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Cobaias humanas na Amazônia

CB, Brasil, p.13
11 de Dez de 2005

Cobaias humanas na Amazônia
Ministério Público investiga ONG norte-americana acusada de utilizar moradores como isca. Pesquisa usou os ribeirinhos para recolher mosquitos transmissores da malária. Como recompensa, salário de R$ 12

André Carravilla

Moradores da comunidade de São Raimundo da Pirativa, no interior do Amapá, foram usados como cobaias humanas em uma pesquisa suspeita sobre malária. 0 Ministério Público do estado investiga um suposto experimento que teria sido realizado por uma organização não-governamental (ONG), possivelmente financiada por uma universidade norte-americana Existem fortes indícios de que, durante quatro anos, os moradores tenham se sujeitado a testes com mosquitos transmissores de malária. 0 preço do serviço: R$12.
Em troca do dinheiro, moradores aceitaram passar a noite ao relento, servindo de iscas para capturar mosquitos. As sessões duravam seis horas e meia e ocorriam durante nove noites seguidas. Um outro grupo de voluntários teria sido submetido a sessões de até 10 minutos de picadas. Os pesquisadores teriam colocado copos, com cerca de 100 mosquitos dentro em contato com a pele humana para que as pessoas fossem contaminadas. "A legislação admite o uso cobaias humanas só para procedimentos médicos que buscam a cura, mas não para casos em que as pessoas podem ficar doentes", entende o promotor de Justiça Haroldo Franco, responsável pelo caso.
Os moradores da comunidade foram induzidos a assinar contratos em que autorizavam a realização da pesquisa. 0 Correio teve acesso a uma cópia de um dos contratos. Em uma das cláusulas está escrito que: "Você será solicitado como voluntário para alimentar 100 mosquitos no seu braço ou perna para estudos de marcação e recaptura. Isso acorrerá duas vezes durante o ano". Para o promotor, as condições precárias de vida provocaram a exploração. "São pessoas muito pobres. Para eles qualquer dinheiro faz aquilo valer a pena', relata.
São Raimundo do Pirativa é uma comunidade ribeirinha, formada por cerca de 150 negros, e que reivindica o reconhecimento como comunidade quilombola. Cerca de um terço dos habitantes aderiu à suposta pesquisa. Grande parte deles ficou doente. "As pessoas ficaram desnutridas e o dinheiro que recebiam não dava para comprar os remédios. Não tivemos nenhum beneficio", disse a líder da comunidade, Maria Siqueira.
No documento, há um carimbo da Universidade da Florida (EUA), dois parágrafos escritos em inglês. 0 Instituto Nacional de Saúde Norte-americano é citado como uma das fontes de financiamento. Essas duas informações permitiram ao promotor suspeitar que dinheiro estrangeiro garantia a realização. "Temos que investigar. A universidade pode não estar envolvida e se tratar de uma fraude. Mas nada impede que o material recolhido estivesse realmente sendo enviado para lá. Isso seria um caso de biopirataria", explica o promotor, que ainda não entrou em contato com nenhuma das instituições americanas.
0 contrato não determina o valor da remuneração, apenas que o morador da comunidade receberá "um salário normal e participação por dia de estudo". No caso de o voluntário contrair a doença, o documento prevê apenas o encaminhamento para uma clínica e ressalta que "nenhuma outra compensação será fornecida". A favor do morador, está a garantia do sigilo da sua identidade.
As conversas do promotor com a comunidade revelaram que um suposto pesquisador, chamado Alan Kardec Galando, era o coordenador dos trabalhos da entidade. "Ainda não temos como saber se ele agia sozinho ou se realmente trabalhava para uma ONG", reconhece Franco. Para a comunidade, Galando informava que os resultados das pesquisas eram enviados para o Instituto Evandro Chagas, em Belém do Pará. 0 promotor também não entrou em contato com o instituto.
Repelentes proibidos
0 Ministério Público apurou ainda que os coordenadores da pesquisa não permitiram que os agentes da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) borrifassem repelentes na área. "Nos locais onde são usadas iscas humanas, para captura de mosquitos, não pode haver registro da doença. Não é o caso na região", sustenta o promotor. 0 contrato admite
que o procedimento pode ser perigoso, mas tenta amenizar os riscos: "Você pode contrair malária. Nenhum pesquisador contraiu malária neste local".
A pedido do promotor, o Conselho Regional de Medicina do estado emitirá um parecer sobre o caso. "Conversei com o presidente do conselho, Dardeg Aleixo, ele disse que tudo parece ser absolutamente ilegal", argumenta. Garlardo não foi encontrado para comentar as supostas pesquisas que realizava na comunidade, mas, em freqüentes entrevistas para órgãos da imprensa do estado, jura inocência. Ele garante que todos os procedimentos adotados são regulares e que recebeu autorização das autoridades competentes para fazer a pesquisa.
0 promotor o notificou para que entregasse, até a último quarta-feira, os documentos que comprovariam que Galardo agia dentro da legalidade. 0 suposto pesquisador não entregou um único papel e o promotor pretende recorrer à ajuda da polícia para obrigá-lo a mostrar a documentação.
Em Brasília, o presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado, Cristovam Buarque (PDT-DF), informou que pedirá nesta segunda-feira ao Ministério Público Federal que acompanhe o caso. Também fará pedido de convocação dos ministros da Saúde, Saraiva Felipe, e da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, para depor na comissão.

CB, 11/12/2005, Brasil, p. 13

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