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Cientistas ao mar

O Globo, Sociedade, p. 27
01 de Mai de 2018

Cientistas ao mar
Cientistas fazem levantamento na Elevação do Rio Grande, no Atlântico.

CESAR BAIMA
Enviado especial cesar.baima@oglobo.com.br
O repórter viajou a convite do CPRM

-ITAJAÍ, SC- Na semana passada, o navio de pesquisa hidroceanográfico Vital de Oliveira, da Marinha, partiu do porto de Itajaí, em Santa Catarina, para uma expedição de grande importância científica, econômica e estratégica para o país. A bordo, pesquisadores do Serviço Geológico do Brasil - que ainda usa a sigla de sua antiga denominação, Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) -, acompanhados por cientistas de diversas instituições espalhadas pelo país, fazem a primeira campanha de estudos da Elevação do Rio Grande, no Atlântico Sul, desde que o Brasil assinou contrato para sua exploração por 15 anos com a Autoridade Internacional do Leito Marinho (ISA, na sigla em inglês), organismo ligado à ONU responsável por regular atividades que envolvam o fundo dos oceanos em águas internacionais, em 2015.
Localizada a cerca de 1,2 mil quilômetros da costa do Rio de Janeiro, fora, portanto, da jurisdição nacional, a região é alvo de forte interesse do Brasil desde 2009. Pesquisas do CPRM em parceria com a Marinha mapearam o leito oceânico lá, revelando pela primeira vez as dimensões e a complexidade deste gigantesco "planalto" que se ergue no fundo do mar, lembram o oceanógrafo Ivo Pessanha, chefe da Divisão de Geologia Marinha do CPRM, e o pesquisador em geociências da instituição Eugênio Frazão, cientista-chefe da expedição. Assim, nos anos seguintes, várias outras expedições - inclusive uma em 2013 com cientistas japoneses na qual foi utilizado o minissubmarino tripulado Shinkai, capaz de chegar a 6,5 mil metros de profundidade - recolheram cerca de 20 toneladas de amostras de rochas, que revelaram um grande potencial de recursos minerais exploráveis na área, o que estimulou o pleito do Brasil junto à ISA, além de contarem uma história de sua formação muito diferente da que se pensava até então.
'ATLÂNTIDA BRASILEIRA'
Segundo Pessanha, achava-se que a Elevação do Rio Grande era um "platô oceânico" de origem vulcânica, mas as análises das pedras coletadas mostraram que elas tinham características de rochas do continente. Com isso, hoje acredita-se que ela na verdade é em grande parte uma porção do antigo supercontinente de Gondwana que acabou submersa no processo de separação da América do S uleda África que"abriu" o Atlântico Sula partir de cer cade 130 milhões de anos atrás. Isso lhe valeu o apelido de "Atlântida brasileira", referência ao mítico Estado-ilha que teria dominado parte da África e Europa há milhares de anos. Se a elevação ainda estivesse acima da linha da água, algumas de suas "montanhas" seriam maiores que as mais altas do país, passando dos 3 mil metros.
Já Frazão explica que, depois que a elevação foi coberta pela água, a partir de cerca de 80 milhões de anos atrás, processos físico-químicos, em especial por volta de aproximadamente 30 milhões de anosa trás, levaramà formação de"crostas" ferro manganesíferas ri casem cobalto sobre o leito oceânico da região. Dividida sem"lâminas ", como um compensado de madeira, com cerca de 10 centímetros de espessura, estas crostas também apresentam altas concentrações das chamadas "terras raras", materiais muito usados em equipamentos de alta tecnologia e essenciais para sua fabricação, como telúrio, selênio, neodímio, índio, gálio, nióbio e tântalo, que tornam sua eventual exploração ainda mais relevante do ponto de vista econômico. Por fim, estas crostas estão "assentadas" sobre uma camada do leito marinho, chamada "substrato" pelos geólogos, formado por rochas ricas em fósforo, matéria-prima de fertilizantes fundamentais para o agronegócio eque o Brasil importa 70% doque usa.
- Em alguns minérios nestas crostas encontramse teores dez e às vezes cem vezes mais concentrados que nos depósitos continentais - destaca Pessanha, acrescentando que mais que seu alto valor econômico, a exploração destes depósitos tem grande importância estratégica e tecnológica. - Embora ainda não exista a regulamentação para a explotação (a efetiva mineração do solo marinho para retirada de recursos com fins econômicos em
grande escala) e os equipamentos para isso ainda estejam sendo desenvolvidos, existe uma corrida dos países que vão dominar os conhecimentos necessários para encontrar esses depósitos e delimitar onde estão, reivindicando-os para futuro aproveitamento numa ação estratégica.
Ainda que qualquer eventual atividade de mineração na Elevação do Rio Grande não esteja contemplada no contrato coma ISA, nem haja um arcabouço legal para tanto, o organismo exige um minucioso levantamento do meio ambiente na região para avaliar e mitigar seus possíveis impactos no futuro, bem como designar locais que por sua biodiversidade e/ou vulnerabilidade não devem ser "mexidos". Esta primeira expedição do CPRM desde a assinatura tem como principal objetivo começar amonta roque os pesquisadores chamam "linha de base ambiental" das áreas outorgadas ao Brasil - 150 "blocos" de 20 km² cada, num total de 3 mil km² da área da elevação, de cerca de 490 mil km² - e seu entorno.
- É um contrato de exploração no sentido de estudo, pesquisas para melhor conhecimento da região - ressalta Pessanha. - É um modelo muito diferente do aplicado em terra, governado pelo princípio da precaução, em que a empresa com interesse econômico também tem que fazer a pesquisa de base para realmente delimitar as áreas que precisam e devem ser preservadas da ação humana.
Pelos termos do contrato, o Brasil tem 15 anos para fazer o levantamento de toda área outorgada, devendo cobrir mil quilômetros quadrados a cada quinquênio, para só então apresentar uma proposta de efetiva mineração de recursos na região, cuja regulamentação pela ISA também já deverá estar pronta até então. Este trabalho começa praticamente do nada, já que não faz muito tempo, até cerca de 40 anos atrás, achava-se que estas regiões profundas dos oceanos eram basicamente estéreis, conta Clóvis Motta. Único biólogo nos quadros do CPRM, nesta expedição ele terá ajuda de 19 pesquisadores de outras instituições do país convocados pelo oceanógrafo Angel Perez, professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), para fazer o levantamento.
- Não se preserva o que não se conhece - diz Motta, repetindo um "mantra" comum de seu campo. - Vamos fazer um grande levantamento dos ecossistemas de profundidade da região, começando pela produtividade primária, os organismos que são a base da cadeia alimentar, microscópicos, como o plâncton. Mais à frente também vamos analisar a macrofauna, animais maiores, que existem em ambientes assim, caranguejos, peixes abissais e os "jardins" de esponjas que fornecem abrigo e são fundamentais para a manutenção da vida de muitas espécies lá.
Segundo Motta, entre os principais riscos ambientais da eventual mineração das crostas metálicas da elevação que este tipo de levantamento pretende ajudar a entender, evitar ou mitigar estão "nuvens" de material em suspensão na água "levantadas" do fundo do mar pela atividade, que os cientistas chamam de "plumas" de partículas:
- Estas plumas são especialmente perigosas para organismos filtradores que estão na base destes ecossistemas e acabam tendo suas vias filtrantes entupidas por esses sedimentos, morrendo por sufocamento ou por não conseguirem se alimentar.
Embora as questões não estejam diretamente ligadas, o contrato com a ISA e as pesquisas na elevação são mais um elemento a reforçar o pleito do Brasil junto a outro organismo do sistema ONU para extensão de sua chamada "plataforma continental jurídica" para além do limite das 200 milhas náuticas (cerca de 370 quilômetros) definido pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982. Caso aceita, a demanda vai se traduzir na ampliação em quase 1 milhão de quilômetros quadrados do que é conhecida como Zona Econômica Exclusiva (ZEE) do país ao longo de sua costa, num projeto conhecido como "Amazônia Azul" que alcançaria um total de aproximadamente 4,5 milhões de km², ou mais da metade da área continental do território brasileiro, de cerca de 8,5 milhões de km².
Ratificada pelo Brasil em 1988 e em vigor desde 1994, a apelidada "Lei do Mar" deu um prazo de dez anos para que os países integrantes do tratado reivindicassem junto à Comissão de Limites da Plataforma Continental da ONU (CLPC) sua extensão até o máximo de 350 milhas náuticas (cerca de 650 quilômetros) da costa nas regiões onde o relevo submarino apresente determinadas características de continuidade. Assim, graças a levantamentos conduzidos desde 1987 sob a liderança da Marinha, em 2004 o Brasil apresentou sua proposta original referente a áreas nos litorais do Norte e Sul-Sudeste do país, com uma revisão para mais em 2006. Apesar de já ter sido parcialmente aceita pela CLPC, esta proposta enfrenta objeções de alguns países, em especial dos EUA, em certos trechos - o que exigiu a apresentação de novos adendos pelo Brasil em 2015 e 2017 -, e ainda aguarda aprovação final.
- Existe uma grande área na costa do Brasil, conhecida como Amazônia Azul, riquíssima e à disposição da sociedade brasileira. Mas para isso precisamos conhecer toda esta região, e o Vital de Oliveira tem foco nisso - resume o capitão de fragata Alex Urbancg, atual comandante do navio.

O Globo, 01/05/2018, Sociedade, p. 27

https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-estuda-porcao-submersa-de-sup…

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