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Caçamos sarna para nos coçarmos

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
07 de Dez de 2007

Caçamos sarna para nos coçarmos

Washington Novaes

Pronto. A confusão está armada na questão da importação de pneus usados para serem aqui reformados ou recauchutados. E não será fácil desfazer o nó - por culpa do governo federal. Como noticiou este jornal (4/12), a Organização Mundial do Comércio, ao julgar reclamação da União Européia contra o Brasil - por não permitir a importação de pneus usados daquela área, invocando motivos ambientais e sanitários -, reconheceu que podemos proibir a importação, mas o veto tem de ser geral; e no momento estamos permitindo a entrada de pneus usados ou reformados do Uruguai e do Paraguai, porque assim o decidimos em 2003, alegadamente para atender a uma decisão de um tribunal arbitral do Mercosul - só que nenhum outro país do bloco a cumpre. Desde então, algumas empresas brasileiras até se instalaram no Uruguai para facilitar esse comércio que em outros tempos chegou a ser chamado de "colonialismo da imundície", a exportação de lixo de países industrializados para os "subdesenvolvidos".

Com essa decisão de 2003, que atendia a objetivos de política regional, e não à legislação ambiental em vigor, descumprimos lei em vigor desde 1991 (que proibia a importação), resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), a posição do Ministério do Meio Ambiente e permitimos a entrada de pneus do Uruguai (164 mil só no ano passado). Mas, valendo-se dessa exceção, empresas aqui instaladas recorreram à Justiça, ganharam liminares e importaram 10,5 milhões de pneus usados da Europa em 2005 e mais 7,6 milhões no ano passado. Agora, diz o Itamaraty, a solução será aprovar nova lei que proíba a importação. Na verdade, o artigo 31 do projeto de lei de Política Nacional de Resíduos, enviado em agosto ao Congresso pelo presidente da República, já prevê essa proibição. Mas quanto tempo levará para tramitar por ali?

Para complicar mais um pouco, não se sabe também quanto tempo levará uma decisão final da Justiça - e até lá as sentenças em vigor têm de ser respeitadas. Desde 2005 a Advocacia-Geral da União pede ao Supremo Tribunal Federal (STF) que se manifeste sobre a legalidade das medidas liminares, concedidas em instâncias inferiores, que permitem a importação de pneus. Para consegui-las alegam os importadores que trazem do exterior menos de 7% dos pneus absorvidos pelo mercado a cada ano. E ainda cumprem a decisão do Conama que obriga todos os fabricantes a reciclarem pelo menos 5 pneus para 4 produzidos. Se o Brasil permite importar do Uruguai e do Paraguai, não teria por que impedir a entrada dos pneus de outras áreas. Já os produtores no Brasil alegam que a importação, além de ilegal, está afetando o mercado: nos nove primeiros meses deste ano, sua produção só cresceu 1,2%, enquanto as vendas de veículos no período aumentaram de 10% a 12%.

Da mesma forma, não se sabe que extensão terá a decisão da presidente do STF (Estado, 20/10) que suspendeu outra decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que permitia a importação. O argumento jurídico agora é de que já em 1997 o próprio STF considerara constitucional a proibição de importar. Que influência terá esse quadro na reunião da cúpula do Mercosul programada para os dias 17 e 18 próximos?

Tudo isso faz parte do inacreditável panorama brasileiro na área dos resíduos sólidos, com 228,4 mil toneladas diárias só de lixo domiciliar e comercial coletadas a cada dia, quase 70 milhões de toneladas por ano - mais da metade das quais destinadas a lixões a céu aberto ou aterros inadequados (sem falar em entulhos, lixo industrial, de estabelecimentos de saúde). E como a reciclagem no País é insignificante - em São Paulo, menos de 1% em usinas -, não estranha que as maiores cidades estejam com seus aterros esgotados (São Paulo, Curitiba, Rio, Recife, entre outras), utilizando-os além dos limites adequados e sem solução próxima à vista. O problema só não é muito mais grave ainda graças à atuação das cooperativas e dos catadores de lixo - 500 mil no País, 45 mil em São Paulo. Na capital paulista, eles conseguem destinar à reciclagem em empresas uns 20% do que recolhem e permitem uma economia anual de uns R$ 500 milhões anuais à Prefeitura, em despesas com coleta e deposição em aterros.

Temos de mudar com urgência nossas posturas nessa área. Lembrar - como foi enfatizado em comentário neste espaço (12/10) - que cada pessoa produz de lixo, em média, cerca de dez vezes o peso de seu corpo a cada ano. Que no mundo já se produzem mais de 2 milhões de toneladas de lixo domiciliar a cada dia, mais de 600 milhões de toneladas por ano. Que os países industrializados geram mais de um quilo de lixo tecnológico (restos de computadores e outros equipamentos, pilhas, baterias, etc.) por pessoa ao ano. Que parte desse lixo começa a ser exportado para países mais pobres, em troca de pagamento. Que são descartados no mundo 1 milhão de sacos plásticos por minuto, quase 1,5 bilhão por dia, mais de 500 bilhões por ano. Que boa parte desses sacos é levada pelos ventos e pelas águas para o mar, onde já são a principal causa da poluição e da perda de biodiversidade.

Se quisermos ficar mais por perto, a Prefeitura de São Paulo já retirou do leito do Rio Tietê 10 milhões de metros cúbicos de sedimentos, detritos e lixo (12 toneladas por dia); só o plástico representa mais de 10% desse volume; e 120 mil pneus velhos já foram retirados dali.

No final das contas, tudo representa um tiro no pé do cidadão/consumidor, que paga os mais de R$ 2 bilhões anuais que as prefeituras gastam para recolher e depositar o lixo, no País. Sem que se consiga cumprir o primeiro objetivo de uma boa política nessa área, que é reduzir a quantidade de lixo produzida. Nem o segundo, que é reutilizar ou reciclar o máximo possível. Não precisamos importar lixo da Europa ou de qualquer outro lugar para ficarmos mal.

Resta ver como descalçaremos a bota dos pneus da Europa.

Washington Novaes é jornalista
E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

OESP, 07/12/2007, Espaço Aberto, p. A2

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