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Comunidade Remanescente de Quilombos de Morro Alto história de luta que agora se traduz em um embate jurídico

Observatório Quilombola (Ong KOINONIA)
Autor: Cíntia Beatriz Müller
01 de Out de 2005

Rio Grande do Sul • set-out/2005
Comunidade Remanescente de Quilombos de Morro Alto história de luta que agora se traduz em um embate jurídico [1]
Por: Por Cíntia Beatriz Müller

A Comunidade Remanescente de Quilombos de Morro Alto está localizada ao longo da BR 101 e se estende pelos municípios de Maquiné e Osório. Com uma área de aproximadamente 4.630 hectares, é formada por 230 famílias [2] que ali vivem e cerca de 48 que hoje moram na região metropolitana de Porto Alegre, além das que vivem nos municípios de Osório/RS e Capão da Canoa/RS. Todas as famílias que se autoreconhecem como remanescentes de quilombos da área estão sendo cadastradas, de acordo com informações de Wilson Marques da Rosa, presidente da Associação Comunitária Rosa Osório Marques do quilombo de Morro Alto, para elaboração do Relatório Técnico do INCRA/RS.

Vivendo em torno das ruínas das antigas senzalas ou permanecendo nas antigas terras de seus ex-senhores, os quilombolas de Morro Alto estabeleceram relações com aqueles que moravam, livres, no Cantão, um quilombo localizado no Morro da Vigia. Basicamente, o quilombo era formado por velhos, libertos pela Lei dos Sexagenários (1885), foragidos, escravos em trânsito entre senzalas, que ora atravessavam morros, ora se arranchavam por ali temporariamente, e africanos livres desembarcados ilegalmente no litoral. Além disso, Rosa Osório Marques, ex-senhora de escravos da região, doou em testamento um legado de terras para alguns de seus ex-escravos (Barcellos 2004).

A Comunidade de Morro Alto é formada por outros núcleos, que são espécies de bairros rurais [3]. São eles: Aguapés, Barranceira, Faxinal do Morro Alto, Morro Alto, Ribeirão e Espraiado, cada qual possuindo suas peculiaridades históricas mas unidos por redes de solidariedade e laços de parentesco além do compartir religioso, da crença em Nossa Senhora do Rosário. Morro Alto também é famoso desde 1872 [4] por seu Maçambique, congada que se realiza anualmente no dia 13 de maio, quando Nossa Senhora do Rosário visita São Benedito na localidade de Aguapés, e em outubro, na cidade de Osório/RS. Atualmente, grande parte dos dançantes e demais componentes do grupo vivem em Osório, mas os ex-maçambiques de Morro Alto, seguidamente, rememoram sua impressões das festas de antigamente.

I) Procedimento de Titulação.

O processo de titulação dessa área com base no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias teve início com a celebração de um convênio entre a Fundação Cultural Palmares e a Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social do Estado do Rio Grande do Sul para a elaboração de cinco relatórios, dentre os quais estava o de Morro Alto. Ao longo da pesquisa de campo houve a edição do Decreto 3.912/2001, que encheu a todos de apreensão ao estabelecer um prazo de usucapião singular de cem anos ou mais – de 1888, ano da Abolição, até 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal vigente – como sendo obrigatório para o reconhecimento desse tipo de titulação.

Vencido esse obstáculo com a edição de um novo decreto, o D. 4.887/2003, passou a ser necessário para a titulação a produção de um Relatório Técnico, elaborado sob a supervisão do INCRA, agora no âmbito de um procedimento administrativo específico que exigia um novo esforço de pesquisa. Esse relatório, no caso de Morro Alto, se encontra em fase de elaboração hoje, em 2005. O mesmo decreto que por um lado deu maior legitimidade ao auto-reconhecimento, já garantido pela Convenção 169 da OIT, em vigor desde 25/07/2003, ratificada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo n. 142/2002, instituiu a figura da Certidão de Auto-Reconhecimento, emitida a partir de registro do auto-reconhecimento das comunidades quilombolas no Livro de Cadastro Geral da Fundação Cultural Palmares.

Tal registro é consumado com a publicação da Portaria, que é um ato por meio do qual um agente administrativo, no caso o presidente da Fundação Cultural Palmares, determina providências de caráter administrativo, dá instruções sobre a execução de uma lei ou serviço, (Nunes 1999: 836). Foi por meio da Portaria n. 19 de 14 de maio de 2004, que o presidente da Fundação Cultural Palmares tornou público e efetivou uma dimensão do reconhecimento da condição de remanescente dos quilombos de Morro Alto e de mais 28 comunidades de diferentes estados, todas citadas na mesma Portaria 19, dentre elas, Comunidade de Bela Aurora/PA, Comunidade de Mocambo/SE, Comunidade de Nova Batalhinha/BA e a Comunidade de Casca/RS (veja o teor da Portaria 19/2004). Nesse momento o reconhecimento social de tais comunidades já existia há muito tempo.

a) A Judicialização do Pleito de Terras em Morro Alto.

Ocorre, porém, que a judicialização de algum dos atos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação ou de titulação das terras dos remanescentes das comunidades de quilombos é constante. Nos casos do Sacopã/RJ e da Família Silva/RS, por outro lado, as reivindicações em torno do reconhecimento da identidade social de remanescente dos quilombos emergiu com maior rapidez quando a pressão para a expulsão das áreas, ambas urbanas e supervalorizadas, tornou-se insuportável.

No que diz respeito à Comunidade Quilombola de Morro Alto, em outubro de 2004, houve um ajuizamento maciço de Mandados de Segurança contra o ato administrativo praticado pelo presidente da Fundação Cultural Palmares. Foram um total de cinco Mandados [5] emitidos entre 1o e 5 de outubro de 2004. Em todas as ações já consta, desde o dia 11 de agosto de 2005, a observação de que foram suspensos os efeitos da certidão publicizada através da Portaria 19/2004 da Fundação Cultural Palmares.

A decisão que suspende os efeitos Portaria 19/2004 ocorreu no âmbito do julgamento de um agravo de instrumento, espécie de recurso, encaminhado a segunda instância (no caso o TRF da 4a. Região) contra alguma determinação do juiz federal de 1a. instância (neste caso a 6a. Vara Federal), o MS . 2004.71.00.039421-8, que não terminou ou decidiu a questão que ensejou a propositura do Mandado de Segurança. A ação principal, o Mandado de Segurança, então, ainda não foi julgada, apenas foi julgada uma decisão que chamamos, no jargão jurídico, de não terminativa do feito, em caráter de Agravo de Instrumento [6].

Esse Agravo de Instrumento n.2004.04.01.057365-8 (Ver boxe) foi distribuído para a 3a. Turma do Tribunal Regional Federal da 4a. Região no dia 17/12/2004 e julgado apenas dia 08/08/2005 pelas Desembargadoras Dra. Vânia Hack de Almeida e Dra. Sílvia Goraieb e pelo Desembargador Relator Dr. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz.

Tribunal Regional Federal da 4a. Região

Agravo de Instrumento no. 2004.04.01.057365-8/RS

Relator: Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz

Agravante: Adão Manoel Rodrigues e outros

Agravado: Fundação Cultural Palmares

RELATÓRIO

O parecer do MPF, à fl. 70, expõe com precisão a controvérsia, verbis:

Trata-se de agravo de instrumento (fls. 2/19) contra decisão indeferitória (fl. 20) de medida liminar em mandado de segurança (fls. 43/58) visando a suspender os efeitos da Portaria no. 19/04 da Fundação Cultural Palmares (DOU 04/06/2004), que incluiu imóveis dos agravantes como área remanescente de quilombos, afetando o exercício pleno do direito de propriedade. Denegado nesta instância efeito suspensivo (fl. 61), decorreu in albis o prazo para contra-razões (fl. 67).

Conquanto se possa vislumbrar quantum satis o fumus boni iuris, a aparência de direito da pretensão deduzida por assegurado no ordenamento jurídico pátrio o direito de propriedade (arts. 5o., inciso, XXII, da CF/88 e 1.228, do Código Civil), atendida sua necessária função social, cediço que não há como proceder a dilação probatória em mandado de segurança e neste instrumento.

Por outro lado, ante os elementos probatórios existentes nestes autos não se vislumbra presente o requisito do periculum in mora. Não existe indício de efetivo prejuízo que possam sedizentes proprietários de imóveis, autores/agravantes, estar sofrendo com o registro e certificação de comunidades e localidades como REMANESCENTES DE QUILOMBOS, com certidão de auto-reconhecimento nos termos da Lei no. 7.668/88 (fls. 40/42). Não há demonstrada desvalorização ou empeço à venda ou uso dos imóveis urbanos e/ou rurais.

Ademais, cabe lembrar a aplicabilidade de máxima que busca a valorização do juízo originário da causa por mais próximo aos fatos e à prova produzida a tomas irretocável a decisão – liminar – a quo.

Ante o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL opina seja por vossas Excelências desprovido este recurso.

É o relatório.

No que concerne ao fumus boni juris, é esse evidente, pois o Decreto 4.887/03, em princípio, viola a garantia do art. 5o., XXII, da CF.

Por esse motivo, dou provimento ao recurso.

É o meu voto.

Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz

Relator.

Como fundamento de sua decisão, o Des. Rel. Eduardo T. F. Lenz ainda afirmou, de acordo com notícia veiculada no Jornal Zero Hora (10/08/2005), que o Decreto 4.887/2003, em princípio, viola a garantia do artigo 5o, inciso XXII, da Constituição Federal de 1988. Embora tal decisão nos deixe a todos chocados, ela não imputa ao Decreto 4.887/2003 caráter inconstitucional, mas insinua que pode haver ali uma possível inconstitucionalidade, sem apontar, porém, qual a parte do Decreto atentaria contra o direito de propriedade. Além disso, o art. 68 do ADCT, enquanto preceito constitucional, tem eficácia plena e garante direito fundamental, assegurando, de certa forma, o cumprimento da função social das terras e o direito de propriedade a uma parcela específica da população brasileira. O Decreto 4.887/2003 atacado não cria direitos nem obrigações, ele simplesmente dispõe sobre a forma de agir de cada órgão público envolvido na titulação. O direito à propriedade já se acha firmado no texto constitucional (Conf. Amicus Curiae – COHRE et al, juntado à ADIN 3239, do STF).

b) As Indenizações da BR 101

A Comunidade Negra de Morro Alto e seus vários núcleos estão localizados ao longo da BR 101 que, atualmente, está sendo duplicada. Em audiência pública realizada no Ministério Público Federal, em 08 de julho de 2005, foi oficializado compromisso por parte do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT) de que suspenderia o pagamento das indenizações no trecho Osório, Maquiné, na área que se encontra sob análise por parte do Incra/RS, para a titulação do quilombo de Morro Alto. Nessa mesma Audiência o Incra se comprometeu em elaborar o levantamento da cadeia dominial. Foi afirmado por Ivan Brás, da Seppir, que é de interesse do governo federal tanto a manutenção dos quilombolas em sua área quanto à duplicação da BR 101.

Essa audiência foi provocada pela comunidade quilombola e o Ministério Público após a veiculação de notícias sobre as indenizações individuais que estavam sendo pagas a não-quilombolas na área do quilombo de Morro Alto. Nessa reunião, o DNIT assumiu que já havia realizado o pagamento de indenizações a quatro pessoas que se manifestaram como proprietários de terras no local. Por isso, as obras de duplicação não podem ser interrompidas, conforme explicou o procurador-geral do DNIT Sr. Júlio Cezar Pereira. Para tanto, com a controvérsia em definir quem são os proprietários da área, o órgão federal se comprometeu a realizar o depósito dos valores em juízo, sob consignação.

Nessa mesma audiência foi denunciado pelo presidente da Associação Comunitária Rosa Osório Marques o uso indiscriminado dos recursos naturais da comunidade nas obras de duplicação da BR 101. A construção do complexo de túneis de Morro Alto, que encurtará o traçado da estrada em 11 quilômetros, abre um rombo imenso, indescritível, em área quilombola, que também é uma área de reserva da biosfera que possui os últimos resquícios nativos de Mata Atlântica no estado do Rio Grande do Sul. Quem indenizará essa perda irreparável às gerações futuras? Por que as estatísticas nunca apresentam o número dos mortos pertencentes às famílias daqueles que vivem ao longo do traçado da BR 101, sendo quilombolas, índios, brancos, ou quem quer que sejam, mas sempre daqueles que transitam pela estrada e, raramente, dos que vivem na estrada?

Enquanto isso, de acordo com notícia veiculada no dia 12 de agosto de 2005, no Correio do Povo, Porto Alegre/RS, o coordenador regional do DNIT, Marcos Ledermann, anunciou que as indenizações por desapropriação reiniciariam na semana seguinte. Segundo ele, não haveria problema com os quilombolas, mas, legalmente, quem possui os documentos para indenização das terras são os agricultores. Pergunto: por que seriam os quilombolas menos agricultores? Por acaso aquilo que é produzido por um agricultor quilombola difere daquilo que é produzido por um agricultor branco?

Em nenhum lugar vemos a descrição do dia-a-dia das pessoas que são obrigadas a conviver com o barulho ensurdecedor da rodovia. Não ouvimos também a queixa dos pais que têm que enviar seus filhos para escolas que ficam ao longo da mesma estrada e do medo que sentem, pois o acostamento parece sempre estar em estado precário ao longo de grande parte do trecho Osório–Torres. Talvez seja pertinente publicizar à população que vive em Morro Alto algum plano de mitigação ou de compensação de impactos ou buscar estabelecer diálogos, também entre os não-quilombolas, explicitando as medidas que o governo federal viabilizará para assegurar as condições de habitalidade da região após a duplicação.

Tentei fornecer elementos para que as pessoas tenham um panorama daquilo que está acontecendo com a Comunidade Negra de Morro Alto e fico devendo mais informações sobre o que está acontecendo por lá. Espero poder fornecer maiores atualizações ao longo da semana.

Canoas/RS, 13 de agosto de 2005.

Bibliografia

BARCELLOS, Daisy et al. Comunidade Negra de Morro Alto: historicidade, identidade e territorialidade. Porto Alegre: EdUFRGS, p. 484.

NUNES, Pedro. Dicionário de Tecnologia Jurídica. 13. ed. São Paulo: Renovar, 1999. p. 1199.

Cíntia Beatriz Muller - Mestre em Antropologia Social pela UFRGS, Doutoranda em Antropologia Social, Colaboradora do Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (Cohre), organização não-governamental internacional, sem fins lucrativos, de caráter consultivo perante as Nações Unidas. (revla@terra.com.br)

Notas

[1] Agradeço as observações do historiador Rodrigo de Azevedo Weimer, mestrando em História da UNISINOS.

[2] Conforme consta na Certidão de Auto-Reconhecimento expedida pela Fundação Cultural Palmares, publicada no DOU em 03 de março de 2004.

[3] Ao melhor estilo de Antônio Cândido, Os Parceiros do Rio Bonito. (2001). Coleção Espírito Crítico. São Paulo: Duas cidades/Ed.34, p. 372.

[4] Ano em que Stenzel aponta dados sobre o Maçambique de Morro Alto em seu livro: STENZEL FILHO, Antônio. (1924). A Vila da Serra (Conceição do Arroio). Sua descripção physica e historica. Usos e Costumes até 1872 – Reminiscências. Porto Alegre: Livraria do Globo.

[5] Seguem a relação dos mandados: 1) Mandado de Segurança 2004.71.00.039289-1, que corre na Vara Ambiental, Agrária e Residual, ajuizado em 01.10.2004; 2) MS 2004.71.00.039287-8, na 3a. Vara Federal, distribuído em 01.10.2004; 3) MS 2004.71.00.039422-0, na 2a. Vara Federal de Porto Alegre, distribuído em 05.10.2004; 4) MS 2004.71.00.039288-0 da 2a. Vara Federal Poá/RS e 5) Mandado de Segurança n. 2004.71.00.039421-8, da 6a. Vara Federal, iniciado em 05/10/2004.

[6] Resumidamente, a primeira instância ou o primeiro grau de jurisdição é o lócus jurídico onde o processo inicia o que depende da matéria a ser discutida ou da natureza do sujeito de direitos, nesse caso o Mandado de Segurança foi ajuizado na Justiça Federal por versar contra ato de autoridade federal, conforme CF/88, art. 109, inciso VIII. Nesse caso os recursos que exijam apreciação do segundo grau de jurisdição devem ser encaminhados para outro tribunal hierarquicamente superior, nesse caso em tela o Tribunal Regional Federal da 4a. Região.

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