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Caminho espinhoso

Revista Educação-São Paulo-SP
01 de Mai de 2005

Projetos educacionais visam reverter a perda da identidade cultural - mal que se associa à subnutrição e vem assolando as crianças indígenas

Em 2004 morreram 15 crianças da etnia guarani-caiová no Mato Grosso do Sul. Apenas nestes dois primeiros meses do ano já morreram outras 8, por diversas doenças, mas todas elas agravadas pela falta de nutrição. Dados da Funasa (Fundação Nacional de Saúde) responsável pela saúde indígena, a mortalidade infantil é em média duas vezes maior entre os índios. Em meio a críticas à administração da Funasa, especialistas, como Zilda Arns, presidente da Pastoral da Criança relacionam essa pobreza material à indigência cultural imposta aos nativos, indicando que o problema passa pela área da educação.

Atualmente encontram-se em andamento projetos que visam melhorar a auto-estima das crianças indígenas, por meio da ampliação da consciência histórica e de estímulos à preservação da língua original e das suas raízes culturais. Mas os jovens índios que não ainda tiveram esta oportunidade não se acham apenas expostos à exclusão - eles correm risco de vida. Entre 1986 e 1995, suicidaram-se mais de 200 índios guarani-caiovás, no Mato Grosso do Sul. O alto índice de suicídio vem acompanhado de sérios problemas de alcoolismo e prostituição. A perda da memória cultural e o abandono das tradições levaram à miséria e à desnutrição, num drama que vem se agravando nos dias de hoje.

"Nesta região, o problema não atinge apenas as aldeias que aparecem nos noticiários", diz Antonio Brandi, coordenador do Programa Kaiowá-Guarani da Universidade Católica Dom Bosco, referindo-se às mortes de crianças por desnutrição divulgadas este ano. São ao todo 27 aldeias, com ima população indígena que chega a 30 mil pessoas. Apenas em Dourados, numa área de 3,5 hectares vivem 11 mil índios, apertados num território em que a Reforma Agrária assentaria apenas 200 famílias, isto é, cerca de 1000 pessoas. "A desnutrição atinge quase todas as aldeias, em níveis mais ou menos graves e reflete o descaso do governo para com os índios. Por outro lado, existem projetos de formação de docentes, e cada vez mais os professores são índios das próprias aldeias".

O projeto da Escola Mbo'Eroy Guarani-Kaiowá, também no Mato Grosso do Sul, foi criado em 1990 a fim de utilizar a educação para salvar da extinção a etnia guarani-caiová. Em Amambaí, a 100 quilômetros de Caarapó, a escola municipal foi criada para atender três aldeias próximas que viviam em extrema pobreza, assoladas pela desnutrição, onde 90% da população adulta tinha problemas de alcoolismo.

Recuperar a auto-estima do povo, por meio da valorização de sua cultura, significa misturar disciplinas como geografia, história e matemática, com atividades que remetem às tradições dos antepassados. No currículo da escola, as crianças têm aulas sobre saúde e cultura tradicionais. Aprendem artesanato, pintura e rituais religiosos em aulas cujas cartilhas são elaboradas em língua guarani.

Segundo a Secretaria Municipal de Educação que apoiou o projeto, após sua implantação notou-se uma queda na rotina de suicídios. O índice de índios com problema de alcoolismo caiu 50%, à medida que rituais tradicionais quase esquecidos voltavam a ser praticados. Ao lado dos professores pais, líderes comunitários e pajés também participam das atividades didáticas. Além disso, toda a comunidade se envolve na administração da escola. Até porque viver em comunidade é uma sabedoria que as tribos cultivam há séculos.

O coordenador de Educação Indígena do MEC, Kleber Gesteira, faz elogios às iniciativas de várias comunidades indígenas. "Os projetos menos autoritários conseguem resultados muito bons, de fazer inveja a políticas indigenistas do Canadá e dos EUA", afirma. "Os educadores têm muito a aprender com essas experiências. Temos pérolas pedagógicas em comunidades muito humildes. As escolas não-indígenas que puderem entrar em contato com essas escolas e trocar informações e materiais, vão se enriquecer muito, e os educadores vão refazer suas trajetórias".
Educação e cultura - Boa parte dos projetos de educação indígena está diretamente ligada à questão territorial. Limites de território e de propriedade são noções estranhas à cultura da maioria das etnias indígenas. Na tradição nativa, faz pouco sentido mapear o território e traçar fronteiras para estabelecer o início e o fim das áreas em que vivem. Compreender o conceito cartográfico de território dos brancos e entender o que é direito à propriedade é, portanto, o primeiro passo para que possam lutar pela demarcação e defesa de suas terras.

"A escola é para defender a nossa área, a nossa cultura e segurar nossos recursos naturais", diz Wary Kamaiurá, professor de uma das escolas indígenas instaladas dentro do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso - a maior reserva indígena do Brasil, criada em 1961. O projeto de formação de professores do parque procura facilitar a compreensão da cultura dos brancos à população indígena. Por isso, geografia e história, entre as demais disciplinas do currículo - igual ao de qualquer escola tradicional - são ensinadas por professores indígenas.

A mesma preocupação está presente no Projeto Anike, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima - zona de intensos conflitos entre indígenas, garimpeiros e agricultores. O projeto visa preservar a identidade cultural das tribos indígenas, porque as aldeias foram perdendo contato entre si, com a invasão dos brancos. Se não for aprovada a continuidade física de suas terras, esse processo de ruptura com as raízes culturais poderá ser definitivo. O projeto educacional tenta minimizar essa perda com a inclusão, no ensino da história, das tradições, lendas e conhecimentos dos indígenas de Roraima.

A educação também tem importância fundamental para a preservação das línguas indígenas. Somente após a Constituição de 1988 os povos indígenas ganharam o direito de serem educados tanto em suas línguas maternas quanto em português. Antes disso, a transmissão dos idiomas ancestrais na escola dependia de iniciativas isoladas - muitas vezes até de professores não indígenas.

Com a Lei de Diretrizes e Bases, em 1996, foi dada a prioridade para a utilização de professores de origem indígena. Surgiram então programas de capacitação dos membros das comunidades para a prática do ensino. O programa Ará Verá, no Mato Grosso do Sul, desenvolvido há cinco anos em parceria da Secretaria Estadual de Educação com municípios e universidades, já formou mais de cem professores. "A preocupação é capacitar professores indígenas que tenham recebido a formação tradicional, mas não se esqueceram de suas raízes", diz a coordenadora Veronice Rossato.

A preocupação em preservar as raízes também é mencionada por José Luiz de Souza, coordenador da Escola Municipal Ejiwajegi, em Porto Murtinho (MS), que ressalta a importância da identificação dos índios com o material didático. Ele conta, como exemplo, que os alunos recebiam livros didáticos que falavam de índios do passado. "Ao verem seus parentes do tempo da colônia vivendo em ocas, estranhavam e sentiam-se discriminados".

Ele coordenou um projeto de elaboração de material didático feito pelos próprios estudantes Kadiweu. Ao longo do processo, os alunos discutiram os conceitos de aldeia, território, município e Estado e resgataram suas tradições culturais, com a participação ativa dos idosos das aldeias. "O resultado foi a elevação imediata do nível de auto-estima dos alunos", conta Souza.

Ensino médio - Segundo dados do Inep relativos a 2003, existem 1.981 escolas de ensino fundamental em terras indígenas; do total, 262 são de 5ª a 8ª série. Apenas 26 escolas têm ensino médio. A exigência de graduação torna difícil a formação de professores indígenas para o ensino médio. Ainda são poucos os programas voltados para a formação superior de indígenas. A Universidade do Estado de Mato Grosso tem um projeto pioneiro, o Terceiro Grau Indígena, que oferece cem vagas para os cursos de Línguas, Artes e Literatura, Ciências da Matemática e da Natureza e Ciências Sociais, e forma sua primeira turma este ano.

Lourivan Leonardo Inácio, membro da comunidade Kaingang, do Rio Grande do Sul, ingressou no curso de Pedagogia em uma universidade particular. O Estado ofereceu-lhe uma bolsa de estudos, mas neste ano ele soube que deveria de pagar 25% da mensalidade. Como agravante, há ainda o preconceito dos demais alunos. "Muitos achavam que não acompanharíamos o conteúdo. E tinha gente que nos criticava por termos celulares e não entendia porque nós não andávamos pelados", conta. Por isso, Lourivan criou uma associação de apoio a índios universitários.

Outro desafio para garantir o ensino bilíngüe é a confecção de material didático. Há hoje cerca de 170 línguas indígenas no Brasil, divididas em dois troncos lingüísticos, 12 famílias que não pertencem a nenhum tronco e dez línguas que não pertencem a nenhuma família. Para elaborar o material didático, é preciso um estudo prévio para codificar e escrever a língua. É um trabalho a ser feito em cada comunidade: a grande variedade impossibilita a centralização do processo de confecção do material didático. Após o desenvolvimento de um livro bilíngüe com a participação de cerca de 1,5 mil indígenas Kadiweu, no Mato Grosso do Sul, José Luiz de Souza, coordenador do projeto, ficou frustrado. "O MEC não publica o livro porque não tem índios como autores. Apesar da gente ter apenas organizado o trabalho, o governo e as empresas não se interessaram", lamenta.

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