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Clima o imperio contra ataca

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: GOLDEMBERG, José
16 de Ago de 2005

Clima - o império contra-ataca

José Goldemberg

Fortemente pressionado pelos ambientalistas e pelos outros países participantes da conferência das grandes nações industrializadas (G8) em Gleaneagles, na Escócia, sob a presidência do primeiro-ministro da Inglaterra, Tony Blair, os Estados Unidos tiveram de aceitar uma declaração bastante positiva no que se refere às causas do aquecimento global e da necessidade de "atuar com urgência" para enfrentar este problema.
No entanto, passadas algumas semanas, os Estados Unidos se alinharam com dois aliados tradicionais, Austrália e Coréia do Sul, e conseguiram o apoio da Índia e da China para uma "associação" que pode ser interpretada como um ataque direto às recomendações adotadas na Escócia. É também um ataque a qualquer plano de reforçar o Protocolo de Kyoto, que é o único mecanismo internacional existente que lida efetivamente com o problema do aquecimento global. O Protocolo de Kyoto é mandatório e determina que os países industrializados deverão reduzir suas emissões de dióxido de carbono e outros gases responsáveis pelo efeito estufa em cerca de 5% sobre suas emissões em 1990, até 2012. Com ele se criou todo um mercado de compra e venda de emissões que beneficia os governos envolvidos e países em desenvolvimento, como o Brasil, que não têm a obrigação de reduzir suas emissões, mas podem fazê-lo a baixo custo.
A "associação" liderada pelos Estados Unidos ignora o Protocolo de Kyoto e se propõe a promover o uso de tecnologias, algumas das quais já existentes e outras em desenvolvimento, em que este país tem investido pesadamente. Apesar de listar várias tecnologias, é óbvio que a ênfase da associação é no uso do "carvão limpo", do qual os Estados Unidos e a Austrália são grandes produtores, bem como a China e a Índia.
A primeira interpretação imediata da razão pela qual a "associação" foi criada é que ela resultou da ação do lobby do carvão nos Estados Unidos, que é mortal inimigo do Protocolo de Kyoto. A segunda interpretação - que decorre da primeira - é que os Estados Unidos estão tentando abrir com ela um novo grande mercado para seus produtos e tecnologias ambientais.
Em outras palavras, o "império contra-ataca". No lugar de adotar metas quantitativas para reduzir suas próprias emissões, por meio de leis e regulamentos que a União Européia (e até o Estado da Califórnia) já adotou, os Estados Unidos se propõem a investir em pesquisas de novas tecnologias (que gerarão novas vendas), quando já há tecnologias disponíveis para adoção imediatamente, a custos aceitáveis. Novas tecnologias enfrentam incertezas técnicas e certamente custos mais elevados, como, por exemplo, capturar o carbono emitido na queima do carvão e armazená-lo no oceano (em águas profundas) ou em poços de petróleo exauridos.
A nova iniciativa americana é consistente com a recente decisão da "perdoar" a Índia por ter desenvolvido armas nucleares, uma vez que ela poderia comprar agora tecnologia nuclear dos Estados Unidos. Com isso o Tratado de Não-Proliferação Nuclear passa a ser letra morta, o que vai encorajar outros países a desenvolver armas nucleares, já que fazê-lo não tem maiores conseqüências. O sonho dos presidentes Kennedy, dos Estados Unidos, e Kruchev, da União Soviética, de eliminar as armas nucleares da superfície da Terra, formulado 40 anos atrás, foi, na prática, abandonado.
O que é mais surpreendente é que a Índia e a China, nominalmente membros e líderes do Grupo dos 77 (que reúne os países em desenvolvimento), abandonam o Brasil e outros parceiros e entram para uma "associação" que pode até beneficiá-las a curto prazo, mas enfraquece a Convenção do Clima e o Protocolo de Kyoto. Com isso, as perspectivas da Conferência de Montreal, em novembro, que poderia reforçar e eventualmente discutir um novo "pacto" para reduzir as emissões globais, expandindo os compromissos adotados em Kyoto, correm o risco de se tornar irrelevantes.
Mais chocante, porém, é o fato de que os "líderes dos cinco grandes" entre os países em desenvolvimento (Índia, China, Brasil, África do Sul e México) foram convidados para participar da conferência da Escócia e firmaram um comunicado conjunto. Esse comunicado foi considerado, por muitos, tímido e equivocado - dando até ênfase à importância da adaptação às mudanças do clima, e não à tarefa essencial, que é a de evitá-las. Essa posição é de uma perversidade cruel com os países mais pobres, que não são responsáveis pelo problema, mas não têm condições nem recursos para se adaptar às mudanças climáticas. Apesar disso, o comunicado revelou uma certa solidariedade entre eles, que é quebrada agora, com a Índia e a China se associando a um esquema que servirá mais aos produtores de equipamentos do que a políticas de desenvolvimento sustentável.
Fica enfraquecida também a posição da Inglaterra, que, aparentemente, foi mantida à margem da nova "associação", uma vez que ela não foi nem mencionada no comunicado final da conferência da Escócia. O conselheiro científico de Tony Blair, sir David King, reagiu imediatamente, expressando dúvidas de que o novo acordo produza resultados sem estabelecer limites para as emissões.
Além disso, muitos ambientalistas consideram o plano como cosmético e que vai servir apenas aos interesses dos países que vendem tecnologia de carvão, algo que já está ocorrendo agora.

José Goldemberg é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo

OESP, 16/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

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