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Catálogo reúne fontes históricas sobre terra dos Pataxó Hã-hã-hãe

Site do ISA-Socioambiental.org-São Paulo-SP
Autor: Fernando Vianna
28 de Fev de 2003

Resultado de 4 anos de pesquisa da equipe do Museu do Índio, Povos indígenas no sul da Bahia: Posto indígena Caramuru-Paraguaçu (1910-1967) pretende colaborar para a resolução do impasse jurídico-administrativo que ainda envolve uma das terras indígenas mais flagrantemente usurpadas na história recente do Brasil

Quando o índio Galdino foi incendiado vivo numa parada de ônibus em abril de 1997, tinha ido a Brasília por conta de uma luta que mobiliza seu povo, os Pataxó Hã-hã-hãe do sul da Bahia, desde o início dos anos 1980: recuperar a posse da terra que, numa triste combinação de esquizofrenia administrativa do Estado brasileiro, grilagem de terras e violência fundiária, acabaram por perder. Há poucos dias, uma delegação Hã-hã-hãe esteve com o presidente Lula, lembrando que a luta ainda não se encerrou.

Das mãos dos índios, Lula recebeu o livro Povos indígenas no sul da Bahia: Posto indígena Caramuru-Paraguaçu (1910-1967) e um documento retratando a violência que se abate contra indígenas no estado nordestino. Na ocasião, os Hã-hã-hãe ainda cobraram agilidade do Supremo Tribunal Federal no julgamento do processo que pede a nulidade dos títulos fundiários concedidos a fazendeiros no interior de sua Terra Indígena. "As terras são demarcadas, já ficou provado que são terras indígenas e esse processo está há 20 anos no Supremo Tribunal Federal sem julgamento", disse o líder indígena Gérson de Sousa Melo. O livro ajuda a documentar esse caso específico de flagrante usurpação de territórios indígenas no Brasil.

A história

Pataxó do Rio do Prado
Wied-Neuwied, 1821-1822
Arquivo Nacional
Como sempre, a história começa em épocas pré-colombianas não documentadas. Um segundo período é o tempo dos aldeamentos indígenas que, por impulso de missionários religiosos, se formaram no sul da Bahia, sobretudo no século XIX. A partir da década de 1860, vem a expansão da lavoura cacaueira na região, com impactos desestruturadores tanto sobre os aldeamentos como sobre os índios não aldeados, de diversos grupos do tronco lingüístico Macro-Jê, dentre os quais os Pataxó.

Com o cacau, tornam-se constantes os conflitos entre índios e fazendeiros. Em conformidade a seu nome, o Serviço de Proteção aos Índios - SPI, órgão indigenista oficial da época - induz o governo estadual da Bahia a criar uma reserva para os índios da região. Essa espécie de zona de refúgio é decretada em 1926 e demarcada dez anos depois. Para lá, o SPI atrai e leva indígenas remanescentes de aldeamentos extintos, a maioria sendo Pataxó Hã-hã-hãe e Baenã.

A terra indígena viria a ser conhecida pela combinação dos nomes dos dois principais Postos que ali se criaram: Caramuru e Paraguaçu. A partir de 1937, o SPI passa a administrá-la com base numa política de arrendamentos de parcelas do território a fazendeiros.

Por meio da violência física, os arrendatários não-índios expulsam os índios ou exploram seu trabalho. Na década de 1960, os Postos Indígenas são desativados, de modo que as terras da reserva ficam entregues, ainda mais, à cobiça dos não-índios. Nos anos 1970, a situação se agrava, com o governo da Bahia distribuindo títulos de propriedade incidentes sobre essas terras - um governo oficializa a reserva indígena, outro oficializa sua invasão. Vendo-se obrigados a trabalhar para terceiros em seu próprio território, quando não sumariamente expulsos, os índios não tem outra alternativa senão a fuga, a diáspora. Ao longo das referidas décadas, a população habitante da área Caramuru-Paraguaçu dispersa-se por outras aldeias indígenas, da Bahia e de Minas Gerais, bem como por terras e cidades vizinhas.

Nos anos 1980, tem início a luta pela recuperação das terras dos Pataxó Hã-hã-hãe. Desde então, e ainda hoje, uma ação judicial procura obter o reconhecimento definitivo de que são nulos os títulos de propriedade sobre a área de Caramuru-Paraguaçu. Fornecer dados que ajudem a elucidar as disputas fundiárias em questão é um dos principais objetivos do livro recém-publicado pelo Museu do Índio.

O livro

Foram quatro anos de trabalho, de 1999 a dezembro de 2002, quando a obra contendo seu produto final foi lançada. A equipe do SEP (Serviço de Estudos e Pesquisas)/ Museu do Índio dedicou-se a examinar, ler e fichar 2187 documentos do SPI, referentes à Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu e datados desde 1910 até 1967 - não por coincidência, os 57 anos de existência do próprio SPI.

Habitantes atuais da Terra
Indígena Caramuru-Paraguaçu

O cerne do volume consiste na apresentação, cronologicamente organizada, dessas 2187 fichas descritivas, relativas a um material que começou a ser classificado e microfilmado na década de 1970. Ao promover a catalogação de registros documentais, a obra é, antes de tudo, um guia de fontes para a pesquisa histórica sobre a área Caramuru-Paraguaçu. À descrição dos documentos, porém, somam-se textos assinados, que apresentam e contextualizam o levantamento realizado. Esses textos, a iconografia e mapas que os acompanham, podem satisfazer o leitor que não deseja necessariamente saber quais documentos consultar nos arquivos do Museu do Índio, mas aprender um pouco mais sobre a saga dos Pataxó Hã-hã-hãe.

É uma pena que as contribuições mais efetivas ao conhecimento da história indígena no sul da Bahia estejam dispostas ao final do volume, quase como anexos. É de se lamentar também a ausência de uma apresentação geral do catálogo, que indicasse a quem o toma em mãos o que esperar nele encontrar, suas partes constitutivas e a melhor forma de aproveitá-lo. Faz falta, igualmente, uma melhor caracterização de sucessivos etnônimos que aparecem em seu bojo - Kiriri-Sapuya, Kamakan, Baenã, entre outros -, que ficamos sem saber serem relativos a povos distintos dos Pataxó Hã-hã-hãe ou sub-grupos destes últimos.

Essas pequenas cobranças não pretendem diminuir a importância do trabalho condensado em Povos indígenas no sul da Bahia: Posto indígena Caramuru-Paraguaçu (1910-1967). São tais cobranças, por sinal, talvez um pouco deslocadas, na medida em que se afastam dos objetivos maiores da publicação, sucessivas vezes reiterados, por diversas pessoas com ela envolvidas:

"(...) tornar-se ferramenta nas mãos dos índios para a recuperação definitiva de suas terras (...)", escreve o então presidente da Funai Artur Nobre Mendes (p. 9);

"(...) contribuição, nos limites de nossa competência, à luta histórica dos povos indígenas", acrescenta o presidente do Museu do Índio José Carlos Levinho (p. 12);

"(...) instrumento de luta dos índios, cujas vozes, ainda hoje, continuam a reivindicar o direito sobre as terras que lhes foram expropriadas, ecoando - através de ações judiciais - dentro dos tribunais do país", comenta o professor de etnohistória da UERJ José R. Bessa Freire (p. 16);

"O registro dessa memória textual expões 57 anos da trajetória de tais povos - em grande parte sob a tutela do Estado -, fornecendo elementos para respaldar-lhes o direito de retomá-la como sujeitos de seu devir histórico", anota a coordenadora do SEP/ Museu do Índio Sonia Otero Coqueiro (p. 28);

"O conhecimento dos diferentes contextos, a partir da documentação reunida, pode constituir-se em estratégia de espaço político e social desse povo pela apropriação e reelaboração de valores e informações que lhe garantam melhor inserção na sociedade como um todo", repete Maria Elizabeth Brêa Monteiro, membro da equipe (p. 375).

Nobres objetivos. Só podemos torcer para que sejam alcançados.

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