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Como a violência e a escassez nos rincões da Amazônia empurram brasileiros para longe da floresta

OESP - https://www.estadao.com.br/
01 de Abr de 2024

Como a violência e a escassez nos rincões da Amazônia empurram brasileiros para longe da floresta
Uma embarcação que parte da fronteira com a Colômbia é uma das principais portas de saída para brasileiros e estrangeiros que migram do interior amazônico em direção aos grandes centros em busca de melhores condições de vida

Vinícuis Valfré

01/04/2024

É uma manhã quente e úmida em Tabatinga, no extremo oeste do Amazonas. Uma viagem só de ida está prestes a começar pelas águas do Solimões. Centenas de brasileiros, venezuelanos, colombianos e peruanos vão descer mais de mil quilômetros de rio empurrados pela violência e pela falta de trabalho, saúde e educação do interior amazonense em direção a Manaus e a outros grandes centros urbanos. Serão quatro dias e três noites em uma jornada desconfortável e tensa que em voo comercial não duraria mais do que duas horas, mas custa cinco vezes mais.

A cena da partida se repete a cada semana na região onde o Brasil faz fronteira com a Colômbia e o Peru. As despedidas emocionadas no terminal hidroviário logo dão lugar ao corre-corre para o embarque dos pertences levados para o recomeço nas cidades grandes. Os objetos pessoais são acomodados entre as redes de pano que servirão de sofá, cama e mesa pelos próximos dias. Cada um precisa trazer a sua e gerar para si o conforto que consegue.

O Estadão percorreu durante 18 dias mais de 3 mil quilômetros de rios e estradas em uma porção da Amazônia e constatou um fenômeno que aponta para um fluxo migratório em direção aos centros urbanos em detrimento de comunidades indígenas, ribeirinhas e de fronteira. Há indícios de um êxodo que não cessa, de paralelos com dois ciclos migratórios anteriores: o da borracha, nos anos 1940, e o dos grandes projetos de desenvolvimento econômico, a partir dos anos 1960. Nos próximos dias, a série de reportagens vai mostrar os impactos da violência nos extremos da Amazônia e o aprofundamento da favelização.

O reflexo do êxodo mais recente está no crescimento desordenado de Manaus. No último meio século, a capital amazonense foi a única no País a manter um forte crescimento populacional, superior à média nacional. A cidade tem 52% de toda a população do Amazonas, uma proporção consideravelmente superior à de metrópoles da região, como Belém (16%) e Porto Velho (29%), e do Sudeste, como São Paulo (25%) e Rio de Janeiro (38%).

A viagem começa em Tabatinga no início da tarde de uma terça-feira. A chegada a Manaus está prevista para o entardecer de sexta. Dentro da embarcação o espaço é apertado. As famílias elegem seus espaços em algum lugar dos dois pavimentos superiores destinados aos viajantes e nenhuma consegue raio livre de um metro. Ao todo serão 225 passageiros, além de 30 tripulantes.

Toda sorte de tralha vai no piso inferior, na área da carga. De um lado, móveis, ferramentas de trabalho, galinhas vivas, cachos de tucumã. Em outra parte, uma TV 65", engradados de cerveja, colchões, bebedouros para escola, carro, moto, geladeira, máquina fotocopiadora, cilindros de oxigênio. Logo, logo saberemos que alguns quilos de cocaína e de maconha também foram levados a bordo.

A zona é uma conhecida rota do narcotráfico, mas o trânsito de pessoas e de mercadorias é livre para a Colômbia e o Peru. O controle de bagagens no embarque é manual e falho. A equipe de reportagem e outras dezenas de passageiros subiram sem nenhuma verificação.

A primeira das sete paradas até Manaus é na cidade de Benjamin Constant, colada nos limites peruanos. Um desordenado entra e sai de novos passageiros, vendedores ambulantes e estivadores abastecendo o porão percorre todo o convés durante a ancoragem. Não há nenhuma restrição ao trabalho infantil de meninos e meninas que esquadrinham as redes vendendo doces e frutas.

A falta de fiscalização e a informalidade são típicas em toda a região. Em Tabatinga e nos municípios do entorno, a emissão de notas fiscais, documento obrigatório em transações comerciais regulares, é exceção. Os órgãos oficiais contam 8% de população ocupada. A maioria vive de bicos, empregos temporários e comércios irregulares. Parte dos estabelecimentos, segundo investigações da Polícia Federal, serve para lavagem de dinheiro do narcotráfico.

A exatos três minutos após a partida de Benjamin, outro retrato da chaga do crime organizado na zona de fronteira aparece. Uma lancha rápida da Polícia Federal emparelha com o barco de passageiros e ordena que o comandante reduza a velocidade. Três policiais prendem a lancha à embarcação e saltam para dentro. De pronto e sem qualquer satisfação, começam a vasculhar banheiros, ralos, armários de tripulantes, vãos e a área de carga.

Um remendo mal feito na estrutura de um carrinho de açaí estacionado próximo às galinhas na parte inferior chama a atenção dos agentes. O item é mais pesado do que aparenta e os policiais decidem arrancar a tampa para averiguar as paredes internas. O dono é um jovem que viaja sozinho e protesta: precisa do material intacto para trabalhar em Manaus. Tão logo o compartimento sucumbe a uma alavanca pé de cabra, uma substância branca ensacada dá a certeza da adulteração. São cerca de 13 quilos de drogas.

"Sabemos que essa rota é muito utilizada para tráfico de drogas. Nosso efetivo é reduzido, viemos só nós três, mas contamos com a experiência"
Policial federal (pediu para não ser identificado), após prender passageiro em flagrante por tráfico de drogas

O rapaz algemado e o carrinho são transferidos para a lancha da federal. E o comandante do "cruzeiro" pode reativar seus dois motores de 550 HP que produzem força e barulho incompatíveis com a máxima de 25 km/h rio a baixo.

Houve quem atribuísse a ação policial à presença da equipe de reportagem, confundida por alguns como policiais à paisana. Mesmo com os devidos esclarecimentos, não ficou claro se a maioria aprovou ou desaprovou a blitz. Dali a Manaus, haverá duas barreiras policiais em pontos pré-determinados. Só em Coari, na última noite, cães farejadores da Força Nacional serão usados nas bagagens. Costuma ser a noite mais crítica, segundo tripulantes, pois não há novas abordagens até o destino, e quem veio disposto a encaminhar furtos ou outros ilícitos fica mais à vontade.

Um terço da população de toda a Amazônia é afetado pelas disputas entre facções criminosas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV). É uma realidade conhecida há quase uma década, graças a reportagens históricas. Mas que só agora parece ganhar mais ênfase em levantamentos acadêmicos e em estudos de organismos da sociedade civil.

O esvaziamento das florestas é bom para o crime. As regiões menos habitadas e remotas viram corredores para produção de entorpecentes e para o tráfico de drogas e de armas. As gangues nacionais operam, em alguns casos, em regimes de consórcio com cartéis internacionais. É um trabalho de policiamento difícil e com pouca estrutura. Agentes federais costumam buscar a transferência para cidades maiores assim que possível.

Dentro do barco, faz calor durante o dia e frio à noite. As nuvens que surgem sobre a calha do rio inundam toda a área dos andares dos passageiros. A alvorada e o crepúsculo refletidos nos mais de 2 quilômetros de calha deslumbram e amenizam o desconforto de quem viaja pela primeira vez e é desabituado com o repouso em rede e com o cardápio à base de macarrão e frango.

Quando a noite cai, a escuridão do lado de fora é absoluta. Um canhão de luz operado manualmente pela tripulação rastreia troncos e bancos de areia que precisam ser evitados. Uma colisão pode virar uma tragédia. Com mais de 30 metros de profundidade em alguns pontos, o Solimões guardou alguns célebres naufrágios entre os anos 1980 e 2010.

Apesar de demorada e perigosa, a viagem de barco é a única opção para centenas de pessoas por uma razão financeira. Pode sair por pelo menos R$ 220, com três refeições diárias inclusas, aproximadamente um quinto do valor do bilhete aéreo para o mesmo percurso. Ainda assim é uma conta alta demais para quem viaja com a família inteira.

Neuza Rocha Patrício, 44, embarcou com quatro filhos e não prega os olhos à noite. A caçula, Elis, de 2 anos, chora à noite querendo terra firme. O mais velho, Romerson, 22, tem paralisia cerebral e sofre crises de epilepsia e de vômito recorrentes. Ele precisa ser visto periodicamente por um neurologista, especialidade que o poder público não oferece no extremo oeste do Amazonas. Para a administração municipal, fica mais barato e mais fácil despachar pacientes como ele para Manaus.

Por enquanto, quem dá suporte à mãe no trato com os irmãos na viagem é Natally Evellyn, 15. Neuza faz questão que ela e Erick, 12, acompanhem os demais por um instinto protetivo. "É um cuidado que eu tenho que ter. Não deixo eles porque já está tendo muito caso de criança de 12 anos sendo usuária (de droga) e ficando grávida", comenta.

A prescrição é de uma consulta para Romerson a cada três meses, mas Neuza vai quando pode. Existem questões financeiras e de logística que precisam estar bem resolvidas antes da peregrinação a Manaus. A última ida foi há dois anos, em uma romaria que a manteve por nove meses na casa da mais velha, Jéssica, 27, que já trocou os rincões do Amazonas pela capital.

A viagem não tem data de regresso. Tudo dependerá do parecer médico, do tempo para marcação e obtenção de resultados de exames. Isso porque está preparada financeiramente para recorrer a médicos particulares de um plano assistencial popular. "No hospital do estado demora mais ainda, não tem como para nós", explica.

Neuza faz planos de mudar de mala e cuia para deixar o filho mais perto de médicos especializados. Ainda não sabe, porém, como criar todos os filhos e ainda conseguir um trabalho para arcar com os custos de vida na capital.

A prefeitura só paga a viagem dela e de Romerson. Quando Neuza quiser levar os filhos de volta terá que ter conseguido de alguma forma mais R$ 600 para completar os custos do retorno, praticamente metade da pensão que o governo paga por causa do filho especial e é a principal fonte de renda. "É uma luta, mas vou fazer o quê? Não tenho o que fazer", lamenta.

A viagem é tediosa. O sinal de celular funciona somente em alguns portos. Os passageiros e os tripulantes chegam a ficar 24 horas sem comunicação com as cidades. Para a meia dúzia de mochileiros estrangeiros a bordo, a perigosa rota é o ápice de uma aventura inesquecível pela Amazônia brasileira. Incomodados com o veto total às bebidas alcoólicas, pedem para que se traduza à tripulação um pedido para desembarque rápido na próxima parada em busca de "caipirinha". Mas nenhum passageiro é autorizado a descer para esticar as pernas ou molhar a garganta.

Superada a tensão da vistoria de homens da Força Nacional equipados com fuzis, na base de Coari, inaugurada em 2020, Franciney Souza Alves, 44, mira o celular. Desde a noite anterior, após a partida do porto de Jutaí, não havia nenhum sinal de internet ou telefone. As mensagens represadas chegaram de uma vez e um áudio específico deixa seus olhos marejados. "Se o cabra não tiver estrutura, não aguenta, não", comenta. É uma mensagem da voz da caçula, Jéssica, 8: "Papai, volta. Estou com muita saudade, te amo muito".

A despedida foi em casa, com um abraço em cada um dos três filhos, e um beijo na mulher. A cerimônia teve um chamado à responsabilidade do único rapaz, Giovani, 15, por agora ele ser o único homem no lar. Os meninos não foram à despedida no terminal de embarque. "Se fossem, eu não teria coragem de vir." Em um acordo com a mulher, Franciney deixou a família para trás em busca de melhores condições de trabalho e renda. Era serralheiro em Tabatinga, mas não recebia o suficiente. "Tirava alguma coisa, mas só dava para comer", lembra.

Homem simples e de conversa agradável, foi contando como se tornou um exímio soldador, habilidade na qual aposta tudo para ter uma vida melhor na cidade grande e enviar dinheiro para casa. Diz saber as diferentes formas de fundir metais e como deixar seus serviços como "escaminha de pirarucu", algo como o estado da arte da solda. Coisa muito diferente de algumas das soldagens da estrutura interna do barco que ele aponta e reprova.

Franciney viaja com a "certeza de uns 80%" de que terá a carteira assinada logo depois de se estabelecer. Um amigo avisou sobre oportunidades em uma empreiteira local. Era o último sinal que esperava para colocar em prática o plano já antigo de descer o Solimões sem passagem de volta atrás de um salário melhor. O objetivo é chegar na fila de emprego da empresa o mais cedo possível na primeira segunda-feira, o que não quer dizer que ele não procure trabalho desde já.

A cozinha havia acabado de servir pão e broa de milho do café da manhã quando Franciney passou sorrindo compartilhando uma boa nova. "Já vou conseguir tirar o que gastei com a passagem!" Ele espalhara entre os tripulantes a informação de que havia um soldador profissional a bordo e acabou contratado para remendar uma parte do guarda-corpo da popa que precisava de manutenção.

Nas cidades fronteiriças, a falta de trabalho é um dos principais motivadores dos emigrantes. O dado mais recente do IBGE aponta 7% de taxa de ocupação em Tabatinga, fruto de uma informalidade não mapeada a contento. Dos cerca de 70 mil habitantes, estima-se que menos de 4 mil tenham carteira assinada. É um lugar onde quase tudo gira em torno de pequenos comércios e da influência da prefeitura, mesma realidade dos demais municípios da região.

Glória Catique Rodrigues, 37, também parte em busca de trabalho. A viagem feita na companhia da filha, Heloísa, 16, é repleta de simbolismos. Há três anos, Glória perdeu um bebê. "É uma última viagem, não sabemos quando será a próxima", diz, sobre a filha que vai voltar, depois de um período na casa de parentes, sob a supervisão de um tripulante amigo da família.

Glória tem um diploma de técnica em enfermagem, mas diz que não consegue uma vaga sem se submeter a políticos locais. Mesmo as opções para trabalhar como vendedora em lojas ou supermercados são escassas. A melhor solução que encontrou foi partir. No início, contará com o apoio de pessoas próximas que já se estabeleceram em Manaus.

"Estou sem emprego há dois anos e pouco. Isso leva a gente à necessidade. Minha mãe é pensionista, tem um salário mínimo, não dá pra sustentar uma casa. Não é honesto depender só de uma pessoa. Eu tenho que ser a provedora da casa. Então, vou sair para isso. Ela ficou triste, mas entendeu", lembra.

Às 8h30 de sexta-feira, o comandante Pedro Jeremias, 70, avisa que a chegada a Manaus está, enfim, prevista para as 15h. É hora de os viajantes se prepararem para o desembarque e para o primeiro encontro com amigos, familiares e conhecidos no porto. Os 20 banheiros utilizáveis, localizados no fundo da embarcação, ganham filas. Todos querem chegar asseados e para isso recorrem às duchas, de onde sai água retirada do próprio rio.

Após três noites, pode-se dizer que o trajeto de 1.400 quilômetros foi um pouco menor do que o esperado. A cheia do Solimões abre "furos" nas matas - atalhos que poupam a embarcação de serpentear todas as curvas do rio. Os canais alternativos reduziram o tempo total da viagem em quase 12 horas.

Para alguns, será o fim da jornada. Para outros, só encerramento da perna mais curta. A venezuelana Andrea Rosas, 19, segue o caminho que primos e tios já percorreram. As situações de assédio moral e xenofobia no trabalho sem documentação em um restaurante de Tabatinga passaram a ser intoleráveis, ela conta. Em paralelo, alguns dos colegas de seu convívio se aproximaram do tráfico de drogas.

As notícias que chegavam de Curitiba, onde a família de Andrea se estabeleceu, davam conta de que a cidade oferece mais oportunidades. "Do Brasil, só conheço Tabatinga. Não dá para ter um futuro lá, não tem oportunidades. Quero estudar, trabalhar, montar meu próprio negócio. Tenho medo, mas sei que não podemos nos estressar com coisas que não estão no nosso alcance", diz.

Andrea se sentia sozinha e insegura desde que a última tia decidiu também tentar a vida no Paraná. Um parente motivou o outro e Andrea decidiu que chegara a hora de se mudar novamente. Eles fugiram da crise econômica da Venezuela em 2018. Passaram por Bogotá e Letícia, na Colômbia, até cruzarem a fronteira brasileira.

Curitiba é o município brasileiro que mais recebeu venezuelanos entre 2018 e o início deste ano. Cerca de 8 mil se acomodaram na capital paranaense no período. Andrea se junta a eles com planos de se especializar no setor de alimentação, mas sonhando com as condições de um dia ter toda a família reunida novamente. "Quero estar perto de toda a minha família. Agora, a Venezuela não dá. Mas, se algum dia as coisas mudarem, eu volto para lá", afirma.

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