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CENTRO DE TRABALHO INDIGENISTA

CTI- Centro de Trabalho Indígena-Brasília-DF
20 de Nov de 2002

Os fatos e a posição do Centro de Trabalho Indigenista - CTI - sobre o projeto de pesquisa intitulado "Usos de plantas psicoativas pelos Krahô" de responsabilidade da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP

1) Os Fatos

Em 1999, a bióloga e pesquisadora da UNIFESP Eliana Rodrigues contatou o antropólogo Gilberto Azanha, do CTI, para consultá-lo sobre a viabilidade de realizar sua pesquisa para tese de doutorado entre os Krahô, sob a orientação do Prof. Dr. Elisaldo Carlini, do Departamento de Psicobiologia daquela Universidade. Depois deste primeiro contato foi agendada uma reunião entre a pesquisadora e o antropólogo do CTI com o Prof. Carlini na UNIFESP. Nesta reunião, Gilberto Azanha explicou aos participantes os procedimentos necessários para viabilizar a referida pesquisa, o que incluía: a) a apresentação do projeto para aprovação do CNPq e FUNAI; b) a apresentação do projeto para as comunidades indígenas que seriam pesquisadas. Até onde pudemos conhecer, tais ritos formais foram cumpridos; inclusive com aprovação no CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa). Tanto é assim que poucos meses depois, a pesquisadora se apresentou em Carolina (MA), na sede da Associação Vyty-Cati (organização indígena integrada por 12 aldeias dos povos Timbira do Maranhão e Tocantins e parceira do CTI em vários projetos) para agendar sua vista a algumas aldeias Krahô. Ali, estabeleceu contato com Alberto Hapyhi Krahô, vice-presidente da Vyty-Cati e com o qual marcou a apresentação do seu projeto nas aldeias Nova e Rio Vermelho dos Krahô. Posteriormente, deslocou-se às aldeias mencionadas, cumprindo os ritos formais necessários ao pedido de autorização da FUNAI.

Em 2000 foi iniciada a pesquisa nas aldeias mencionadas. Dado o caráter da mesma, membros do CTI em Carolina recomendaram a ela que seria prudente estabelecer um documento formal, com valor jurídico, onde se estipularia os limites e as regras da pesquisa nesta etapa de coleta de dados. Várias versões deste documento foram confeccionadas e submetidas ao CTI e Vyty-Cati para análise. Neste meio tempo, por iniciativa do CTI, a UNIFESP pediu um parecer a um advogado especialista, Ana Valéria Araujo, indicado por Gilberto Azanha, com liberdade para sugerir as correções necessárias que julgasse apropriadas.

Em agosto de 2000, durante a reunião da Assembléia Geral da Vyty-Cati (que congrega todos os chefes e conselheiros das aldeias associadas), Eliana Rodrigues pediu um espaço para explicar para todos os presentes seu projeto de pesquisa e a última versão do protocolo que seria firmado entre os Krahô e a UNIFESP. A recepção dos índios ao projeto foi positiva e os caciques presentes autorizaram a diretoria da Vyty-Cati a assinar o protocolo com a UNIFESP. Nesta assembléia compareceram como convidados representantes de outras aldeias Krahô, com uma das quais (Iromjitô) a pesquisadora acertou visitas para a apresentação do seu trabalho.

Em fevereiro de 2001 o protocolo foi assinado pelo presidente da Vyty-Cati e o reitor da UNIFESP depois de recebido o parecer do advogado especialista, que sugeria a inclusão da cláusula de sigilo sobre os dados coletados e a condicionalidade a outro documento jurídico sobre utilização dos dados a serem levantados para outros fins que não compor a tese de doutorado da pesquisadora, pontos incluídos no documento assinado.

Em meados de 2001 a pesquisadora deu por encerrada sua pesquisa de campo. Na reunião seguinte da Assembléia Geral da Vyty-Cati, realizada em agosto de 2001, a assembléia atendeu recomendação do CTI e decidiu: 1- não assinar qualquer novo documento jurídico para uma outra fase da pesquisa até que o novo Estatuto do Índio, que regulamentaria a matéria sob vários aspectos não fosse aprovado pelo Congresso Nacional; 2- que qualquer iniciativa de continuidade da pesquisa deveria passar também pelo crivo do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético.

Em novembro de 2001, três membros da aldeia Nova dos Krahô, incluindo além do vice-presidente da Vyty-Cati também o principal informante de Eliana Rodrigues, foram convidados pelo Departamento de Psicobiologia da UNIFESP para uma visita a São Paulo para conhecer as instalações da UNIFESP e do laboratório Aché, então um dos possíveis interessados em patrocinar a outra etapa (análise dos extratos) da pesquisa iniciada por Eliana Rodrigues. Nesta ocasião, o vice-presidente da Vyty-Cati solicitou ao professor Carlini o agendamento de uma reunião com todos os interessados, incluindo Gilberto Azanha do CTI. O CTI solicitou à Vyty_Cati que convidasse também o Dr. Dalmo Dallari como convidado da Vyty-Cati. Nesta reunião, a posição do CTI, apoiada pelo Dr. Dalmo Dallari, é a de que seria necessária a criação de um grupo de trabalho integrado pelos advogados das partes envolvidas para o estudo aprofundado da legislação em vigor e das propostas em tramitação. Não ficou claro quem articularia as reuniões, mas o departamento jurídico da UNIFESP acabou por assumir, em parte, tal encargo.

Ainda em novembro de 2001, a Vyty-Cati encaminha novo documento à UNIFESP reafirmando as decisões tomadas na última Assembléia Geral, suspendendo a pesquisa e não autorizando a iniciativa de enviar uma agrônoma para a implantação e acompanhamento de viveiros de plantas medicinais nas aldeias e condicionando novamente que as negociações não seriam retomadas enquanto o projeto não fosse submetido ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético.

Em fevereiro de 2002, a Vyty-Cati solicita nova reunião em São Paulo em função do Departamento de Psicobiologia da UNIFESP ter divulgado nos meios de comunicação partes da pesquisa (e promessas de avanços futuros) quando na reunião anterior essa divulgação havia sido impedida e proibida pela Vyty-Cati. Além disso, contrariamente ao que havia sido aconselhada, a UNIFESP envia uma engenheira agrônoma para visitar as aldeias. Em resposta a esta carta, a UNIFESP agenda nova reunião em São Paulo.

Nesta reunião, realizada em março de 2002, estiveram presentes advogados de vários laboratórios, o advogado Marco Antonio Barbosa (indicado pelo Prof. Dallari), Gilberto Azanha (indicado pela Vyty-Cati) e uma antropóloga do Ministério Público Federal de São Paulo (representando a procuradora Maria Luiza Grabner, formalmente convidada, mas que não pode comparecer). Foram reiteradas as posições anteriores da Vyty-Cati, ou seja, de que a pesquisa deveria ser suspensa até que o Estatuto do Índio fosse aprovado e que o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético desse um parecer sobre esse projeto.

Em julho de 2002, com apoio financeiro da Funai e do CTI, foi realizada uma reunião com representantes (caciques ou seus vices) da maioria das aldeias Krahô, ocorrida na aldeia Nova sem a participação de não-índios, onde foi discutido o pedido de indenização feito pela Associação Kàpey e o teor do documento encaminhado pela mesma, sobre o qual os caciques presentes não tinham conhecimento. Em relação à pesquisa, manifestaram interesse pelos seus resultados, mas destacaram finalmente que todos os trâmites legais deveriam ser observados.

2) A POSIÇÃO

Os Krahô da aldeia Nova e a Associação Mãkraré continuam mantendo seu interesse nos resultados da pesquisa, como enfaticamente nos têm comunicado. O que significa isso? Até onde podemos entender, isso significa que eles querem saber se as plantas que os wajaká (seus "pajés" e "curadores espirituais") indicam, através dos "espíritos", têm realmente eficácia física, se prestam a curar efetivamente. O que nos parece estar em jogo, primordialmente, é isso, e não os resultados financeiros de uma possível comercialização dos fármacos ou extratos farmacológicos que poderiam resultar da pesquisa. O tipo de reflexão que esta posição implica é inusitada, no contexto cultural e social dos Krahô, senão dos Timbira e quiçá dos povos de língua Jê como um todo. Por que? Porque os Krahô da aldeia Nova, como dizem explicitamente, querem comparar o conhecimento de seus wajaká com o conhecimento da ciência do cupen - e tirar dessa comparação alguma vantagem para os Krahô e os outros povos indígenas: constatada a eficácia clínica das plantas, poderiam produzir remédios destas plantas para usar nas aldeias, por meio de um laboratório do Governo Federal, como nos explicou um wajaká. Mas, como adiantou esse mesmo wajaká, o Governo deveria remunerar por isso a todos os wajaká que indicaram as plantas eficazes.
Tal posição dos Krahô da Aldeia Nova demonstra que, neste caso, o consentimento prévio fundamentado foi amplamente atendido, do mesmo modo como entendemos que a postura ética mantida antes e durante a pesquisa por Eliana Rodrigues não encontra reparos da nossa parte (vide, a este respeito, Rodrigues, 2001: 47 e ss). Contudo, discordamos - e já deixamos claro esta nossa posição por meio de documentos e nas reuniões acima citadas - o Departamento de Psicobiologia da UNIFESP pretende usar o protocolo de intenções assinado pela Vyty-Cati - cuja forma e teor é de eficácia jurídica comprovadamente reduzida - para dar continuidade aos "experimentos farmacológicos".
A posição dos Krahô da aldeia Nova, por outro lado, mesmo que nascida do - ou provocada por - o diálogo com a pesquisadora Eliana Rodrigues (lembramos que o objeto da sua pesquisa é justamente a relação entre "eficácia simbólica e princípios ativos"), contrasta claramente com aquela da UNIFESP, que vê no prosseguimento da pesquisa, assim entendemos, uma chance de conseguir financiamento para si, seja através da FAPESP (no mínimo) ou de algum laboratório farmacêutico interessado na síntese e comercialização de algum princípio ativo (no máximo). Não vai aqui nenhum julgamento moral da nossa parte, porque entendemos que sem recursos financeiros não se faz pesquisa em qualquer parte do mundo. Contudo, para nós ficou patente, a partir dessa posição do chefe do Departamento de Psicobiologia da UNIFESP, que a relação com os índios - tidos como meros fornecedores da matéria prima básica - era apenas um detalhe e não o foco principal de seu interesse.
Também discordamos radicalmente do modo como a UNIFESP, através do Departamento acima citado, buscou conduzir a seqüência da pesquisa, e numa atitude no mínimo arrogante, pretendeu gerar um fato que suscitaria, a posteriori, seu embasamento jurídico. O que recriminamos nesta posição é a omissão da UNIESP em discutir esse aparato jurídico, já que as discussões sobre a utilização dos conhecimentos tradicionais e sobre os instrumentos jurídicos protetores estavam, à época, bem adiantados para serem ignorados. Além disso, causou-nos uma grande frustração ver que a nossa proposta de criação imediata de um grupo de trabalho (composto por juristas, antropólogos e o Ministério Público Federal) para uma discussão balizada sobre a Medida Provisória no 2.186 e suas conseqüências para os índios e os instrumentos jurídicos necessários a uma justa repartição dos benefícios - se o grupo indígena por ventura estivesse conscientemente disposto a partilhar seu conhecimento com "o resto da humanidade" e não só com os outros índios - não tenha encontrado respaldo da UNIFESP.
Portanto, nossa posição sempre foi bem clara quanto ao prosseguimento da pesquisa nesta nova fase: somos contrários, até que as medidas jurídicas acima mencionadas estejam consolidadas.

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