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BR-319: Ataques químicos contra indígenas expõem falta de consulta

Agência Cenarium - https://agenciacenarium.com.br
Autor: Lucas Ferrante
03 de Dez de 2024

Recentemente, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma ação civil pública solicitando, em caráter liminar, que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) suspenda a análise e emissão de licenças ambientais para a repavimentação do trecho central da rodovia BR-319, que conecta Porto Velho (RO), situado no notório "arco do desmatamento", a Manaus (AM), na Amazônia central ainda preservada. A medida busca assegurar a realização de consultas prévias, livres e informadas aos povos indígenas e comunidades tradicionais afetados pelo projeto, conforme estabelecido na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

A rodovia BR-319 é o projeto em todo o mundo, que mais viola os direitos dos povos indígenas, como demonstrado em um estudo que coordenei, publicado no periódico científico Land Use Policy. Esse trabalho contou com a coautoria do ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o antropólogo Mércio Gomes.

O estudo realizou um censo das comunidades indígenas afetadas pela rodovia BR-319, considerando projeções baseadas em modelos de desmatamento na região, com o objetivo de identificar os territórios indígenas ameaçados. Vale destacar que os modelos de desmatamento utilizados são altamente conservadores, pois se basearam em taxas de desmatamento observadas até 2011, período em que a rodovia estava intransitável e as taxas de desmatamento eram significativamente menores em comparação com o período posterior à licença de manutenção concedida em 2015.

O estudo revelou que a rodovia BR-319 afetará terras indígenas em um raio de 150 km, com impactos diretos previstos sobre pelo menos 64 terras indígenas oficialmente reconhecidas pelo governo, além de 5 comunidades não reconhecidas e uma população de indígenas isolados. Ao todo, estima-se que aproximadamente 18 mil indígenas serão diretamente impactados e, portanto, devem ser consultados. Os primeiros resultados deste estudo foram apresentados a procuradores do Ministério Público Federal (MPF) em 2020. Na ocasião, lideranças indígenas da etnia Mura e Apurinã formalizaram ao MPF um pedido para a realização de consulta prévia, livre e informada.

Em junho deste ano, coordenei um seminário realizado na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que reuniu lideranças indígenas das etnias Mura e Apurinã afetadas pela rodovia BR-319, juntamente com representantes do Ministério do Meio Ambiente e do MPF. Durante o encontro, os indígenas reiteraram a exigência de que seu direito à consulta prévia, livre e informada, garantido pela Convenção 169 da OIT, fosse respeitado, além de manifestarem sua oposição à rodovia devido aos inúmeros impactos previstos em seus territórios e impactos já observados.

Em um segundo estudo que coordenei, também publicado no periódico Land Use Policy, foi constatado o avanço da grilagem de terras na região, incluindo em áreas de territórios indígenas, o que reforça a gravidade dos riscos associados ao projeto da BR-319.

Uma das ocupações mais significativas que evidenciam a atuação do crime organizado na região foi registrada em uma área de uso tradicional indígena ao sul da Reserva Extrativista (Resex) do Lago do Capanã Grande. Nossos dados de sensoriamento remoto, corroborados por análises in loco, identificaram ramais partindo da rodovia BR-319 em direção ao Rio Madeira, invadindo áreas de uso tradicional indígena. Durante a reunião que coordenei em junho na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), os próprios indígenas apresentaram formalmente a denúncia aos presentes, incluindo uma procuradora do Ministério Público Federal (MPF).

Os indígenas relataram também uma contaminação coletiva da comunidade devido ao uso excessivo de agentes químicos para desmatamento na região, os quais foram deliberadamente despejados nos igarapés que abastecem a comunidade. Como consequência, mais de 20 indígenas, incluindo adultos, crianças e idosos, sofreram diversos sintomas, como diarreia, dores de cabeça, náusea, tontura e dores estomacais, atribuídos ao consumo de água contaminada pelo agente químico.

Nossas análises na área apontaram que o desmatamento foi promovido com o uso de 2,4-D, um componente químico amplamente conhecido como parte do "agente laranja", utilizado na Guerra do Vietnã. Esses resultados integram um estudo que coordenei em parceria com o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (CENSIPAM).

O estudo demonstrou que, caso a rodovia BR-319 seja pavimentada, não haverá contingente suficiente para fiscalizar o desmatamento crescente na região, intensificado pela atuação do crime organizado. Após a aplicação intensiva de "agente laranja" na área de uso tradicional indígena, diversas queimadas foram registradas como parte do processo de limpeza para a conversão do terreno em pastagens e assentamentos.

Durante a Guerra do Vietnã, entre 1961 e 1971, aproximadamente 80 milhões de litros de agente laranja foram pulverizados sobre florestas e plantações do país, com o objetivo de eliminar a vegetação que servia de cobertura para a população e forças militares do país, além de destruir fontes de alimento. O composto químico 2,4-D, um dos principais componentes do agente laranja, é comercializado no Brasil e apresenta alta toxicidade, mesmo sendo conhecido por seu uso como arma química durante a Guerra do Vietnã. Atualmente, ele faz parte de diversas marcas comerciais disponíveis no país.

Um estudo publicado na revista científica Acta Amazônica demonstrou que o uso do 2,4-D no Amazonas tem causado mutações severas na fauna local. Sapos expostos ao agente químico apresentaram deformações graves, como malformações nos olhos e membros. Em seres humanos, o 2,4-D é classificado como altamente cancerígeno, representando um risco significativo à saúde pública.
Lobistas que se apresentam como "pesquisadores" têm divulgado, de forma falsa e irresponsável, em meios de comunicação sem critério, que o Ministério dos Transportes e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) teriam realizado consultas aos povos indígenas no contexto do licenciamento da rodovia BR-319. Essas afirmações são inverídicas e fazem parte de uma estratégia para desqualificar as ações do Ministério Público Federal (MPF), que tem exigido o cumprimento rigoroso da legislação.

Vídeos que circularam no Instagram, posteriormente repercutidos por blogs sem qualquer verificação dos fatos, alegam de forma enganosa que os estudos realizados já garantiram a inclusão e proteção das populações afetadas, em conformidade com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em outros vídeos, foi apontado, de maneira igualmente falaciosa, que os indígenas seriam beneficiados pela rodovia, uma afirmação refutada por todos os estudos científicos e pelas próprias lideranças indígenas.

Um estudo científico publicado no periódico Journal of Racial and Ethnic Health Disparities demonstrou que comunidades tradicionais, incluindo indígenas, foram excluídas das audiências públicas realizadas no âmbito dos estudos ambientais da rodovia BR-319 promovidos pelo IBAMA, comprometendo a legitimidade do estudo do componente indígena e anulando sua validade.

Além disso, a Convenção 169 da OIT distingue claramente o estudo de componente indígena da consulta prévia, enfatizando suas funções e objetivos distintos. O estudo de componente indígena é uma análise técnica que busca identificar e avaliar os impactos de projetos ou políticas sobre comunidades indígenas, fornecendo subsídios para mitigar danos e respeitar os direitos territoriais e culturais desses povos.

Por outro lado, a consulta prévia é um processo político e jurídico, fundamentado no direito à autodeterminação, que exige diálogo direto e de boa-fé com os povos indígenas, com o objetivo de obter seu consentimento ou alcançar um acordo antes da implementação de medidas que os afetem.

Enquanto o estudo de componente indígena é uma ferramenta de diagnóstico, a consulta prévia constitui um direito fundamental que garante a participação ativa e informada das comunidades indígenas nas decisões que impactam suas vidas. Nesse sentido, é essencial exigir o cumprimento do direito de consulta dos povos indígenas afetados pela rodovia BR-319, garantindo-lhes o direito de rejeitar o empreendimento.

A rodovia BR-319 é considerada o empreendimento de maior impacto ambiental e social no mundo, com diversos e graves efeitos negativos sobre o meio ambiente e as populações locais. No dia 10 de julho deste ano, participei de uma reunião promovida pelo Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (CENSIPAM), em Brasília, que contou com a presença de representantes da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).

O objetivo foi discutir os impactos da rodovia BR-319. Durante o encontro, ficou claro que as consultas aos povos indígenas não foram realizadas no processo de licenciamento da rodovia, fato confirmado pelo representante da FUNAI, que também destacou a necessidade de ampliar as terras indígenas para proteger adequadamente as áreas de uso tradicional que ficaram fora das demarcações na região da rodovia.

No dia 29 de outubro, também em Brasília, estive presente em outra reunião presencial promovida pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) para tratar dos impactos da rodovia BR-319. Durante essa ocasião, além de ser reafirmado que os povos tradicionais não foram consultados, destacou-se a inviabilidade ambiental e econômica do projeto, fato admitido pelos técnicos do MMA e do IBAMA presentes. Essa reunião foi gravada, constituindo uma prova definitiva da inviabilidade do empreendimento. Os estudos científicos mencionados subsidiam as ações do MPF sobre a necessidade de consulta dos povos indígenas.

(*) Lucas Ferrante é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL) e possui Mestrado e Doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Ferrante é o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nas duas principais revistas científicas do mundo, Science e Nature. Atualmente, atua como pesquisador na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.

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