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Cidade contaminada

CB, Brasil, p.14-15
08 de Out de 2004

Tema do Dia - Ameaça química
Cidade contaminada
Intoxicação causada por fábrica de inseticida do Ministério da Saúde coloca em risco 1,4 mil pessoas no Rio. Governo pretende pagar R$ 50 mil de indenização por família. Remoção de moradores deve ser imediata
Samanta Sallum
Enviada especial
Rio de Janeiro — Uma cidade assombrada pelo perigo que se espalha com o vento. O local que um dia abrigou um dos maiores projetos sociais do país está encravado na Baixada Fluminense, periferia do Rio. Mas não é a violência que atormenta a Cidade dos Meninos. Pelo contrário. Em meio à guerra urbana da cidade, o local é um paraíso de tranqüilidade. No entanto, as crianças da Cidade dos Meninos já foram expulsas dali há muito tempo. Tiveram de voltar às ruas carregando na alma a incerteza do futuro e no sangue uma possível contaminação por HCH, o pó de broca, um produto químico altamente tóxico usado como inseticida.
A 50 minutos do centro do Rio, em Duque de Caxias, ocorreu um dos casos mais graves de contaminação do solo registrados no Brasil. E o causador do acidente é exatamente quem tem a obrigação de zelar pela saúde pública, o Ministério da Saúde. A cidade que acolheu cerca de 1,2 mil menores carentes resiste apesar de ser uma área de risco à saúde humana.
Durante 40 anos, o local sediou projetos sociais da Fundação Abrigo Cristo Redentor, voltados a crianças pobres. Em 1950, teve de dividir o espaço, que pertence à União, com uma fábrica de inseticida do extinto Instituto de Malariologia — então ligado ao Departamento Nacional de Saúde. A fábrica, desativada no início da década de 60, deixou uma herança maldita à paisagem bucólica da região. Cerca de 40 toneladas de pesticida (HCH) foram esquecidas no local. O produto era usado no combate ao transmissor da doença de Chagas e da malária.
Em 1985, o uso e a comercialização do HCH foram proibidos pelo Ministério da Agricultura. A questão é que durante anos a substância foi manuseada pelos moradores de Cidade dos Meninos. Abandonado há décadas, o produto contaminou o solo, a água subterrânea, os animais e a vegetação da região. O grau de contaminação humana não é revelado pelo Ministério da Saúde.
O órgão, no entanto, assumiu a responsabilidade pelo problema e decidiu pagar R$ 50 mil de indenização para as 380 famílias que ainda moram no local. Muitas são de parentes de ex-funcionários da antiga fábrica. O governo tem de nos garantir tratamento médico, se for necessário, até o fim da vida, reivindica Zeni Melo, presidente da Associação dos Moradores da Cidade dos Meninos.
Renúncia a direitos
O recebimento da indenização prevista pelo projeto fica condicionado à desocupação dos imóveis e à assinatura de um termo de renúncia a qualquer direito ou ação relativa à exposição ao ambiente contaminado. Queremos começar o processo de remediação da área o mais rápido possível, mas com cautela. Para isso, é necessária a remoção das famílias do local para impedir que fiquem ainda mais expostas à contaminação. Vamos pagar indenização para que possam encontrar outra moradia, explicou Guilherme Franco Netto, responsável pela Coordenação Geral de Vigilância Ambiental em Saúde do Ministério da Saúde.
O projeto de lei já foi encaminhado para ser votado no Congresso com pedido de urgência. O relator do projeto é o deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP). Meu parecer deve sair em 20 dias. Na próxima semana, vou visitar o local para ver a situação. Não há dúvida de que o governo federal deve indenização a essas pessoas. Mas temos de avaliar os valores, explicou o deputado.
O HCH teve o uso suspenso em 1985 exatamente por causar danos à saúde humana. A contaminação ocorre por inalação, ingestão de alimentos contaminados e até absorção dérmica. Uma simples poeira espalhada pelo vento é um dos principais meios de contaminação.
De acordo com a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, o HCH é classificado como extremamente tóxico. Além de ser possivelmente cancerígeno, segundo o Centro Internacional de Investigação sobre Câncer. A substância fica armazenada nos tecidos gordurosos e no sangue. Mesmo se absorvido em pequenas quantidades, em caso de exposição prolongada, o produto pode causar danos ao sistema nervoso central.
O HCH já havia sido banido em diversos países na década de 80. No entanto, em 1989, era vendido livremente nas feiras de Duque de Caxias como pó de broca. Os próprios meninos internos da Abrigo Cristo Redentor pegavam o material para vender. O pó era usado para matar ratos e piolhos. Nesse caso, era aplicado diretamente na cabeça das crianças.
Leite e ovos não podem ser consumidos
Apesar do longo período de exposição ao produto tóxico, ainda não foram medidos os danos que a contaminação pode ter provocado à saúde da população. Não há tampouco previsão do que poderá vir a acontecer. Na década de 90, chegou a ser noticiado que 30 pessoas na área morreram de câncer. Fato que o Ministério da Saúde nega estar relacionado à exposição ao HCH. O número de mortes por câncer na região é inferior à média do Rio, por exemplo, de áreas que não tiveram contaminação, argumenta Daniela Buosi, coordenadora de Vigilância Ambiental relacionada à contaminação de solos, do Ministério da Saúde.
Em 1991, a Fundação Oswaldo Cruz apresentou relatório, com base em estudo toxicológico de uma amostra de sangue da população de Cidade dos Meninos, que denuncia quadro de contaminação humana. No ano seguinte, exame em 186 internos do Abrigo Cristo Redentor confirmou contaminação em 24,2% dos resultados. O Juizado dos Menores determinou então que o abrigo fosse desativado para que as crianças não permanecessem expostas.
Alimentos
Está oficialmente confirmado o alto grau de contaminação do leite de vaca e dos ovos de galinha que são produzidos na região, e que têm características rurais. Os cerca de 1,4 mil moradores estão proibidos de consumir tais alimentos. No entanto, o Ministério da Saúde afirma que não há ainda confirmação científica de que as famílias de Cidade dos Meninos possam estar realmente contaminadas.
O sangue de todos os moradores foi coletado no início deste ano para análise laboratorial, o que dará uma resposta definitiva sobre a contaminação. O Ministério da Saúde informou que as amostras foram enviadas aos Estados Unidos, porque no Brasil não há laboratórios capacitados para detectar a contaminação humana por HCH.
Diferentemente de uma contaminação radioativa, como ocorreu com o césio em Goiânia, há 17 anos, os sintomas da exposição ao HCH não são tão evidentes e rápidos. Os efeitos podem aparecer depois de décadas. O Correio apurou, no entanto, que parte da amostra do sangue está na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Rio de Janeiro.
Uma coisa é certa. O Ministério da Saúde admite que a área rural, até então preservada da expansão urbana, está tão comprometida que não pode ser habitada. Por isso, o governo federal pretende começar logo a remoção dos moradores. Dez casas foram demolidas porque estavam contaminadas devido à proximidade com o foco principal da substância tóxica. Os moradores foram transferidos para casas, alugadas e pagas pelo governo, fora da Cidade dos Meninos. (SS)

Controle de quem entra e quem sai
A Associação dos Moradores da Cidade dos Meninos acha baixo o valor de R$ 50 mil por família contaminada pelo HCH
Samanta Sallum
Enviada especial
Rio de Janeiro — Os moradores da Cidade dos Meninos sentem-se como prisioneiros. Reclamam que estão sendo cerceados e que o governo federal tenta dificultar a vida deles no local. Contam que estão impedidos de ampliar ou fazer reparos nas casas onde moram. Também não aceitam o rígido controle de quem entra e sai da área, vigiada por guardas. A maior parte das famílias é humilde, sem posses. Mas há moradores também de classe média.
Já impediram até a entrada de eletrodomésticos. Foi uma luta a gente conseguir permissão para o carteiro entrar aqui. Somos cobaias do governo. Já fizeram um monte de exame e até hoje não sabem o que temos, conta Zeni Melo Ferreira, presidente da Associação de Moradores da Cidade dos Meninos.
O depósito de 40 toneladas de HCH e o perigo que ele representa à saúde humana não impediram que gerações de famílias escrevessem ali sua história. Zeni nasceu, cresceu, casou e teve seus três filhos na Cidade dos Meninos. Mora lá há 34 anos e não teme amamentar sua filha de seis meses. A casa da família está próxima ao foco principal de contaminação.
O avô de Zeni era funcionário do governo e trabalhava na antiga fábrica de inseticida. O pai dela foi funcionário do Abrigo Cristo Redentor. Zeni, que é professora de Biologia, recusa-se a sair do local. Teme perder a moradia. Quem garante que, me tirando daqui, eu estarei curada? Fiquei exposta a esse produto a vida inteira. E sobrevivi. Eu e meus filhos estamos bem, por enquanto, diz ela.
Indenização controversa
A Associação dos Moradores não concorda com o projeto de lei encaminhado ao Congresso que prevê o pagamento de R$ 50 mil de indenização por família ou R$ 10 mil por pessoa pelos danos morais e materiais relativos à exposição a compostos organoclorados. A associação reivindica que o valor seja de R$ 150 mil por família. Isso porque o recebimento da indenização, segundo o projeto, está condicionado à assinatura de um termo de renúncia a qualquer direito ou ação no futuro relativa à exposição ao meio ambiente contaminado.
Não sabemos que problemas de saúde poderemos ter no futuro. Quem pagará nosso tratamento?, diz Zeni. Ninguém aqui é invasor, como o governo federal quer fazer parecer. Moramos aqui há décadas e fomos convidados para vir para cá, para trabalhar no abrigo e na fábrica, reclama. Aparentemente, o lugar parece inofensivo. É cercado por verde, tem árvores frutíferas, cavalos e vacas pastam e apenas o canto dos passarinhos quebra o silêncio do lugar.
A Unicamp realizou em 1999 testes em 300 moradores e detectou alta grau de contaminação em 85% deles. No entanto, o Ministério da Saúde contestou a metodologia usada e hoje oficialmente tais resultados são desconsiderados. Com base nesses testes, alguns moradores ajuizaram ações contra a União. Há registros de que moradores se queixaram de irritação nos olhos e garganta, vômitos, salivação intensa, rinite, sangramento de gengiva e até de tremores musculares.
O marido de Zeni, Ronaldo Silva Leal, 47 anos, foi o último diretor da Fundação Abrigo Redentor na Cidade dos Meninos. Hoje, é funcionário do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). É com tristeza que lembra do fim do projeto social. Uma pena ter acabado. Os meninos tiveram de voltar para as ruas. Aqui, tinham educação, alimentação e atividades de lazer. O abrigo, por causa da contaminação, teve de ser desativado em 1993 por decisão judicial, quando atendia 1,2 mil crianças de 3 a 18 anos.
Cerca de 180 internos chegaram a ser examinados pela Fiocruz, que identificou contaminação em 24% dos resultados. O paradeiro desses meninos é desconhecido. Mas, entre os atuais moradores de Cidade dos Meninos, há um ex-interno da Fundação Abrigo. Ele improvisou uma casa dentro de um dos pavilhões desativados do antigo abrigo.
Anderson de Matos, hoje com 29 anos, passou parte da adolescência na Cidade dos Meninos. É casado, tem um filho de 5 anos e trabalha numa empresa no centro do Rio. Não sabe se foi contaminado e não parece muito preocupado com isso. Já a mulher, Nair, 27 anos, quer sair do lugar. Anderson tem força para trabalhar. Está bem. Nunca reclamou da saúde. Mas eu tenho medo. Se o governo der um dinheiro para a gente se mudar, acho que vamos aceitar. Não saímos daqui ainda porque não temos para onde ir, conta ela.
Passados 15 anos, a atual gestão do Ministério da Saúde é que parece finalmente estar empenhada em dar uma solução para o caso e tenta um acordo com os moradores. Não estamos omissos. Queremos resolver o problema e proteger a saúde daquela população. Também estamos tomando providências em outras áreas do país para evitar que casos como esse se repitam, garante Guilherme Franco Netto, responsável pela Coordenação Geral de Vigilância Ambiental em Saúde do Ministério da Saúde.

Um problema de 58 anos
1946
Foi criado por decreto-lei o Instituto de Malariologia do Departamento Nacional de Saúde. A malária era endêmica em toda a Baixada Fluminense (RJ) desde o século XVI. O instituto tinha a missão de combater a doença e também outras, como febre amarela e Chagas.
1950
O Instituto de Malariologia inaugura a fábrica de inseticidas para combater o mosquito da malária. Ela foi instalada em área da União conhecida como Cidade dos Meninos, em Duque de Caxias. Casas foram construídas para a moradia de funcionários. Parte da área também já tinha sido doada à Fundação Abrigo Cristo Redentor, que mantinha ali projeto social com menores carentes.
1962
A fábrica de inseticidas é desativada. No entanto, permanecem no local os pesticidas. Desconhecendo o perigo, a Fundação Cristo Redentor mantém suas atividades sociais na área. O projeto cresce na década de 70, chegando a atender 800 menores.
1963 a 1984
Durante todo esse período, moradores da região usavam o pó de broca, o nome como tornou-se popular o HCH (hexaclorocicloexano), um inseticida do grupo químico dos organoclorados. Era usado pelos moradores para combater cupins, ratos e até piolhos. Nesse caso, era aplicado diretamente nas cabeças das crianças.
1985
O Ministério da Agricultura proíbe a comercialização e uso do HCH por causa dos efeitos nocivos à saúde humana. Diversos países já tinham banido o uso do produto.
1989
Constata-se que o HCH, o pó de broca, era comercializado livremente nas feiras de Duque de Caxias. A imprensa divulga denúncia e descobre que o produto era retirado das ruínas da fábrica de inseticida desativada da Cidade dos Meninos.
1990 a 1992
Nada é feito na prática para resolver o problema. Órgãos responsáveis pelo caso não se entendem e não acham solução. Moradores permanecem expostos à contaminação. Com medo de perder a moradia, já que não tinham para onde ir, preferem ficar no local. A Procuradoria Geral do Rio de Janeiro instaura inquérito civil e conclui que o Ministério da Saúde é culpado pelo abandono da área e pede a remoção das famílias. Ministério da Saúde avalia como prematura a retirada dos moradores.
1992
O Juizado de Menores determina a desativação do projeto social da Cidade dos Meninos para que os internos não permaneçam expostos à contaminação.
1993
Com a assinatura do Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta e de Obrigações perante o Ministério Público Federal. Ministério da Saúde, do Meio Ambiente e outros órgãos se comprometem a solucionar o caso. Ministério da Saúde assume o processo de remediação do local.
1995
Somente nesse ano, é cercada a área do foco principal de contaminação. É despejado cal virgem no solo contaminado como tentativa de remediar o problema. A mistura agrava a situação, porque produz outros compostos ainda mais tóxicos. Cerca de 600 internos no abrigo são removidos do local. Permanecem no local 380 famílias.
1999
É criado o Comitê Técnico Cidade dos Meninos, no âmbito do gabinete do ministro da Saúde.
2001
Dez casas são demolidas porque estavam contaminadas devido à proximidade do foco principal de contaminação. Moradores são removidos para casas alugadas pelo Ministério da Saúde fora da Cidade dos Meninos.
2004
O Ministério da Saúde assume a responsabilidade pela contaminação da área e decide pagar R$ 50 mil de indenização por família. Projeto de lei é encaminhado ao Congresso. Decisão é pela remoção imediata das famílias, que não concordam com o valor proposto pelo governo federal. Está previsto para dezembro o resultado final de exames de sangue que revelarão o grau de contaminação humana. Cerca de 350 amílias ainda moram na região.

CB, 08/10/2004, p. 14-15

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