OESP, Agrícola, p. G6-G7
20 de Abr de 2005
Cobrança da água volta à pauta
Resolução do CNRH põe tema em discussão. Onde dinheiro já é arrecadado, pequeno produtor está isento
Niza Souza
A definição de regras para cobrança do uso da água das bacias hidrográficas, anunciada pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) no Dia da Água, em 22 de março, foi recebido com grande receio pela maioria dos usuários. No campo, os agricultores que têm lavoura irrigada temem mais um aumento no custo de produção. A resolução n.o 48, de 21/3/2005, estabelece critérios gerais para a cobrança em todo o País. As regras de cobrança passarão a ser definidas, agora, dentro de cada comitê de bacia hidrográfica. O País já tem quatro comitês de bacias formados: Paraíba do Sul, Rio Doce, São Francisco e Piracicaba-Capivari-Jundiaí.
A única bacia hidrográfica, porém, que já tem regularizada e adotada a cobrança é a do Rio Paraíba do Sul, que abrange os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, onde a cobrança é feita desde março de 2003. Apesar das campanhas de esclarecimento e de o valor da taxa para o setor de irrigação ser baixo, a adesão dos agricultores ainda é ínfima. Alguns dos que pagam só o fazem porque a outorga do uso da água - ou seja, a autorização de uso - tornou-se uma das exigências do Banco do Brasil para financiamentos agrícolas e, ainda assim, não é para todos os agricultores, segundo o diretor de Crédito do Banco do Brasil, Luiz Gustavo Lage. Depois da criação da lei 9.433, de 1997, que cria o CNRH, o BB fez um mapeamento para verificar onde há conflitos pelo uso da água e nessas regiões a outorga pode ser exigida, levando em conta também o porte do produtor e o financiamento requerido. "Se o financiamento estiver vinculado ao uso de recurso hídrico, podemos pedir a outorga, mas cada caso é um caso", explica.
De acordo com o Setor de Cobrança da Agência Nacional das Águas (ANA), este ano o setor agrícola deve ser responsável pela arrecadação de R$ 8 mil a R$ 10 mil no Paraíba do Sul. Valor insignificante perto do que é arrecadado pela indústria e empresas de saneamento - setores que também fazem parte dos usuários da água da bacia -, que, no ano passado pagaram mais de R$ 6 milhões. O setor de irrigação pagou, em 2004, pouco mais de R$ 2 mil. São números irrisórios, se levarmos em conta que 60% da água consumida para fins comerciais vai para a agricultura.
IRRIGAÇÃO
Atualmente, são cerca de 3.500 usuários, entre agricultura e pecuária, que têm a outorga da ANA, mas apenas cerca de 20 pagantes. No Paraíba do Sul, segundo levantamento do Comitê para Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (Ceivap), o uso agrícola total da bacia é de 53 mil litros/segundo. Embora seja o que menos paga, o setor agropecuário é o maior usuário de água na região, com cerca de 120 mil hectares de área irrigável.
Uma das explicações para a baixa arrecadação do setor de irrigação, segundo o diretor do Ceivap, José Leomax dos Santos, é a de que a maioria dos produtores da região está na faixa de uso irrelevante, ou seja, captação inferior ou igual a 1 litro por segundo. A taxa só é cobrada de quem captar mais de 1 litro por segundo. "Essa faixa faz parte do acordo definido pelo Ceivap para os três primeiros anos da cobrança, ou seja, até março de 2006. Após esse período, o assunto será rediscutido."
O coordenador da área de Irrigação da Unesp, o professor Fernando Braz Tangerino Hernandes, explica que a captação de 1 litro por segundo corresponde a 84.400 litros, ou 84,4 metros cúbicos/dia. Fazendo uma média para São Paulo, por exemplo, sem contar o método de irrigação e a cultura, isso equivale à necessidade de um pequeno produtor, de 1,7 a 3 hectares. "Se os critérios usados na Bacia do Paraíba do Sul forem adotados nas outras regiões, o pequeno produtor não deve se preocupar, pois não será atingido pela cobrança", pondera o professor.
Outro fator relevante é que o produtor precisa cadastrar-se, por meio do pedido de outorga de uso da água (o formulário pode ser encontrado no site www.ana.gov.br), para pagar pela água. Nesse sistema, o produtor é quem informa, anualmente, se capta e quanto capta de água para irrigação. Por isso, muitos usuários, incluindo agricultores, ainda não se cadastraram. O Ceivap já fez campanhas para incentivar o cadastramento. O próximo passo, diz Leomax, é a fiscalização.
O diretor do Ceivap acredita que a cobrança é justa e não deve afetar as finanças dos produtores rurais, mesmo porque os valores cobrados dos agricultores e dos aqüicultores são os mais baixos, R$ 0,0002 e R$ 0,00016, respectivamente, por metro cúbico (mil litros) captado. Considerando um produtor que capta 1 litro/segundo durante o dia todo, o ano inteiro, o valor cobrado seria de R$ 6,31 por ano. Os setores da indústria e saneamento são os que têm a maior taxa, R$ 0,008 por metro cúbico. "Embora seja um valor pequeno, a cobrança marca a participação do usuário no processo de gestão da água", acredita Leomax. Vale destacar que a cobrança não é considerada taxa, tarifa, contribuição ou tributo. A cobrança é considerada um preço público, ou seja, retribuição pelo uso de um bem público.
COMITÊS
Para o diretor da ANA, Benedito Braga, o assunto está em evidência em função da resolução da CNRH. Apesar da reclamação dos usuários, ele explica que quem define o valor a pagar são os próprios usuários, por meio da participação direta nos comitês das bacias. Por isso, em bacias onde ainda não tenha sido formado o comitê não há como cobrar.
O processo para definir a cobrança é demorado. No Paraíba do Sul, por exemplo, o comitê foi criado em 1996, instalado em 1997 e foram mais de dois anos de discussão sobre a taxa, que entrou em vigor apenas em 2003.
O CNHR espera, porém, que a arrecadação, daqui a 20 anos, consiga atingir R$ 40 bilhões. No ano passado, a arrecadação total no Paraíba do Sul foi de R$ 6,3 milhões. O presidente da Câmara Técnica de Cobrança pelo Uso de Água, Décio Michellis Júnior, prevê que a cobrança deva estar funcionando em escala nacional entre 10 e 15 anos. A França,diz, levou 30 anos para consolidar a cobrança e hoje arrecada, anualmente, US$ 2,5 bilhões/ano.
Agricultura paga valor irrisório
Produtores que já contribuem dizem que seus custos nem sequer são afetados
O representante dos agricultores no CNRH, agrônomo Jairo Lousa, explica que a participação dos usuários da água nas decisões e gerenciamento das bacias foi estabelecida na lei 9.433, de 1997, que definiu a política nacional de recursos hídricos. A nova lei definiu princípios importantes, como a necessidade de descentralizar as decisões que envolvem a política de recursos hídricos, o estímulo e a definição das condições básicas para a participação da sociedade no processo de decisão, estabelecendo como fórum maior para o debate o CNRH e, ao nível das bacias hidrográficas, os Comitês de Bacias Hidrográficas, associado às respectivas agências de água.
Outro ponto importante é que a água (bem de domínio público) deve ser considerada como um recurso natural com valor econômico, introduzindo o princípio da cobrança pelo uso da água. "A lei é inovadora e moderna. No caso do Paraíba do Sul, todos os setores usuários, de agricultores a empresas de saneamento, participaram e aceitaram a taxa."
Lousa, que representa os agricultores no CNRH por meio da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), concorda que a criação dos comitês de bacias hidrográficas, conseqüentemente as diretrizes e cobranças, tem sido lenta. "A prioridade é para aquelas bacias onde há mais conflito no uso da água." Como produtor rural, Lousa também deve ser atingido, em breve, pela cobrança. Ele produz milho doce e tomate em Goiânia (GO). Dos 300 hectares de área plantada, apenas 72 são irrigados. "Concordo com a cobrança, mas é preciso diferenciá-la. Cada um deve pagar conforme seu uso e condição."
Alguns agricultores que já pagam pela água na Bacia do Paraíba do Sul têm algo em comum: fizeram o cadastro por exigência do Banco do Brasil para financiamentos agrícolas. É o caso do produtor José Cláudio Crozariol, de Pindamonhangaba (SP). "O banco exigiu que eu tivesse a outorga para fazer o financiamento", conta. Crozariol planta 160 hectares de arroz irrigado. Segundo ele, a primeira vez que pagou pela água foi no ano passado, "um valor baixo, de R$ 158,14." Este ano, pagou um pouco mais, R$ 192,85. "Se o valor continuar assim está bom."
Exigência
O produtor de cana Haroldo Carneiro, de Quissamã (RJ), também cadastrou-se para pagar pela água quando foi fazer um financiamento no BB. "Paguei R$ 312, relativos a 2005", diz. Ele está instalando um sistema de irrigação em sua propriedade. "Chove pouco nessa região e com a irrigação elevo a produção de 50 para 90 toneladas por hectare", explica. Ele planta 65 hectares de cana e toda a área será irrigada. A captação será feita da Lagoa Feia, um afluente do Paraíba do Sul, à vazão de 65 litros por segundo.
Mesmo com essa despesa a mais, por enquanto Carneiro não reclama. "Sabemos que a água pode vir a ser um grande problema no futuro e a cobrança pode ajudar a tornar mais racional o consumo." Ele lembra que, antes de a cobrança ser regularizada, existia um temor por parte dos produtores. "Acreditávamos que poderia influenciar no custo de produção. Mas não é isso o que ocorre hoje."
Já o produtor de arroz João Carlos Rossato, de Guaratinguetá (SP), fez a outorga, em 2003, por iniciativa própria. Ele cultiva 200 hectares de arroz, sendo 15 irrigados com água do Paraíba do Sul, e paga R$ 30 por ano. "E um valor irrisório. Espero que isso não mude." Em outra propriedade, na mesma região, Rossato também capta água do rio, e, apesar de já ter pedido a outorga, ainda não recebeu a cobrança.
Recursos são aplicados na própria bacia
O diretor da ANA, Benedito Braga, explica que o próprio governo já compreendeu a importância do repasse integral dos valores arrecadados às bacias e, por intermédio da lei 10.881/2005, garantiu que não haverá contingenciamento dos recursos, ou seja, o dinheiro arrecadado deve ser integralmente repassado às agências de bacias, braços dos comitês, para investimentos em projetos de recuperação ambiental.
No Paraíba do Sul, segundo o Ceivap, atualmente há cerca de 20 ações em andamento, mas nenhuma obra ainda foi concluída. Entre as ações, nove são de instalação de estação de tratamento de água. O saneamento básico é um dos principais problemas ao longo da bacia. Há também ações de controle de erosão e recuperação de canais.
Os próximos comitês a regularizarem a cobrança devem ser o do São Francisco, do Rio Doce e o do Piracicaba, Capivari e Jundiaí. O comitê da Bacia do São Francisco (atinge Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Goiás e Distrito Federal), foi criado em 2001 e instalado no ano seguinte. Hoje, conta com 60 membros, diretoria empossada, plenário funcionando, quatro câmaras consultivas regionais instaladas, três câmaras técnicas criadas, escritório técnico em instalação e plano de bacia aprovado.
Já os comitês do Rio Doce e Piracicaba estão em fase de elaboração do plano da bacia. Mas ambos já contam com diretoria empossada, plenário funcionando, uma câmara técnica e escritório técnico.
OESP, 20/04/2005, Agrícola, p. G6-G7
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