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Com economia forte no Brasil, ONGs correm risco de fechar as portas

O Globo, Economia, p. 42-43
17 de Out de 2010

Com economia forte no Brasil, ONGs correm risco de fechar as portas
Entidades como Oxfam saem do país, que deixou de ser prioridade para doadores. Recursos encolheram à metade em 2010. Crise europeia e valorização do real agravam situação

Clarice Spitz e Letícia Lins*

RIO e PALMARES (PE).

O crescimento "chinês" da economia e a melhora do mercado de trabalho
brasileiro têm criado uma situação paradoxal para as mais de 300 mil ONGs que atuam no Brasil. O cenário não é dos melhores. Após décadas de dedicação ao combate à pobreza, muitas estão correndo o risco de fechar as portas. Um dos líderes das nações emergentes, o Brasil está deixando de ser visto como prioridade por grande parte de agências de financiamento internacional, que sempre foram a principal fonte de recursos para as organizações.
Muitas como a britânica Department for Internacional Development se reuniram com diversas entidades para avisar: as Américas saíram do rol de países-alvo. Vítimas da crise europeia, as agências preferem agora mirar em países de África, Sudeste da Ásia e Leste da Europa, em pior situação. A holandesa Oxfam Novib é outra que vai deixar o Brasil em 2011. Com menos 30 milhões de euros em caixa, a entidade ligada a direitos humanos e educação sairá dos 11 países em que atua na América Latina para concentrar esforços em nações mais vulneráveis.
A tendência de redução recursos de fora vem da última década, mas agora ganhou rapidez, dizem as ONGs. A estimativa é que ao menos mais seis estrangeiras também deixem o país até 2015. Pesquisa da ONG Instituto Fonte mostra que, entre 2009 e 2010, o valor médio dos recursos aportados no Brasil por agências estrangeiras encolheu
praticamente à metade.
- Vários países da América Latina ainda têm dados de pobreza e exclusão fortes, mas, quando comparados a outros, estão em melhor condição. O Brasil está em melhor estado que muitos, e houve muito progresso no país nos últimos anos - considera Ruud Huurman, gerente de Relações com a Mídia da Oxfam Novib.

Demissões, salários atrasados e fim de projetos
O sucesso do Brasil e a valorização do real formam uma combinação explosiva para as ONGs no país. Como grande parte de seu financiamento vem do exterior, uma mesma quantidade de recursos em dólar, agora, com a moeda brasileira valorizada, representa menos dinheiro em reais. Com isso, as ONGs estão sendo obrigadas a demitir, atrasar salários, enxugar custos e cortar projetos.
A mudança de rota dos recursos internacionais já chegou ao interior de Pernambuco. No engenho Serro Azul, em Palmares, a 125 quilômetros de Recife, Sebastiana Maria dos Santos, de 58 anos, e outras 50 lavradoras
tentam reerguer a horta de produtos orgânicos que foi levada pelas enchentes de junho.
Antes, com a ajuda financeira e orientação de ONG apoiada pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educação (Fase), Sebastiana, que sobrevive com renda inferior a meio salário mínimo mensal, cultivava horta orgânica numa região marcada pela desigualdade de renda e onde a monocultura açucareira é dominante.
A ajuda agora foi suspensa. A Fase, que sofre, sobretudo, com o real forte, já teve de cortar 20% do pessoal no país e hoje dispõe de uma receita um quinto menor. Para as mulheres, retomar a hortinha tem sido difícil. Elas só conseguiram juntar R$ 200 até o momento e,
segundo Sebastiana, as lavradoras terão de viajar às cidades de Vitória de Santo Antão ou Caruaru para conseguir grãos a um preço melhor.
- Hoje a gente é como peixe fora d'água. Antes tínhamos insumos, capacitação, troca de experiências. Sem ela (a Fase), a gente ficou mesmo foi desprotegido - diz Sebastiana.
A lavradora Margarida Maria dos Santos, de 54 anos, pensa em vender dois terrenos para investir no seu pequeno sítio, onde cria carneiros, galinhas, planta frutas e tem dois criadouros de tilápia. Margarida e o
marido, José Marques, de 79, reclamam da falta da ONG que orientava os lavradores.
- A gente ficou órfão - diz Margarida que, como Sebastiana, fugiu da seca do agreste para trabalhar na cana.
No Rio, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), que já teve 95% do orçamento vindo do exterior no início da década de 90, verá esse percentual cair para 10% no ano que vem, com a retirada de agências de cooperação.
- Para quem depende de negócios do exterior, a valorização do real nos afeta tanto quanto a exportadores. Isso significa ter que renovar totalmente ou acabar - desabafa o diretor-geral do Ibase, Cândido Grzybowski, que fala na necessidade de refundação do instituto criado na década de 80 por Herbert de Souza, o Betinho.

Organizações buscam governo e empresas
Casos de desvio de órgãos públicos prejudicam estratégia

Na luta para sobreviver, ONGs estão se articulando para diversificar as fontes de recursos. Elas pedem um novo marco regulatório para desburocratizar o acesso ao financiamento junto a fundos públicos federais, estaduais e municipais, considerado um dos principais entraves atualmente.
O acesso a financiamento de empresas privadas também é visto como uma alternativa a ser mais bem explorada, na avaliação das organizações. Pesquisa qualitativa da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) junto a associadas mostra que o principal inconveniente, que seria uma possível ingerência das empresas nas ONGs, não figura entre as maiores preocupações.
- O desafio das ONGs no Brasil é se desenvolver com o apoio dos governos e da iniciativa privada, o que ainda é visto de maneira um pouco "ilícita", já que, infelizmente, existem casos de desvio de dinheiro de órgãos públicos utilizando organizações de fachada - considera Vera Masagão, da diretoria da Abong.

Redução da pobreza no Brasil afasta doadores
Outras organizações, como a Action Aid, que apadrinha crianças, planeja investir na ampliação dos doadores brasileiros para driblar as perdas de recursos externos. A organização, que contabiliza só neste ano perdas de 12% na receita em função do câmbio, sobrevive majoritariamente de doações vindas de cidadãos europeus. O objetivo agora é aumentar em dez vezes a fatia de recursos captados no Brasil, que hoje significam apenas 5% do orçamento da Action Aid Brasil e que devem saltar para 50% nos próximos cinco anos.
- A situação econômica da Europa é muito grave. Já houve redução de doadores de 2008 para cá e nós avaliamos que a visão de que há redução da pobreza no Brasil pode levar outras pessoas fora do país a preferirem não mais apoiar - avalia a socióloga Rosana Heringer, coordenadora-executiva da Action Aid.
Para Luca Sinesi, coordenador da IS Brasil, projetos no Norte e no Nordeste do país são os que correm maior risco de serem extintos com a redução de financiamento externo.
- O chamado é que o governo olhe, sobretudo, para essas regiões, porque muitas das organizações sobreviveram graças à cooperação internacional - afirma.
- O chamado é à sociedade brasileira, ao governo e ao empresariado, para que não esqueçam os projetos de fortalecimento da democracia, da educação, dos direitos - completa Sinesi.

De receptor, país passa a exportar ajuda
Há cooperação técnica com 77 nações, a metade na África

Se a melhora da economia tem secado o acesso a fontes de recursos internacionais, muitas ONGs e o próprio governo brasileiro já consideram que chegou o momento de o Brasil passar a receber menos e "exportar" mais ajuda. A prestação de cooperação técnica feita pelo governo brasileiro se destina atualmente a 77 países, sendo que a metade deles se encontra no continente africano.
São projetos de curto prazo - no máximo, dois anos -, sobretudo treinamento de médicos e enfermeiros ou implantação de políticas públicas. O governo brasileiro não doa dinheiro, apenas presta cooperação técnica.
Cooperação tem orçamento de US$ 33,5 milhões este ano
Embora ainda inferior ao que os países ajudados recebem em acordos com Alemanha, Japão, Estados Unidos e França, o Brasil vem aumentando a cooperação prestada. O orçamento da Agência Brasileira de Cooperação, ligada ao Ministério das Relações Exteriores, que chegou a ser de apenas US$ 528 mil em 2004, deve atingir este ano US$ 33,554 milhões. Com o aumento da cooperação, o Brasil vem mudando seu perfil no panorama internacional. Até o fim de 2010, o país contabiliza compromissos de cerca de US$ 120 milhões em projetos de cooperação nos próximos três anos.
- O Brasil passou a ser um ator mais presente. Há uma expectativa muito grande para que o Brasil seja mais atuante e há igualmente uma maior demanda por parte de países em desenvolvimento - afirma o ministro-diretor da Agência Brasileira de Cooperação, Marco Farani.
'Não dá mais para competir com a África por recursos'
Para Luca Sinesi, coordenador da IS Brasil, que atua nos segmentos de agricultura verde e prevenção a doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), as ONGs também precisam se reestruturar para preparar a cooperação internacional fora do país. Segundo ele, o esforço deve ser concentrado na África lusófona, em países como Angola, Moçambique e Cabo Verde.
- Não é só olhar para o passado e dizer: vamos voltar ao que era. Mas é importante que o Brasil se volte para fora, que se pense. É possível ter expectativas de cooperações inovadoras passando pelo governo e por ONGs brasileiras - afirma Sinesi.
Diretora da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), Vera Masagão, concorda: - Temos de assumir agora que o papel do Brasil tem de ser de coautoria. Não dá mais para competir com países da África por recursos - afirma.

(*) Enviada especial a Palmares

O Globo, 17/10/2010, Economia, p. 42-43

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