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Cana invade os pastos e expulsa os rebanhos

OESP, Economia, p. B8, B10
15 de Abr de 2007

Cana invade os pastos e expulsa os rebanhos
Perspectivas para a agroenergia mudam paisagem no interior de SP

Agnaldo Brito

O treminhão corta a estrada poeirenta sem muita sutileza. Um a cada três minutos. Enquanto isso, o gado confinado pastoreia braquiária empoeirada. Os trens de estrada repletos de cana correm para alimentar as famintas moendas da novíssima Usina Continental, em Colômbia, região de Barretos, a ex -meca do boi. É para lá que ainda caminham, todo mês de agosto, multidões de peões de imitação atrás do maior rodeio do Brasil, o Barretão. Mas peão de verdade - que acorda às 4 da manhã para a lida da vacada - escasseia por essas bandas. O etanol de Lula e de Bush está numa velocidade impressionante, expulsando a tradicional pecuária comercial de São Paulo e mudando a vida de muita gente.

O rebanho sem pasto segue para Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Tocantins, lugares onde a cana também avança. A expulsão da pecuária de São Paulo também avança como nunca na região do Pontal do Paranapanema. As silhuetas de pontos brancos do gado nelore no horizonte dão lugar ao verde homogêneo até onde a vista alcança. Quem desce de Barretos rumo ao Pontal tem a convicção de que São Paulo pouco a pouco se está transformando num imenso canavial, digno de ser visto do espaço. Aliás, é o que tem mostrado a Embrapa Monitoramento por Satélite, que vê uma revolução cá embaixo. São milhares de hectares de pasto, ao longo da Rodovia Assis Chateaubriand, arrancados sem cerimônia para serem convertidos em canaviais.

A cana já ocupa 3,6 milhões de hectares em São Paulo - avanço de 17,64% desde 2003, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Na região de Ribeirão Preto, onde o setor sucroalcooleiro tal como conhecemos nasceu, a Embrapa Monitoramento por Satélite conseguiu medição ainda mais precisa. A cobertura de pasto caiu de 27,3% do território Noroeste paulista para 15,5%, recuo de 7,97 mil quilômetros quadrados. Falta mensurar o tamanho real desta migração na faixa do Oeste Paulista, de norte a sul, de Barretos a Ourinhos se considerarmos uma linha reta imaginária.

Neste canto de São Paulo nasceu e cresceu o gado zebu, raça que produziu fortuna na pecuária e garantiu ao Brasil produtividade imbatível. Toda a tecnologia para criação de boi, que transformou o País no maior fornecedor mundial de carne, tornou-se, por ironia, um problema. Há anos que a abundância da oferta não faz outra coisa senão derrubar preços, tingindo de vermelho o balanço financeiro da pecuária paulista.

'Vendi boi há quatro anos por R$ 55 a arroba. Vendi boi nesta semana a R$ 50 a arroba. Acho que isso diz tudo', desabafa Tiago Jacintho, neto de Francisco Jacintho da Silveira, um dos mais tradicionais criadores de rebanho comercial do País. Os preços definidos no setor são apenas um dado por trás de um cenário desolador. A remuneração obtida por cada garrote no máximo tem superado os custos. A lucratividade da pecuária é negativa há anos, o suficiente para que os herdeiros da pecuária de corte abandonem a tradição e apostem praticamente tudo no novo e aparente promissor negócio da agroenergia.

'Tudo o que está ocorrendo é muito revolucionário, portanto muito suscetível a erros', alerta Sérgio De Zen, do Centro de Estudos em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo (Cepea/USP), especialista em gado de corte e de leite.

REVOLUÇÃO

A rentabilidade por hectare com a cana é imbatível no momento. 'Historicamente, a tonelada de cana custava metade de uma arroba de boi. Hoje, está quase o preço de uma arroba. É fazer a conta. Não tem tradição que mude isso', justifica Jacintho, um dos donos da Fazenda Vista Bonita, propriedade de 5,7 mil hectares em Sandovalina, no Pontal do Paranapanema, onde 3,6 mil hectares de pasto estão sendo arrancados para abrir espaço para a cana. A Fazenda Continental, outra das mais tradicionais da pecuária paulista, na região de Barretos, foi mais ligeira na revolução que toma conta do interior de São Paulo.

Há quatro anos, a administração da fazenda decidiu chamar a Usina Santa Elisa, uma das mais tradicionais produtoras de açúcar e álcool do País - companhia que prepara uma fusão com a também tradicional Vale do Rosário. Os 4.086 hectares da Continental, que nos áureos tempos engordava entre 5 mil a 6 mil cabeças de boi, foram convertidos quase integralmente em canaviais. A cultura ocupa 3,2 mil hectares. A tradição pecuária ficou confinada a 250 hectares, onde pastoreiam 850 cabeças de gado de elite.

Puxava boi. Hoje produz 25 milhões de litros
Silvano Rodrigues Souza passou anos de olho no tacógrafo de um caminhão de transporte de gado. Foram centenas de viagens entre Campo Grande (MS) e a região da pecuária paulista. O maior surto de febre aftosa do País, em outubro de 2005 no Mato Grosso do Sul, fez minguar o ganha pão de Souza. O estado de sítio da pecuária na região interrompeu o trânsito de animais.

Agora, Souza não tira o olho de quatro monitores nos fundos da sala de controle da Usina Continental, em Colômbia, região de Barretos. O ex-puxador de boi é agora responsável pela produção de 25 milhões de litros de etanol que neste primeiro ano da usina deverão abastecer carros bicombustíveis ou ser exportados. É de Souza a missão de controlar remotamente toda a produção de álcool da usina. 'A pecuária fraquejou. A cana é o futuro', confia. Ele se prepara para voltar ao banco escolar. Fará um curso superior de tecnologia sucroalcooleira.

Saudoso, Anilson Henrique da Silva cuida da energia da usina Continental. Ele joga bagaço de cana na caldeira, onde começa o processo de autoprodução de energia numa usina. A lida com gado embala os pensamentos deste mineiro: morador de Planura, Silva gosta de visitar os sítios dos colegas nos fins de semana, onde há sempre uma vaca com cria para tirar leite. 'Não quero esquecer o que aprendi', justifica. O sonho de Silva é ter algumas cabeças de gado. O dinheiro curto nunca lhe permitiu realizar o sonho. Sobre a revolução canavieira que lhe deu emprego, guarda desconfiança. Acha que o fim do ciclo do boi de corte pode, em algum momento, tornar o produto caro demais. Sem saber, Silva descreve um ciclo econômico recorrente.

A cana que muda a geografia do interior paulista muda a vida de muita gente. Carlos Humberto de Carvalho era peão. Nos novos tempos cuida da parte agrícola da fazenda Continental. É o responsável pelo plantio e o corte. Saudades? 'Olha, meu amigo... Deixa pra lá.' Mas os bilhões que irrigam o setor sucroalcooleiro trouxeram salários maiores. 'A diferença entre um administrador agrícola da cana e outro da pecuária chega a ser de 50%', diz Lázaro Miguel Fernandes, administrador da Continental.

Na Fazenda Continental, Swamy Borges Gouveia é um dos poucos que sobraram na região. Peão desde sempre, Gouveia trata um rebanho de estrelas de leilão da raça brahman. 'Sou privilegiado', brinca. Montado em seu cavalo, toca o rebanho pelo resto de pasto das imensas glebas do interior paulista. Um tipo, por força das mudanças econômicas, cada dia mais escasso.

'Virada para etanol é irracional'
Pesquisador considera precipitada a migração da pecuária para a cana e teme pela economia a longo prazo

Agnaldo Brito

A febre do etanol, considerada a maior transformação econômica na área agrícola dos últimos tempos, aquece o ânimo dos produtores rurais. Mas seu impacto no futuro já traz grandes preocupações para os especialistas.

'Temo muito pelo que pode acontecer. Essa mudança econômica beira a irracionalidade', diz Sérgio De Zen, pesquisador do Centro de Pesquisa e Estudos em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo (Cepea/USP), especialista em pecuária de corte e de leite.

Para De Zen, são reais as vantagens da cana sobre a pecuária, mas ele insiste. 'Essa é uma fotografia de momento. Acho que falta uma observação de médio e longo prazos. Ninguém pode garantir os atuais preços da cana por longos períodos. Temo que algumas contas possam ser influenciadas pelo entusiasmo deste momento.'

Mudanças no campo são normais, mas nada se compara com o que ocorre em relação ao etanol em São Paulo. Uma parte considerável do capital externo que irriga a economia brasileira chega para comprar áreas cada vez mais caras, financiar o plantio de cana e adquirir usinas de açúcar e álcool num ritmo jamais visto. Em seis safras, o investimento na região Centro-Sul em novas unidades de esmagamento e processamento de cana atingirá US$ 14,6 bilhões. São pelo menos 73 novas usinas, sem contar aquelas ainda em estudos.

Mesmo assim, De Zen considera prematuro decretar o fim da pecuária paulista. A estrutura criada para a produção de gado nos 10 milhões de hectares que existem de pasto em São Paulo não deverá ser largada de vez. 'Isso não deverá ser abandonado do dia para a noite', afirma. Quem vive no setor afirma que a elevação do preço da terra conduz a pecuária a um nicho. Melhoramento genético ou criação em regime de confinamento, em áreas menores. Nesse caso, a pecuária vive um momento de profunda transformação.

A chamada pecuária extensiva, organizada em grandes extensões de terra, migra agora para Mato Grosso, Tocantins, para a fronteira agrícola que ameaça o bioma amazônico ou pantaneiro. Dessa forma, o etanol, que em todas as contas aparece como alternativa econômica viável para o mundo - na corrida pela substituição do combustível fóssil -, converte-se numa ameaça ambiental.

André Pessôa, diretor da Agroconsult, acha que a pecuária comercial em grandes áreas vai mesmo desaparecer em São Paulo. Também concorda com a concentração da atividade em nichos mais rentáveis, mas não considera isso um desastre. 'Os pecuaristas estão trocando a pecuária pela cana atrás de uma cultura mais eficiente e rentável? Que ótimo!'

Produtor quer aproveitar para exportar cachaça

Marianna Aragão

Depois do etanol, a cachaça. Para alguns produtores, o acordo entre Brasil e Estados Unidos para produção de álcool combustível pode abrir portas do mercado americano para a bebida. 'O potencial de exportação é enorme. Os EUA são um dos principais consumidores de destilados do mundo', explica Vicente Ribeiro, membro do Conselho do Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac). Segundo dados da Agência de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), apenas 1% da produção brasileira é exportada. E pouco dos 13 milhões de litros que vão para o exterior chegam aos EUA. Os principais destinos são Alemanha, Paraguai, Itália e Portugal. A idéia é fazer com a cachaça o mesmo que a indústria mexicana fez com a tequila, que hoje tem 15% do mercado de destilados norte-americano.

Antes, no entanto, os EUA precisam reconhecer oficialmente a origem brasileira da cachaça e estabelecê-la como categoria de bebida. Hoje, ela é vendida com a denominação 'brazilian rum' no rótulo. Segundo Ribeiro, um acordo entre os dois países resolveria o problema. 'O contexto atual é altamente positivo para isso.'

Para o o gerente de exportação da cachaça Magnífica, Daniel Groisman, a certificação impediria que a cachaça fosse produzida em outros países o que, segundo ele, já ocorre. 'A bebida brasileira não pode ter genéricos.'

OESP, 15/04/2007, Economia, p. B8

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