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Carta aberta situação dos Guarani de MS

Fabio Mura-Carta Aberta Situação dos Guarani MS
09 de Abr de 2006

O Cordeiro matava a sede em um regato. Avista um Lobo em forçado jejum, que
lhe diz irritado: "que ousadia turvar a água que bebo!". "Estou matando a
sede a jusante, impossível cometer tal acinte", diz o Cordeiro. "Turvas a
água e falaste mal de mim ano passado", retruca o lobo. "Como", pergunta o
Cordeiro, "se não era nascido?". "Então foi teu irmão". "Perdoe-me, mas não
tenho irmãos!" Irritado o Lobo encerra a conversa: "Então foi algum parente;
cordeiros, cães, pastores, não me poupam". Esquarteja e come o Cordeiro.
La Fontaine (versão adaptada).

Prezados,
Queremos fazer uma breve análise sobre a grave situação dos
aproximadamente 40.000 indivíduos guarani-kaiowa e guarani-ñandéva do
extremo sul de Mato Grosso do Sul.
O sinistro episódio do dia 01.04.2006 no Passo Piraju (Dourados,
MS), além de se apresentar com toda sua dramaticidade, permitiu que
determinados preconceitos e estigmas sobre os índios se manifestassem com
extrema virulência. A imediata caracterização do evento por parte da Polícia
Civil de que os Guarani-Kaiowa teriam tecido uma emboscada aos seus três
agentes foi rapidamente divulgada pela mídia local como sendo "a verdade", e
não simplesmente uma hipótese preliminar, como de fato é.
A imprensa e a rádio não perderam a oportunidade de desenhar uma
imagem dos índios como selvagens e truculentos, beirando os limites da
desumanidade; as manchetes apontam que estes armam emboscadas e matam por
motivo vil. Há aqui, antes de tudo, incitação ao preconceito e ao ódio - o
que acaba por colocar em risco indistintamente toda a população guarani,
inclusive as que não têm qualquer ligação com o episódio.
Cabe ressaltar aqui o modo de proceder dos kaiowa e dos ñandéva
contemporaneamente. Estes têm demonstrado que priorizam a via diplomática a
arroubos belicosos diante das muitas ocasiões em que são agredidos pelo
"branco" - o que se manifesta em espectro amplo, que vai do racismo
cotidiano (em ônibus intermunicipais, nos supermercados, nas lojas
dascidades) até a freqüente presença de jagunços e seguranças particulares
(que, observe-se, muitas vezes são policiais atuando em "bicos" fora do
emprego oficial), os quais atuam rondando e atirando para o ar nas
proximidades de áreas de conflito.
Uma variável importante deve ser considerada na análise do
episódio.
Recentemente, em reunião no Gabinete do Chefe de Governo da
Prefeitura de Dourados, com a presença das autoridades de segurança locais
(inclusive a Polícia Civil e a FUNAI), foi encaminhada a decisão de que
qualquer intervenção policial em comunidades indígenas não ocorreria sem se
acionar prioritariamente a FUNAI. A iniciativa policial no Passo Piraju se
furtou a esta determinação. A Polícia Federal, por sua vez, teve sua atuação
marcada pela falta de empenho. Por fim, o argumento da Polícia Civil de que
não estava em questão uma terra indígena oficial visa ofuscar o fato notório
da presença no local de uma comunidade indígena, em área de conflito, com
permanência autorizada (através da intervenção do Ministério Público
Federal) pelo 3o Tribunal Federal de São Paulo, desde 2004.
Embora se espere da prática de um jornalismo democrático que
investigue com acuidade os fatos para divulgá-los com responsabilidade,
contrapondo fielmente versões das partes envolvidas de modo a que a opinião
pública possa construir pensamento isento, não é o que se constata na mídia
local diante do caso da morte dos dois policiais. Paradoxalmente ou
estranhamente a postura dessa mídia foi oposta quando do homicídio de
Dorvalino Rocha.
Este índio kaiowa, das terras homologadas do Ñande Ru Marangatu
(Antonio João, MS), foi assassinado a queima roupa em dezembro passado por
um segurança privado a serviço de fazendeiros que se opõem à regularização
da terra em benefício dos índios. A mídia aqui evitou emitir opinião
unilateral e precipitada, divulgando simultaneamente a versão dos indígenas
e da empregadora do autor do disparo.
Constata-se que na divulgação de notícias e formação de opinião,
os meios de comunicação locais podem sopesar diferentemente as informações e
assim alimentar preconceitos latentes na opinião pública; policiais,
comerciantes, estudantes universitários e cidadãos refletem esse proceder e
reproduzem informações da mídia colhidas junto aos produtores rurais. Quando
segmentos da população regional procuram compreender os índios, seu estilo
de vida, suas exigências econômicas, políticas e simbólicas, não o fazem a
partir de uma aproximação minimamente científica e pautada em algum rigor
descritivo e analítico, mas a partir de um corpus de informações e de
valores, que são antíteses da produção erudita: o senso comum.
Não constitui novidade que o senso comum seja responsável por
grande parte das ações e das opiniões manifestadas na vida social pelo
cidadão comum.
Tampouco é possível pensar, ingenuamente, que essas pessoas
possam se transformar em cientistas sociais, chegando a uma visão
relativística da vida humana, compreendendo em detalhes a visão do mundo dos
índios e suas características organizativas. Ademais, não surpreende o fato
de que, com base em seus interesses econômicos e de poder local, os
produtores rurais, procurem por todos os meios impedir que os ditames
constitucionais sejam cumpridos. Uma analise sumária é suficiente para
mostrar que o senso comum que vigora no Mato Grosso do Sul é amplamente
construído a partir de uma ideologia ruralista. Nesse sentido, não há dúvida
alguma sobre o fato de que para a maioria da população sul mato-grossense os
índios são um obstáculo ao progresso - identificado este nos empreendimentos
do agronegócio.
Como antropólogos estamos, portanto, acostumados a lidar com
categorias e representações morais nativas - e o senso comum da região em
pauta não constitui uma exceção. Há, porém que se constatar que nestes
últimos anos o nível dos conflitos locais entre fazendeiros e índios tem-se
acirrado, os primeiros procurando cada vez mais se articular para que sua
própria política seja mais eficiente, enquanto que os segundos multiplicam
as reivindicações para recuperar seus territórios tradicionais. Nesse
processo, cujos desfechos podem ser dramáticos (como o episódio de Passo
Piraju ou de Ñande Ru Marangatu), o que parece surpreendente é o papel do
Estado, a falta de um posicionamento claro, enérgico e ético, para enfrentar
a situação e dar solução ao problema fundiário local, respeitando a
Constituição Federal. (Observe-se que para este propósito não faltou
assessoria cientifica qualificada para delinear propostas apropriadas).
Muito embora há décadas tenha sido aclarado (por nós e por outros
colegas) aos responsáveis pela condução da política indigenisa oficial,
sobre a importância de uma ação indigenista específica, pensada e planejada,
priorizando a atenção sobre a produção de alimentos e as questões
fundiárias, não houve reações compatíveis às dimensões do problema por parte
do Estado brasileiro.
Nos últimos tempos, como dito, a situação vem se agravando, e, de
2003 para cá, isso tem se dado em progressão geométrica, uma das razões que
nos levam aqui a apresentar algumas informações e análises, no intuito de
contribuir para um mais acurado entendimento da realidade local.
Cabe destacar o fato de que o problema fundiário que embasa
conflitos e crises permanentes foi detectado no final da década de 1970,
quando os guarani-ñandéva e guarani-kaiowa do Mato Grosso do Sul iniciaram
um movimento, organizado a seu modo, de recuperar parte das terras de
ocupação tradicional tomadas pela colonização da região, mais intensa a
partir dos anos 1960 e sôfrega a partir do milagre brasileiro dos anos 1970.
O cenário regional criado nesse processo foi determinado a partir de
interesses hegemônicos relacionados ao propalado agronegócio. Como revelado
em inúmeros relatórios de Identificação de Terras guarani no estado,
observadores atentos da vida indígena têm apontado o fato de que nas últimas
três décadas os organismos de Estado vêm, de um modo ou de outro,
contribuindo para a reprodução de uma sistemática desapropriação de terras
tradicionais guarani que se transformaram em fazendas e empresas
agro-pecuárias, resultando na superpopulação das áreas reservadas pelo SPI
no início do século passado e na ampliação de conflitos e mortes por
violência e fome, dada a impossibilidade desse povo agricultor ter acesso à
terra.
Observando o desempenho da Fundação Nacional do Índio,
constata-se que por três ou quatro gestões se divulgou que os guarani do
país e em especial os do Mato Grosso do Sul teriam atenção prioritária,
reconhecendo-se formalmente, assim, a existência do problema. Da última vez,
em 2003, o anúncio foi feito na presença de número representativo de índios
em assembléia na Terra Indígena Jaguapire (Tacuru/ MS), organizada para
receber o seu Presidente. Não houve, contudo, qualquer ação efetiva na
continuidade.
A questão fundiária, ponto primordial na cadeia operativa dos
problemas, se manifesta de modo flagrante. As ações dos organismos de Estado
têm sido dirigidas no sentido de impedir a solução da dívida histórica para
com os povos indígenas no Brasil, como determina a Constituição de garantir
a ocupação de terras tradicionais. Cabe indicar que em relação aos Ñandéva e
Kaiowa do Mato Grosso do Sul, não há qualquer dúvida quanto à
tradicionalidade de ocupação, como revelam fontes documentais e estudos
contemporâneos e recentes. Esta comprovação não exige nenhum esforço.
A morosidade administrativa em instâncias decisórias de poder, no
entanto, tem sido fator relevante no acirramento de conflitos na disputa por
terras entre fazendeiros e indígenas. As atitudes protelatórias do Poder
Judiciário e a desconsideração tanto da especificidade étnica quanto da
argumentação científica antropológica sobre os Guarani têm suscitado
julgamentos sobre um universo social desconhecido, fortalecendo o senso
comum e ampliando a dificuldade de administrar um país a partir da
determinação de sua multiplicidade étnica.
É, assim, alarmante a atitude manifestada pelo Judiciário, do qual
se esperaria um posicionamento ponderado, distante das diatribes locais,
buscando informações nos acurados e aprofundados trabalhos científicos, como
publicações acadêmicas, relatórios de identificação de terras indígenas e
laudos periciais. Frustrando estas expectativas, mostra-se estarrecedor que
sentenças judiciais possam, ao contrário, fundamentar-se exatamente no
senso-comum, a partir de informações levantadas na internet, de modo
descontextualizado e de credibilidade, quando menos, questionável, ou então
a partir de uma declaração individual explícita de discordância com os
ditames constitucionais. A propósito, resulta ser emblemática a seguinte
argumentação de um Juiz Federal, retirada de sentença que emitiu liminar
paralisando o processo administrativo de demarcação da terra indígena kaiowa
de Jatayvary (Ponta Porã/ MS):

"Em artigo publicado [na internet] pelos antropólogos Fabio Mura e Rubem
Thomaz de Almeida está escrito que os kaiowás se distribuem no Mato Grosso
do Sul numa área de quarenta mil quilômetros quadrados. Esse território faz
fronteira com os Terena, ao norte, ao leste e sul com os Guarani Mbya e com
os Guarani Nandeva. Algumas famílias vivem nos litorais do Espírito Santo e
Rio de Janeiro. Os territórios ainda fazem divisas com outras áreas
indígenas de países vizinhos (

www.socioambiental.org). Se a tese acima for procedente, os não-índios terão
que buscar refúgio em Marte."

Aqui, o Juiz não se pergunta se as informações veiculadas pelos
antropólogos estão fundamentadas cientificamente; ele apenas aceita e faz
próprias as mais corriqueiras argumentações procedentes do senso comum, que
equaciona a demanda indígena como pretendendo recuperar a totalidade da
superfície do Brasil. Tivesse ele consultado outros trabalhos desses
autores, especialmente os técnicos, referentes às terras identificadas,
poderia verificar que as demandas dizem respeito a famílias indígenas
concretas, originárias de lugares também concretos. Tomando-se em conta,
porém, a totalidade das reivindicações fundiárias guarani-kaiowa e
guarani-ñandéva, o montante calculado não alcança um quinto de seus
territórios originários.
Finalizando, continuamos a insistir na necessidade premente do
Estado brasileiro se envolver profundamente com o problema Guarani do Mato
Grosso do Sul. É seu dever Constitucional assumir e decidir com firmeza e
rigor uma dinâmica para fazer respeitar Direitos e investir na composição de
uma instância específica e que unifique organismos de Estado; é seu dever
viabilizar recursos financeiros e humanos, refletir e planejar estratégias
que culminem em soluções efetivas aos problemas fundiários e de produção de
alimentos da população aqui focada. Tais iniciativas deverão contribuir, no
tempo, para melhorar a qualidade de vida dessa grande parcela do povo
guarani, cujas dificuldades, cabe reiterar, se avolumam em progressão
geométrica.
Por favor, divulgar o máximo possível.

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