso por direito".

NO SANGUE - Se o assunto é brigar por direitos , Lorena Gonçalves [ou Iracema Yandê], 23, que trabalha ensinando cultura indígena para as crianças da tribo, não pensa duas vezes. Com quatro filhos, já esteve em três retomadas e viveu três meses na Suíça, participando de encontros para "divulgar a cultura".

Ela podia estar na casa da mãe, na cidade, "com laje e tudo", mas prefere ficar na aldeia. "Minha mãe diz que deve ser o sangue de índio".

Na aldeia, cada um contribui com algo

São barracos de palha seca e lona, e casas de taipa. Algumas ainda estão sendo construídas e só têm a armação de madeira. A retomada de Itapoã vai, aos poucos, sendo ocupada pelos tupinambás de Olivença. O terreno com muito mato ao redor foi expropriado de uma empresa com dívidas com o Banco do Brasil e inclui uma lagoa, lugar preferido da maioria dos moradores.

A lagoa é a nossa primeira parada, onde fazemos os primeiros amigos. Dona Marizete, 48, lavando roupa, conta sua vida em 15 minutos. "Sou feliz demais vivendo aqui". No centro da aldeia, um quiosque abriga as aulas de tupi para crianças e adultos. É lá também que os moradores conversam durante o dia e noite adentro.

A cozinha coletiva serve à maior parte das pessoas, mesmo as que têm fogão em casa. Lorena explica como funciona: "A gente divide tudo, ninguém fica sem". Uma descida leva até a praia, pelo meio do mato. Onças, jaguatiricas e tamanduás-bandeira podem dar o ar da graça. "Tem muito serginho [bicho-preguiça] por aqui também", conta Léo Tupinambá, 23, um dos nossos "guias".

Em volta da fogueira, como se baila na tribo

Antes da noite cair, a fogueira já estava montada no meio da aldeia. Mais que clarear a noite sem luz elétrica e de céu impossivelmente estrelado, o fogo vai iluminar o Poranci, ritual que os tupinambás fazem sempre que têm vontade, num momento de alegria, tristeza, vitória ou celebração da fé em Tupã.

"Eu sempre digo: Gente, vamos brincar, dançar um pouco, pra ver se anima a tristeza", conta Lorena. Mas a vontade de recuperar os costumes também se torna uma obrigação. Jaborandy e Lorena organizam o ritual, convidam todos a vestir suas tangas e até fiscalizam a participação.

As músicas, com versos como "Devolva nossa terra, que essa terra nos pertence / Pois mataram e ensangüentaram os nossos pobres parentes", falam sobre o "ser índio", do jeito que costumamos imaginar.

Mas o respeito à natureza, o trabalho na terra, o orgulho da tribo e a exploração do "homem branco" são cantados em português, poucas vezes em tupi.

Enquanto tiverem fôlego, por uma hora ou até o dia raiar, eles serpenteiam em fila em torno da fogueira no passo marcado pela canção. Quando a música fica mais rápida, as crianças correm para acompanhar e alguns desistem. Os mais velhos são os primeiros a deixar a roda, os mais novos perseveram e os evangélicos ficam só olhando, porque a religião não permite que participem.

O resgate da cultura indígena esbarra em mais esse costume trazido pelo branco.

Tecnologia é aliada das tradições

Nossa conversa com Jaborandy é interrompida pelo toque do seu celular. "Fala, cacique!", ele atende. É engraçado, mas não surpreendente. Afinal, nosso primeiro contato com os tupinambás foi pela internet, pelo site Índios On Line [www.indiosonline.org.br], criado pela ONG Thydewas, em parceria com a Oi Futuro.

Desde 2004, comunidades indígenas de Bahia, Alagoas, Sergipe e Pernambuco trabalham em rede, postando depoimentos, fotos e discussões no portal, que já é um dos maiores do País.

Jaborandy, pra variar, é o responsável pelo ponto de cultura de onde o site é administrado. "Eu nem queria conta com aquilo [o computador], tinha medo de quebrar. Mas hoje muita gente usa a internet por aqui".

Em Itapoã, muitos têm celular e o sinal no meio do mato, em alguns pontos, nem é tão ruim. Mas há controvérsias sobre os benefícios da luz elétrica - quando ela chegar - na aldeia. "Por mim só colocavam nas casas, porque do lado de fora a gente não vai conseguir ver as estrelas", diz Lorena. A televisão [a pilha, é claro], é rara e não é vista com bons olhos. "Tem gente que deixa de vir fazer o Poranci pra ver a novela", reclama a cacique Valdelice. E, por causa dos rádios presentes [poucos], o arrocha é um dos ritmos mais citados entre os preferidos pelos índios.

TRADIÇÃO - Apesar da discussão, a nova geração de tupinambás segue firme no propósito de resgatar, de algum modo, a sua cultura ancestral. Lorena diz que leva adiante o conhecimento que os anciões passaram, já que a geração anterior, dos seus pais, não tem muito interesse nisso.

"Abrir a boca e dizer que é índio é uma coisa. Vestir sua tanga, usar o cocar já é outra", discursa.

Com a ajuda de outras tribos que pertencem ao mesmo tronco lingüístico, como os potiguaras e os tupiniquins, os tupinambás de Olivença vão recuperando antigas canções, pronúncia de palavras em tupi, histórias, rezas e rituais quase perdidos. "É como se uma árvore tivesse sido arrancada, mas agora vejo a raiz brotar novamente e com força", diz a cacique Valdelice Jamopoty Amaral.

"O que nos fortalece é a cultura. Enquanto a gente viver como índio, temos direito a território", Jaborandy Yandê Tupinambá , 24, líder jovem da tribo tupinambá de Olivença [BA].

Tribo ainda não tem território demarcado pela Funai

Indo de carro para outras aldeias, observamos as belas praias de Olivença. Jaborandy ri quando perguntamos a ele o preço de um terreno na região. "Você pode até achar terreno barato. Mas não te aconselho a comprar. Porque um dia você vai perder ele pra gente".

Os Tupinambás de Olivença ocupam uma área de aproximadamente 42 mil km, apesar de não terem seu território legalmente demarcado pela Fundação Nacional do Índio [Funai]. São 27 comunidades, 23 sob a liderança da cacique Valdelice Jamopoty. O primeiro passo para a demarcação de terras é o reconhecimento da identidade indígena de um povo. A dos Tupinambás foi reconhecida pela Funai em 2001. Antropólogos também estudaram a área e encontraram vestígios de antepassados.

De acordo com a Funai, o relatório sobre a delimitação das terras dos Tupinambás foi enviado na semana passada ao Ministério Público Federal. As próximas etapas são os levantamentos fundiário, ambiental e cartográfico, que devem ser desenvolvidos no primeiro semestre de 2008. Depois disso, pode vir a demarcação.

Enquanto a demarcação não vem, os Tupinambás organizam retomadas, como a de Itapoã, para pressionar a Funai. O medo que grandes proprietários têm de perder suas terras amedronta quem luta por isso. "Ouço dizer que meu nome anda em algumas listas por aí", diz Jaborandy. "Tudo que eu posso fazer é mostrar minha cara e botar a boca no mundo".

Viver com os parentes, casar cedo

Não é tão fácil encontrar adolescentes nas comunidades tupinambás. Segundo os moradores, muitos vão morar em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, para trabalhar e estudar.

Os mais velhos, envolvidos em articulações políticas e viagens, ficam pouco na tribo. "A vontade que a gente tinha era sair para estudar e poder voltar depois, para ser alguém em nossa terra", conta Leandro Amaral, 23, filho da cacique Valdelice Jamopoty.

A vida de quem fica na aldeia anda em um ritmo diferente. Carlos, 23, Gisele, 18, Marlene, 15, e Luciana Silva Santos, 12, filhos de Dona Idalina, se espremem em um barraco com duas camas e uma cozinha. Falam pouco, não saem muito de casa. Mas o que parece tédio é só quietude.

Carlos está no 2o ano em uma escola de Olivença e tem vontade de fazer vestibular, ainda não sabe para quê. Ele namora Viviane, 15, há pouco mais de um mês. "O povo aqui paquera um bocado", diz, com um risinho.

Para os quatro irmãos, a melhor parte de morar em uma aldeia é ficar perto dos parentes e da natureza. "As outras pessoas da escola não têm essa liberdade. Eles não sabem como bulir na natureza", diz Carlos. Marconi Santos, 18, que mora na aldeia Mabaça, mais longe da cidade, diz que é difícil arranjar uma namorada entre as índias.

"Tem que ir para a cidade ver as meninas". Ele trabalha oito horas por dia em uma fazenda, tirando folhas de piaçava, ganhando R$ 1 por quilo, e estuda à noite. Quando está em casa, ele diz que não faz nada. "Se ficar pensando demais, fica chato".

CASO DE FAMÍLIA - Gisele, filha de dona Idalina, está grávida. Ela namora Leandro, o filho da cacique, há 5 meses. "A gente vai casar, estou apaixonado", garante Leandro, que já tem duas filhas com uma nãoiacute;ndia. A maternidade precoce é uma constante na tribo. Gisele será mãe mais tarde que boa parte das meninas da aldeia.

"Acho que é instinto de índio mesmo. Existem remédios, mas a gente não liga pra isso", conta Lorena, 23, que já tem quatro filhos. Ela engravidou pela primeira vez aos 13 e os filhos moram com o pai em Olivença.

Perguntamos sobre a camisinha. "E existe isso pra índio?" Jaborandy não tem filhos, nem namorada. Ele diz que as viagens constantes não deixam. "As meninas daqui são danadas, a essa altura eu já seria corno", dispara. "Mas tem as amizades coloridas, né? Na cidade e pelas comunidades".

Se a gente tiver um pedaço, eles vão buscar o resto

Sob a fraca luz de um lampião e de uma fogueira prestes a apagar, fomos apresentados à cacique dos tupinambás de Olivença. No escuro, distinguia-se dela pouco mais que o rosto redondo, as forma robustas e a voz clara e suave em contraste com a firmeza da sua fala. Pela manhã, veríamos suas pinturas feitas com jenipapo nos braços. Pintura para a guerra diária em mesas e gabinetes de "não-indíos".

Maria Valdelice Jamopoty Amaral, 45, é cacique de 22 das 23 comunidades de índios tupinambás na região de Olivença, sul da Bahia, desde 21 de dezembro de 1999. Os índios se reuniram e indicaram dois nomes. O de Valdelice e o de um outro rapaz.

Como a função de cacique exige dedicação integral aos problemas do seu povo, ele disse que não poderia assumir, porque precisava trabalhar.

Assim, Valdelice se tornou a primeira cacique mulher em sua tribo. Ninguém nunca deixou de respeitá-la por isso, embora tenha sido complicado para alguns homens entenderem. Tudo que se faz em relação à tribo, como construir uma casa ou marcar reuniões, tem que passar por seu crivo. Sempre tem alguém dizendo "preciso falar com a cacique".

Antes de assumir o mais alto posto de liderança dentro da sua tribo, Valdelice, que só estudou até a oitava série, dava aulas de alfabetização durante a semana na comunidade de Serra Negra e aos sábados e domingos vendia acarajé. Hoje, sua visão da educação para os índios vai além do aprender a ler e escrever. A idéia é tentar recuperar o idioma e a cultura perdidos. "É preciso ensinar nossas crianças, porque nós, os mais velhos, já não podemos aprender. Mas os políticos só querem implantar o ensino comum na nossa cultura".

Ela acredita que um aprendizado rico da cultura indígena é a base para que, ao sair da aldeia e conquistar o mundo, os jovens possam e queiram voltar, trazendo o conhecimento adquirido. "Sempre digo que o caminho é ser liderança".

TERRA - A cacique também se queixa da lentidão dos processos de demarcação das terras e da desatenção da Funai com as tribos nordestinas. "Parece que os índios do Nordeste não são índios. Só querem saber das tribos do Norte. A gente não quer o Brasil todo. Queremos nosso pedacinho".

Valdelice diz que sem a terra, "a essência que dá vida", os velhos começam a morrer e os jovens abandonam suas casas. "Vão para as ruas, se envolvem com álcool, vão roubar, vão presos. Os fazendeiros já não dão mais emprego porque acham que os índios estão tramando para tomar suas fazendas".

A cacique queria um pouco mais de dignidade para o jeito de morar dos índios. Sem a regularização da terra, a dificuldade para conseguir energia elétrica e água encanada é maior.

"Não queira casas de laje e bloco. Mas a gente podia ter uma olaria para fazer tijolos de barro". Sua aposta é nos jovens. "Se a gente conseguir um pedaço, eles vão buscar o resto".

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