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Com séculos de história, povo guarani se vê em um beco sem saída no sul do Brasil

UOL - https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/
25 de Out de 2022

Com séculos de história, povo guarani se vê em um beco sem saída no sul do Brasil

25/10/2022 10h26

Rapidamente, o pequeno Vinícius sai do campo de futebol improvisado, atira um pedaço de madeira e derruba um pássaro. Faminto, o leva correndo para cozinhar.
"A fome não é brincadeira", diz o cacique ava-guarani Inacio Martins, da aldeia Marangatu, um território onde vivem em miséria crescente mais de 200 famílias indígenas no oeste do Paraná.
A situação é um paradigma de muitos povos originários no Brasil: à espera de uma demarcação de terras que não chega - e que o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) prometeu não dar em nome dos interesses do agronegócio -, a comunidade de Martins está sucumbindo ao desemprego, à fome e à desesperança.
"A gente precisa de terras para produzir. A gente sabe plantar, sabe trabalhar. [Mas] é tudo pedra aqui", explica o cacique, de 51 anos, apontando para o entorno empoeirado das choupanas onde as famílias vivem amontoadas.
Com o tempo, as portas têm se fechado para eles: os latifundiários desta regão agrícola oferecem cada vez menos trabalho e a última ajuda alimentar que recebiam do governo como principal fonte de sustento deixou de chegar há três meses.
"Para onde vamos? Antigamente, quando o branco entrava (..), a gente corria para outro canto, mas agora não, não temos espaço", implora Martins, cuja aldeia fica espremida entre a cidade de Guaíra e a fronteira fluvial com o Paraguai.
- "Vergonha"
Daniela Acosta, de 27 anos, é uma das poucas ava-guaranis que conseguiu emprego. Ela trabalha em um frigorífico de tratamento de aves, a 65 km da aldeia. O ônibus da empresa a recolhe diariamente na estrada, às 2h30 da manhã.
Com seu salário, esta jovem, mãe de um filho, paga a dívida contraída para pagar os estudos de pedagogia. Sobra pouco para se alimentar, mas ela diz sentir "vergonha" de pedir comida na cidade, onde é "difícil" os indígenas serem "bem recebidos".
"A gente não entra aqui para ver nossa realidade. Quem sabe um dia a gente consiga a demarcação para não depender mais dos outros. Seríamos autossustentáveis", explica Daniela, que na casa toda conta com um pequeno espaço para a cama e outro para cozinhar.
A discriminação que sofre caminha lado a lado com as ameaças e inclusive os atropelamentos na rodovia, como ficou documentado em um relatório de 2017 de uma comissão apoiada por ONGs brasileiras e a embaixada da Noruega sobre as 14 aldeias da região que esperam um dia ser reconhecidas como Terra Indígena (TI).
- Um caso "atípico"
"Os problemas se iniciam quando eles começam a reivindicar a terra" formalmente nos anos 2010, explica à AFP Marina Oliveira, do Conselho Indigenista Missionário, que assiste a estas comunidades.
Os ava-guaranis passaram a ser vistos como uma ameaça aos produtores agrícolas, que em muitos casos herdaram as terras de seus avós, depois que na década de 1940 as autoridades as cederam para sua exploração.
"O proprietário, quando ele vê o índio, ele já acha que vai invadir, a gente não é bobo [de fazer algo assim]. A gente quer nosso direito. Aqui é nosso mesmo, o índio nunca vendeu terra para o branco", diz Inácio Martins.
A demarcação da TI, que abrangeria 27.000 hectares, foi definida pela Fundação Nacional do Índio (Funai), com base na presença documentada dos ava-guaranis na região desde o século XVI.
Mas o mapa foi anulado pela justiça em 2020, em um caso "completamente atípico" no país, segundo Oliveira. Em junho deste ano, o Ministério Público pediu à Funai que aja para obter a revogação desta decisão.
- Bolsonaro ou Lula: tanto faz? -
Enquanto isso, os governos se sucedem e o Brasil elegerá seu próximo presidente no segundo turno, em 30 de outubro, entre Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O cacique diz que a aldeia votou em Bolsonaro em 2018, na época um desconhecido para a maioria dos brasileiros. E embora sua política de não demarcar "nem um centímetro a mais" de terras indígenas seja conhecida e demonstrada, Martins continua "indeciso" sobre seu voto, como se quem quer que seja eleito, ninguém mais poderia ajudá-lo.
"Meu sogro morreu com mais de 100 anos e não conseguiu a demarcação. Eu tenho quase 60 anos, acho que não vou ver também", conta.
Segundo o brasileiro Instituto Socioambiental, das 725 terras indígenas existentes no Brasil, 237 ainda aguardam demarcação.
app/mel/mvv
© Agence France-Presse

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