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Compromisso com a diversidade

Neomondo
28 de Ago de 2009

Compromisso com a diversidade
Estado fixa as bases que norteiam relacionamento com povos e comunidades tradicionais

Gabriel Arcanjo Nogueira

Quando se trata de diversidade cultural, aí também o Brasil é bom de leis. A prática é que precisa - e deve - ser aprimorada, num esforço conjunto constante em que parceria é bem mais que uma palavra da moda, mas conceito fundamental. A instituição da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) é que fixa as bases para que o País não somente alcance a imprescindível inclusão política e social desses povos e comunidades, mas também concretize um pacto entre o poder público e esses grupos.

Metas que dependem diretamente de obrigações das várias partes, alicerçadas num modelo de sociabilidade. Do seu lado, o Estado acena com um comprometimento maior ao assumir a diversidade no trato com a realidade social brasileira.

No Simpósio Internacional sobre Desenvolvimento Social, realizado no início de agosto, em Brasília, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu que é preciso transformar em lei todas as políticas sociais. E ressaltou a importância das parcerias para que se chegue a bons resultados, como os que têm sido alcançados nas políticas públicas, das quais a PNPCT é exemplo.

Aderval Costa Filho, coordenador do Núcleo de Povos, Comunidades Tradicionais e Específicas, da Secretaria de Articulação Institucional, e Parcerias do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), diz que, antes de mais nada, é preciso considerar que o conceito comunidades tradicionais é relativamente novo, seja na esfera governamental, seja na acadêmica ou social. "A expressão 'comunidades ou populações tradicionais' surgiu no seio da problemática ambiental, no contexto da criação das unidades de conservação (UCs), para dar conta da questão das comunidades tradicionalmente residentes nestas áreas: povos indígenas, comunidades remanescentes de quilombos, extrativistas, pesca dores, dentre outras", esclarece.

No processo de organização desses grupos, ao sair da invisibilidade em que se encontravam, surge a necessidade de balizar a intervenção governamental junto a eles. Daí a importância de se criar, em dezembro de 2004, a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais (CNPCT), presidida pelo MDS e secretariada pelo Ministério do Meio Ambiente, ressalta Aderval. Co missão esta que "foi reeditada e reconformada em julho de 2006", acrescenta.

Fórum paritário Aderval define a CNPCT como "fórum de composição paritária, para elaborar uma política nacional que reflita a sociodiversidade brasileira". Coube a ela estabelecer uma política nacional específica para esses segmentos, apoiando, propondo, avaliando e harmonizando os princípios e diretrizes das políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais nas esferas federal, estadual e municipal. Iniciativa que, para o coordenador do Núcleo, representa um avanço.

Para o MDS, "a instituição da PNPCT é fundamental não somente por propiciar a inclusão política e social dos povos e comunidades tradicionais, como também por estabelecer um pacto entre o poder público e esses grupos, que inclui obrigações de parte a parte e um comprometimento maior do Estado ao assumir a diversidade no trato com a realidade social brasileira". Política esta construída no âmbito da Co missão Nacional e instituída pelo Decreto Presidencial n 6040, de 2007.

Direitos individuais e coletivos

Aderval cita o Decreto para conceituar que "povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição". Trata-se, lembra o doutor em Antropologia Social, de "conceito operativo, construído em comum acordo com as representações da sociedade civil, do governo e da academia". O que permitiu criar a CNPCT e PNPCT como "espaço de reconhecimento de direitos individuais e coletivos, numa acepção aberta, não estritiva". Em outras palavras: todos os povos e comunidades que se sentirem contemplados por esse dispositivo e instância podem requerer seu reconhecimento e inclusão, conforme estabelece o princípio da autodefinição (Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho - OIT). A sociodiversidade brasileira é significativa, e não foi por outra razão que o governo federal fixou as bases do desenvolvimento sustentável desses segmentos mediante quatro eixos temáticos.

Pressões e desafios

Aderval - que também é assessor da Secretaria de Articulação Institucional e Parcerias do MDS - é, ao mesmo tempo, didático e realista quando fala da importância da PNPCT no desenvolvimento do País, nos aspectos sociais, de sustentabilidade, ambientais, econômicos e culturais.

Se há avanços, reconhecidos até por outros organismos, restam desafios e a consciência de que resta muito a fazer.

Em sua diversidade étnica, racial e cultural, o Brasil deve encarar o grande desafio de estabelecer e implementar políticas públicas para promoção do bem estar social da população, sobretudo dos povos e comunidades tradicionais. "Sabemos que boa parte deles encontra-se ainda na invisibilidade, silenciados por pressões econômicas, fundiárias, processos discriminatórios e de exclusão sociopolítica", afirma o especialista, para discorrer sobre cada item:

"Em termos do desenvolvimento do País, esses territórios tradicionalmente ocupados e essa parcela da população brasileira historicamente excluída e negligenciada pelas políticas públicas costumam refletir indicadores sociais que não permitem grandes avanços. Temos aí verdadeiros bolsões de excluídos, nos quais se insere o recorte racial, geralmente em municípios com alto grau de vulnerabilidade, com baixo IDH, altas taxas de morbidade e mortalidade infantil e analfabetismo".

"Do ponto de vista ambiental, muitos desses territórios constituem reservas de sociobiodiversidade, ao ponto de podermos afirmar que boa parte dos povos e comunidades tradicionais podem ser considerados guardiões da biodiversidade, considerando-se a escala da produção, geralmente voltada para autoconsumo e produção de pequenos excedentes, o uso mais racional dos recursos naturais renováveis, o uso de tecnologias de baixo impacto (na maior parte das vezes), dentre outros aspectos que marcam a sua realidade".

"Do ponto de vista cultural, são povos e comunidades que guardam uma relação estreita com a ordem da tradição, guardam expressões culturais próprias (expressões linguísticas, festas, rezas, comidas, modo de fazer as casas, roupas, etc.), mitos e ritos associados às atividades de cultivo, pesca, caça e extrativismo, mantêm a transmissão oral de geração em geração dos conhecimentos culturais e ambientais, com ênfase no papel dos idosos, que geralmente figuram como guardiões da memória. Cabe ressaltar também, na esfera produtiva, que são comunidades com ritmo e lógica próprios, que nem sempre se coadunam ao mercado, embora não estejam, naturalmente, privadas de se articularem economicamente, em escala regional, nacional ou até mesmo internacionalmente. De qualquer forma, essas manifestações conformam uma diversidade que integra o patrimônio cultural brasileiro".

"Em termos de políticas públicas, considero que o maior desafio, no que diz respeito às categorias identitárias tradicionais que integram a sociedade brasileira, é assegurar universalização dos direitos individuais e coletivos e a implementação de recortes diferenciados, adequados às suas realidades. A ordem da tradição, conjugada com as inovações introduzidas pelas frentes econômicas e pelo próprio Estado, configura uma dinâmica e ritmos próprios, nem sempre levados em consideração pelas políticas públicas".

O maior desafio de todos, para Aderval, é transformar a PNPCT em uma política de Estado.

Modelo democrático

O Instituto Socioambiental (ISA) considera que se a PNPCT é um avanço, "por que concretiza o reconhecimento do Estado à diversidade dessas populações" (e cita a inclusão dos produtos da sociobiodiversidade na política de preços mínimos, que permite a extrativistas assegurar boas condições de comercialização a produtos da floresta), todavia ainda falta ao governo vencer a dificuldade que enfrenta de fazer essas políticas chegarem a cada local. Por enquanto, "nem todas as comunidades podem beneficiar-se delas", diz Neide Esterci, presidente do Instituto.

A contribuição que essas populações e comunidades podem dar ao desenvolvimento harmonioso do País passa pelo aprimoramento de mecanismos que tornem a PNPCT mais efetiva no que diz respeito ao meio ambiente. O ISA reconhece que, desde os anos 1990, as áreas de proteção ambiental têm sido geridas a partir de modelos mais democráticos.

Neide compara: "Se nos anos de 1970, por exemplo, expulsavam-se habitantes a pretexto de conservar a biodiversidade, a orientação mudou nas últimas décadas, com leis e políticas governamentais menos restritivas aos grupos sociais e povos residentes". A presidente da ONG lembra que as terras indígenas são exemplares nesse aspecto, por apresentar as áreas mais ambientalmente conservadas do País.

Outro ponto positivo ressaltado por ela é que cresce de modo muito significativo o envolvimento desses grupos e povos em aliança com ambientalistas. "Nada que signifique que estamos num mar de rosas", afirma.

Plano e recursos

Como parte desse modelo, Aderval informa que, para além do amplo processo de mobilização e organização promovido pela criação da Comissão e pela construção da PNPCT - que, para ele, resultou na visibilização sociopolítica desses segmentos, - cabe ressaltar que "hoje temos um Plano Prioritário para Povos e Comunidades Tradicionais (2009-2010), construído sob a supervisão da Casa Civil, que tem por objetivo promover o fortalecimento, reconhecimento e garantia dos direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais desses grupos".

O coordenador de Núcleo cita que há re cursos disponíveis, até o momento, da ordem de R$ 253.239.469,98, por 17 órgãos governa mentais federais, nos quatro eixos da PNPCT: acesso aos territórios tradicionais e aos recursos naturais, infraestrutura, inclusão social e fomento e produção sustentável.

No balanço, referente ao exercício de 2008, Aderval lembra que o governo federal investiu recursos da ordem de R$ 676.989.455,38 em ações realizadas junto aos povos e comunidades tradicionais. "Sem contar que muitos programas governamentais são universais, e não há dados desagregados por segmento ou categoria identitária, que nos permite inferir que são dados subestimados".

Ele considera importante, entre as estratégias da CNPCT, a promoção de audiências públicas nas assembléias legislativas dos estados, visando a apresentação de projetos de lei favoráveis aos povos e comunidades tradicionais; além da construção e pactuação de agendas com governos estaduais e municipais, do fomento à criação de instâncias governamentais para atendimento desses grupos nos governos estaduais e municipais e, naturalmente, criação de ações e programas nos seus planos plurianuais.

Pesquisa participativa

Entre o que classifica como "ainda muito por fazer", Aderval aponta que a Comissão Nacional já tem o seu Plano Prioritário, feito no primeiro semestre deste ano, e lhe cabe agora fazer o seu monitoramento e avaliação. O que não deixa de ser mais um desafio. Mas há outros, como a criação de comissões estaduais nos moldes da Nacional; e o levantamento sociodemográfico dos povos e comunidades tradicionais no Brasil. O que é feito a partir do Censo Agropecuário do IBGE, de 2007, e tem a participação de membros não-governamentais da CNPCT. "O objetivo deles é a realização de uma pesquisa participativa, com o envolvimento direto de agentes locais de pesquisa, oriundos desses povos e comunidades; o que, para eles, é como uma primeira aproximação".

Expectativas não faltam e, entre as prioridades para concretizá-las positivamente, Aderval lembra que o Plano Prioritário - com a participação de dezenas de ministérios, secretarias, institutos oficiais e não oficiais, como o Chico Mendes, confederações e empresas de pesquisa - estão o acesso ao território, melhoria da capacidade produtiva e da autosustentação, e melhoria da qualidade de vida dos povos e comunidades tradicionais. Para tanto, os critérios de seleção de áreas de atuação prioritária levam em conta: a concentração dessas comunidades; potencial de desenvolvimento socioambiental; situações de risco e pobreza; e sinergia com outras ações governamentais.

As bases estão lançadas, e toda a sociedade brasileira é chamada a dar sua contribuição.

Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 Eixo estratégico 1 - Acesso aos Territórios Tradicionais e aos recursos naturais
Garantia e efetivação do acesso de povos e comunidades aos seus territórios e aos recursos naturais;
Interação entre territórios tradicionais e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.

Eixo estratégico 2 - Infra-estrutura
Infra-estrutura básica ;
Implementação de projetos com impactos diretos e/ou indiretos em territórios tradicionais.

Eixo Estratégico 3 - Inclusão Social
Educação diferenciada;
Reconhecimento, fortalecimento e formalização da cidadania;
Atenção diferenciada à saúde;
Adequação do sistema previdenciário;
Acesso às políticas públicas de inclusão social;
Gênero;
Acesso e gestão facilitados para recursos públicos;
Segurança pública e direitos humanos.

Eixo estratégico 4 - Fomento e Produção Sustentável
Proteção e valorização das práticas e conhecimentos tradicionais;
Reconhecimento e fortalecimento das instituições e formas de organização social;
Fomento e implementação de projetos de produção sustentáveis.
Fonte: MDS

Sociodiversidade - Comunidades Tradicionais

Povos Indígenas - 734.127 habitantes (220 etnias, 180 línguas) - 110 milhões de ha.
Quilombolas - 2 milhões de habitantes - 30 milhões de ha.
Seringueiros - 36.850 habitantes - 3 milhões de ha.
Seringueiros e Castanheiros - 815.000 habitantes - 17 milhões de ha.
Quebradeiras de coco-de-babaçu - 2 milhões habitantes - 18 milhões de ha.
Atingidos por barragens - 1 milhão de pessoas expulsas de suas terras e territórios.
Fundo de pasto - 140 mil pessoas.
Além desses, constam os faxinais, pescadores, ribeirinhos, caiçaras, praieiros, sertanejos, jangadeiros, açorianos, campeiros, varjeiros, pantaneiros, geraizeiros, veredeiros, caatingueiros, barranqueiros, dos quais ainda não temos dados confiáveis.
Aproximadamente: ¼ do território nacional - 5 milhões de famílias - 25 milhões de pessoas.
Fonte: MDS

Neo Mondo, 28/08/2009

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