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Brasil já registra um conflito por acesso a água a cada dois dias

O Globo, País, p. 12
22 de Mar de 2018

Brasil já registra um conflito por acesso a água a cada dois dias
Foram 172 casos em 2016, a maior parte em Minas e Bahia. Mudanças climáticas e avanço do agronegócio acentuam disputa

DANIELLE NOGUEIRA
Enviada especial danielle.nogueira@oglobo.com.br
-CORRENTINA (BA)-

N o Oeste baiano, plantações de soja, milho e algodão formam um mar verde e branco de ponta a ponta. A região, onde o agronegócio avança e prospera, foi palco recentemente da revolta de pequenos agricultores, que culminou com a invasão de duas grandes fazendas e prejuízos estimados em R$ 50 milhões. Mas não era uma tradicional disputa por terra. Desta vez, estava em jogo o acesso à água, uma categoria de conflito que não para de crescer no Brasil. Foram 172 registros em 2016, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Ou praticamente um conflito a cada dois dias.
Num cenário de estresse hídrico, má gestão das águas e desmatamento de matas ciliares, a tendência é que as batalhas por água a que os brasileiros se acostumaram a ver e ouvir em notícias internacionais ocorram com mais frequência por aqui. Desde 2011, os conflitos por água mais que duplicaram no Brasil, aponta o relatório da CPT.
- O aumento está relacionado às oscilações climáticas, que têm provocado forte estiagem, e à política do governo para promoção do agronegócio. Na agricultura irrigada, capta-se muito mais água do que o necessário - afirma Leo Heller, relator especial da ONU para os direitos humanos à água e esgotamento sanitário.
Sendo o Brasil uma potência agrícola e considerando o peso das commodities minerais na pauta de exportações, boa parte dos conflitos tem conexão com os dois setores, explica Ruben Siqueira, um dos coordenadores nacionais da CPT. No último relatório da comissão, Minas Gerais aparece em primeiro lugar, com 58 conflitos por água em 2016. Praticamente todos ligados à Samarco, cuja barragem rompeu no ano anterior, jogando toneladas de rejeitos no Rio Doce. A Bahia aparece em segundo lugar, com 24 registros.
Adolfo Batista de Oliveira conhece bem o cotidiano de conflitos baiano. O pequeno agricultor mora no Vale do Rio Arrojado, que integra a Bacia do Rio Corrente, um dos afluentes do Rio São Francisco que corta o município de Correntina, no Oeste baiano. Há tempos, Oliveira e os produtores locais testemunham a queda na vazão do rio. Mês passado, considerado um mês chuvoso, o canal comunitário que leva água do Arrojado às propriedades oscilava entre dias secos e dias de pequeno volume de água.
Três meses antes, a água simplesmente não chegava. Enquanto isso, grandes fazendas retiravam, com aval do governo, milhões de litros do Arrojado por dia. O medo de ficar sem água fez os pequenos agricultores se organizarem. Alugaram ônibus e, no dia 2 de novembro, rumaram rio acima. Duas propriedades do grupo Igarashi, em Correntina, foram alvo. Segundo a polícia, 500 manifestantes invadiram as fazendas, e um grupo de 15 a 20 pessoas mais exaltadas depredou máquinas e tubulações.
- Quando os fazendeiros ligam os pivôs centrais (estruturas usadas na irrigação), sentimos aqui embaixo. Esses empresários vêm de longe, pegam nossa água, e nós ficamos aqui passando dificuldade - lamenta Oliveira.
O Oeste da Bahia não é um fenômeno isolado. Ele se repete por todo o Cerrado, que desde os anos 1970 vem sendo ocupado pela pecuária e pela agricultura. As duas atividades removeram a vegetação nativa, cujas raízes profundas proporcionavam a infiltração e retenção da água da chuva no solo, alimentando os aquíferos, que por sua vez mantêm os rios perenes nos ciclos secos.
- Quando esses rios todos secarem, os donos das grandes plantações vão se mudar para locais com maior abundância de água, mas a população que não tem condição de sair ficará ali. Imagina a convulsão social que poderá acontecer - disse Altair Sales, geólogo e antropólogo nascido em Correntina e professor da Unisinos (RS).

O Globo, 22/03/2018, País, p. 12

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