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Cintas-largas viviam dentro de um pedra

FSP, Folhinha, p.F3-F5
01 de Mai de 2004

MITOLOGIACintas-largas viviam dentro de uma pedra
CAMILA VINHAS ÍTAVO FREE-LANCE PARA A FOLHINHA Os mitos representam os grandes acontecimentos na vida dos índios e são seus livros de história, contados oralmente, de pai para filho, de avô para neto. A antropóloga Carmen Junqueira estudou a vida dos cintas-largas e contou à Folhinha a história da criação do mundo segundo eles, que vivem em Rondônia em terras cobiçadas, ricas em diamantes.No começo havia humanos morando na Terra. O deus NGorá estava aqui em forma de gente com a mulher, a família e um pequeno grupo. Um dia, NGorá deu uma festa. Chamou um homem para ser o anfitrião, que organiza e recebe convidados. O homem ficou feliz com o convite e compareceu com sua bela mulher.Quando NGorá viu a mulher, imediatamente se transformou numa criança. Chorava dizendo que queria ir ao mato fazer cocô. A mãe o pegou pela mão: "Vamos"."Não, não quero ir com você", ele fez um escândalo, berrando: "Quero ir com ela", apontou para a mulher do dono da festa. Ela foi com o menino ao mato e disse: "Faça aqui seu cocô". Ele respondeu: "Não, quero ir lá mais para dentro". "Faça aqui, menino", ela insistiu. Ele respondeu: "Não, quero ir lá". Lá no mato, ele se transformou em NGorá adulto de novo. Então namorou a moça.Na volta, a barriga da moça começou a crescer e, quando eles chegaram à aldeia, a moça já estava com seu bebê no colo. Ela disse ao marido: "Olha quem eu trouxe para a gente criar". O marido perguntou: "É filho do nosso pai, NGorá?" Ela respondeu que sim, e o marido aceitou criá-lo.Mas os convidados fofocavam: "Ah, é filho do NGorá!", "Ah, você namorou NGorá!".NGorá ficou irritado e falou: "Vamos entrar na casa", que era uma grande pedra. Quando todos os cintas-largas entraram, NGorá fechou a pedra e deixou todos presos. A humanidade viveu longo tempo dentro da pedra. Lá faziam comida, tinham filhos. Mas NGorá ficou nostálgico e se sentia só do lado de fora.NGorá convidou os passarinhos para abrir a pedra. Primeiro vieram araras e tucanos, de bicos enormes, que se quebraram com a dureza da pedra -os índios chamam o bico das aves de machado. Vieram papagaios e periquitos, mas quebraram o machado. Até que veio um passarinho e furou a pedra com seu pequeno bico. Aos pouquinhos, fez um buraquinho na pedra. As pessoas começaram a sair. Saía um e dizia: "Sou Gavião". Saía outro e dizia: "Sou Zoró". Saía outro e dizia: "Sou civilizado". Aí começaram a sair os cintas-largas. Um disse ao sair: "Sou Kabã". Outro cinta-larga disse: "Sou Kakin". Uma mulher grávida quis sair da pedra, mas entalou no buraquinho. "É por isso que existem poucos cintas-largas hoje, porque uma parte deles ainda está na pedra."Segundo Carmen Junqueira, esse mito, ou lenda, é uma mensagem sobre a esperança da libertação -sair da pedra- e sobre o poder da mulher de dar ou de tirar a vida. Para os cintas-largas, a mulher é mais valorizada do que o homem na hora de negociar casamento, por exemplo.
Como os bichos foram criados
NGorá é o maior deus dos índios da etnia cinta-larga. Na história do mundo contada acima, os seres humanos existiam antes de terem surgido os animais e as plantas. Então NGorá, que é o criador, resolveu criar os bichos. Ele olhou para uma moça bonita e disse: "Você vai ser uma arara". Depois olhou para o menino mais moreno e disse: "Você vai ser um macaco-prego".Havia um rapaz muito bonito, e NGorá disse que ele seria a onça, que é o bicho mais bonito da selva.Só que o rapaz era cheio de si e não prestou atenção. Quando percebeu que NGorá falava com ele, o rapaz respondeu titubeante: "Ãh?".NGorá ficou com raiva e disse: "Você vai ser a anta, o maior bicho e o melhor alvo dos caçadores".Foi assim que NGorá criou os animais. E o que são os animais? "São transformações dos homens", explica a antropóloga Carmen Junqueira. "Se meu cachorro [de estimação" for um desdobramento meu, tenho ainda mais respeito por ele. Aquele que entende isso se percebe como criatura e ao mesmo tempo como criador. A criação é o criador, e os cintas-largas lembram essa idéia. Eles pedem licença ao grande espírito para caçar o animal e comê-lo."BRASIL Professora conta que alunos índios não conhecem o valor do dinheiroCrianças cintas-largas deixam de ir à escola
HUDSON CORRÊADA AGÊNCIA FOLHA, EM PIMENTA BUENO (RO) Crianças índias, do povo cinta-larga, deixaram de ir às escolas da cidade de Pimenta Bueno, em Rondônia, por causa de uma briga por diamantes. Elas moram na aldeia. A disputa por diamantes ocorre na terra dos índios em Espigão d'Oeste, cidade de Rondônia a 534 quilômetros da capital, Porto Velho. Em 7 de abril, 29 garimpeiros foram mortos pelos índios na aldeia Roosevelt.Eles foram assassinados porque procuravam diamantes na terra dos índios. Revoltados, seus colegas garimpeiros prenderam e amarraram, no dia 10 de abril, o índio Marcelo Cinta-Larga. Marcelo foi solto no mesmo dia. Depois do que aconteceu, os pais das crianças tiveram medo de levá-las às escolas da cidade.Até 14 crianças que estudam em uma escola perto, a 2 km da aldeia, devem deixar de freqüentar as aulas enquanto o conflito não for resolvido.A professora disse que os pais ficaram com medo de deixar os filhos saírem da aldeia depois que os garimpeiros foram mortos. Ela contou que, geralmente, meninas e meninos cintas-largas não sabem o valor do dinheiro quando vão comprar doces.A indigenista Maria Inês Hargreaves lembra que, antes de tomarem contato definitivo com os "brancos", no final dos anos 60, os índios não eram apegados ao dinheiro nem a bens materiais.Maria Inês entrou em contato com os cintas-largas nos anos 80. Em novembro de 2003, ela foi à reserva indígena para preparar um relatório para o governo sobre a disputa entre índios e garimpeiros.Pandere Cinta Larga, pai de uma criança, disse que os índios procuram diamantes para vender e sustentar as aldeias. Falta dinheiro do governo, disse ele. Na aldeia, crianças brincam no garimpo onde procuram diamantes.
Usam roupa e têm carros O povo cinta-larga fala a língua tupi-mondé e vive nas aldeias, que são vizinhas, Roosevelt, Parque do Aripuanã, Serra Morena e Aripuanã -em Rondônia e num trecho de Mato Grosso-, numa área de 2,7 milhões de hectares (18 vezes a cidade de São Paulo).O contato definitivo com "os brancos" ocorreu em 1969. Hoje, os índios cintas-largas usam roupas e, em 2003, tinham camionetes Toyota Hilux e Bandeirantes.Atualmente, a população é de cerca de 1.300 índios.
Regras dos cintas-largas
"Numa aldeia, quem comete um crime deve ir embora. As regras de comportamento são bem claras", explica a antropóloga Carmen Junqueira. Os cintas-largas acreditam em forças sobrenaturais que cuidam do mundo.* Mulher menstruada não pode participar de um certo tipo de ritual;* Homem com filho pequeno não pode guerrear nem matar.* Logo que um casal tem bebês, os índios acreditam que o pai e a mãe não podem comer certo tipo de peixe. Se isso ocorrer, a criança pode não andar direito, ficar com tremedeira e de não dormir bem.* Os cintas-larga crêem que podem aparecer doenças nas crianças se os pais não cumprirem as proibições alimentares.* Quando nasce, o bebê deve ser banhado com certas folhas para que tenha saúde.* Quando a moça menstrua, os pais devem buscar ervas para que tenha filhos no futuro.* Os índios acreditam que, desobedecendo a essas regras, vão ficar doentes.
Generosidade e auto-suficiência
Os cintas-largas são saudáveis, alegres e generosos. "Quanto mais generoso for, mais prestígio o índio tem", diz Carmen Junqueira. Por exemplo, se você elogiar um índio que estiver com um cesto de caju, ele se sente na obrigação de lhe dar os cajus. Esses índios adoram danças e festas. Homens e mulheres tocam vários tipos de flauta.As crianças são incentivadas a ser auto-suficientes: a caçar, a pescar, a cultivar e a colher por conta própria. Não oferecem ajuda e só a pedem quando necessário.Em 1500, havia cerca de 6 milhões de índios no Brasil. Estima-se que estão aqui há 5.000 anos. Hoje vivem aqui apenas 350 mil índios.

Lei para acabar com conflito
IURI DANTAS DA SUCURSAL DE BRASÍLIA Imagine que você achou petróleo no quintal de casa. De acordo com a lei brasileira, mesmo debaixo da sua casa, o petróleo pertence ao país e não a você. A mesma regra vale para qualquer coisa que esteja no subsolo, ou seja, debaixo da terra.Em Rondônia, por exemplo, os cintas-largas descobriram uma jazida de diamantes na área da reserva onde vivem. Não podem retirar de lá os diamantes, porque as pedras pertencem ao governo do Brasil.No caso dos índios, é mais complicado, porque as terras onde moram não são só deles, mas do governo também. Mas, enquanto os índios e seus filhos e os filhos dos seus filhos viverem, podem plantar, caçar, pescar e ter uma vida normal. Os "brancos" não entram sem sua permissão.O problema é que, quando os índios encontraram diamantes, chamaram garimpeiros para ajudar no trabalho. Acabaram brigando pelas pedras.Se os diamantes são do país, e os "brancos" não podem entrar, como fazer? O Brasil vai perder essa riqueza? Não. O governo começou a discutir uma mudança na lei. A idéia é autorizar uma empresa a retirar os diamantes, mas tudo fiscalizado, para proteger a terra dos índios. Assim, parte do dinheiro da venda iria para os índios, outra parte, para a empresa, e outra, para o governo. Isso ainda não vale porque a lei não está pronta.

FSP, 01/05/2004, p. F3-F5

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