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Com dinheiro alheio

O Globo, Amanhã, p. 20-22
23 de Jul de 2013

Com dinheiro alheio
Modelo de contrato por performance permitiria a empresas de saneamento básico diminuir o enorme desperdício de água no país sem precisar de um grande investimento inicial

MANUELA ANDREONI
manuela.andreoni@oglobo.com.br

RIO - Nos redores da maior bacia hidrográfica do mundo, sobram torneiras secas. A água, tão obviamente abundante, não raro é racionada nas cidades do Amazonas. Ali, a Cosama, companhia de saneamento que abastece 12 dos 62 municípios do estado, perde mais de metade da água que irradia em sua área de atuação, quando se compara sua produção a seu faturamento, segundo dados compilados pelo Ministério das Cidades em 2011. Os motivos não são particulares à empresa estadual amazonense. A média nacional de perda de águas é de aproximadamente 40%, quando o aceitável seria algo entre 10% e 15%. A nossa Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae) desperdiça pouco menos de metade de sua produção de acordo com a mesma fonte. Neste imenso ralo, sobram problemas de gestão e faltam recursos para atacá-los. Mas um estudo, divulgado na semana passada, oferece uma solução, a princípio, inusitada: investir os ganhos com a potencial recuperação da água perdida contra sua própria perda.
Um manual para os chamados "contratos de performance" foi elaborado por um estudo do Banco Mundial, por meio da International Finance Corporation (IFC), e da GO Associados, divulgado este mês no Rio, em São Paulo e em Brasília. A ideia já foi colocada na prática - e com sucesso - por algumas empresas brasileiras. Consiste em contratar empresas para conter as perdas e pagá-las com as economias geradas por seu serviço. Portanto, se o trabalho conseguir reduzir, por exemplo, 10% das perdas sofridas por determinada empresa de saneamento, o prestador de serviço receberá em troca, digamos, 50% do que for faturado com a venda da água recuperada. Assim, elimina-se a necessidade de aportar recursos logo de início.
Esse tipo de contrato já é bastante difundido na área de energia elétrica, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Ele é interessante por oferecer não só uma oportunidade de saneamento dessas empresas - cujas contas, em grande parte, estão no vermelho - mas também porque contribui para o financiamento de iniciativas que expandam a rede de água e esgoto no Brasil. Podem inclusive ajudar a baixar a tarifa cobrada ao consumidor - que, de certa forma, paga pela água que desce o ralo incógnita.
Vale lembrar que, no Brasil, 81,7% da população têm acesso a água encanada e 44,5% ao tratamento de esgoto, segundo dados de 2009. Além disso, um quarto dos municípios do país sofrem com falta ou racionamento de água. O problema se concentra principalmente em estados das regiões Norte e Nordeste, onde, coincidentemente, estão as empresas com maiores perdas - ou seja, as de pior gestão.
Os autores calculam que, se houvesse um esforço nacional para cortar as perdas pela metade, o país poderia arrecadar, até 2025, mais de R$ 37 bilhões. Caso houvesse diminuição de 38% nas perdas, o cofrinho engordaria quase R$ 30 bilhões no mesmo período. Considerando que metade destes recursos seria reinvestido no próprio programa, sobram, no último cenário, cerca de R$ 15 bilhões em 17 anos, ou R$ 880 milhões por ano. O montante, segundo o estudo, representa 12% do que foi investido no setor em 2011.
No Brasil, o modelo começou a ser mplantado pela Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp), na época da gestão de Gesner Oliveira (2007-2010), um dos autores do estudo, hoje sócio da GO Associados. De início, foram firmados cinco contratos do tipo, que permitiram, segundo a empresa, uma economia capaz de abastecer uma cidade de 125 mil habitantes.
Maycom Rogerio de Abreu, gerente do departamento de planejamento da unidade sul da empresa, conta que de início foi complicado convencer as prestadoras de serviço a se engajarem em um contrato de risco para elas e, além disso, financiarem todo o serviço até que ele tivesse resultado. No entanto, 28 meses depois, os contratos já foram pagos pela economia de água. Este ano, a Sabesp firmou outros cinco contratos que, no fim, serão capazes de economizar o suficiente para abastecer uma cidade de 210 mil habitantes, como Macaé, no estado do Rio.
Esse tipo de contrato não é previsto, de forma específica, pela Lei de Licitações. No entanto, segundo o pesquisador Fernando Marcato, também da GO Associados, experiências passadas na Sabesp, já avaliadas pelo Tribunal de Contas, demonstram que isso não deve ser um problema. De acordo com ela, leis mais atuais, como a de Parceria Público-Privada e o Regime Diferenciado de Contratação (RDC), usado para obras relativas aos grandes eventos sediados pelo país, já preveem este tipo de contrato.
Fator político é obstáculo
Oliveira admite ser "complicado inovar em termos contratuais no setor público", e destaca o aparelhamento das empresas - que ele chama de "fator político" - como obstáculo. Mas ele também ressalta que o modelo de contratos, diferentemente de outros tipos de "choques de gestão", não põem servidores públicos na berlinda, nem muda, de início, a estrutura da empresa - inovação que poderia provocar a ira de funcionários.
- A grande resistência se dá quando você chega em uma empresa e vai lá para demitir pessoas - explica. - Isso pode até ser necessário, mas esses programas não atacam esse lado. O passo seguinte pode ser "olha, o pessoal que não trabalha...". Mas não tem nada a ver com a redução de perdas. (O programa) funciona mais ou menos como um impulso. Você pega um sujeito fora de forma, põe ele para fazer exercício. Ele tem vários benefícios, quer mudar os hábitos. Com isso vem uma série de efeitos positivos que derivam daquela ação.
O pesquisador sugere que a adoção de contratos de performance e uma consequente diminuição de perdas melhoraria a condição financeira da empresa, que teria não apenas uma imagem melhor nos bancos, portanto maior capacidade de captar financiamento, como se tornaria mais capaz de realizar os investimentos necessários na expansão da rede. Jorge Luiz Assale, gerente do Departamento de Saneamento Ambiental do BNDES, destacou, no seminário no Centro do Rio, a importância de se investir não só no aumento da rede de água e esgoto, mas também no saneamento das próprias empresas. O problema, segundo destacam os pesquisadores, passa pelo fato de obras serem visíveis e darem votos, ao contrário das melhorias de gestão. Segundo dados apresentados por Assale, cerca de 5% dos investimentos do governo vão para melhorias na parte corporativa.
- Você estica a mangueira por quilômetros, mas ela está cheia de furos. Então é preciso conserar a mangueira! - defende Gesner Oliveira.
Em 2010, foram investidos cerca de 9,5 bilhões em saneamento básico. Em 2009, foram R$ 8,7 bilhões. Caso se mantenha este patamar de investimento, segundo as contas de Assale, a universalização dos serviços de água e esgoto só seria atingida em 2070. Porém, um cálculo de Oliveira dá conta de que, caso o investimento dobre, a universalização da rede de água pode se dar em 2021 e, a de esgoto, em 2031. Se também houver um ganho de 30% na produtividade - um avanço em sintonia com as melhorias de gestão propostas -, o objetivo poderá ser alcançado em 2017, para água, e 2024, para esgoto.
O estudo deve ser levado pelo IFC para outros países da América Latina, como México - em que a capital desperdiça cerca de 38% de sua água - e Colômbia - Bogotá perde 41%. Segundo o representante do órgão, o italiano Marco Giussani, a escolha do Brasil para sediar o primeiro passo da empreitada se deu por vários fatores. Aqui há vontade de investimento do governo, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento, bancos públicos para financiar iniciativas do tipo, além de um setor regulatório em desenvolvimento.
Mas o que chama atenção é a oportunidade de, por meio do projeto, poder influenciar na profissionalização das empresas de saneamento, contribuindo para a eliminação do enorme vazio de infraestrutura sofrido pelo setor.
Raul Pinho, conselheiro do Instituto Trata Brasil, elogia a iniciativa do IFC, no entanto alerta para as enormes dificuldades do setor. Para ele, o modelo oferecido pode funcionar muito bem e deve ser implantado em áreas pequenas. Pinho põe em dúvida a vontade política das empresas para mudar.
- Infelizmente, essas empresas são braços políticos. Estão ali para servir o governo. E o governante quer o que dá mais voto. E não acontece botando hidrômetro para cobrar a conta da população.
Pinho diz que a ineficiência das empresas atinge tal nível que é impossível confiar plenamente nas estatísticas sobre elas oferecidas pelo Ministério das Cidades por meio do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Tais estatísticas, contudo, ainda são os únicos dados disponíveis sobre o setor. Os números são fornecidos de forma espontânea pelas empresas, sem qualquer auditoria externa, ressalta Pinho.
Ele questiona se as empresas de fato estariam dispostas a por recursos em melhoria operacional, o que demandaria estudos detalhado sobre o quanto de fato é produzido e desperdiçado:
- Nossa realidade não é transparente - afirma.

O Globo, 23/07/2013, Amanhã, p. 20-22

http://oglobo.globo.com/amanha/estudo-oferece-solucao-para-conter-despe…

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