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Bolsonaristas resgatam reportagens antigas sobre Yanomamis para defender ex-presidente nas redes

OESP - https://www.estadao.com.br/estadao-verifica
27 de Jan de 2023

Bolsonaristas resgatam reportagens antigas sobre Yanomamis para defender ex-presidente nas redes
Embora indígenas sofram há pelo menos 50 anos com invasões, especialistas e órgãos de controle apontam que crise se agravou e chegou ao auge no governo de Jair Bolsonaro

Por Clarissa Pacheco
27/01/2023 | 18h02
Atualização: 01/02/2023 | 10h10

Reportagens antigas com relatos de fome, desnutrição e invasões garimpeiras no território Yanomami nos últimos 15 anos ganharam as redes sociais recentemente. Mas o material raramente é usado para evidenciar a desestabilizaçāo do modo de vida dos mais de 30 mil indígenas que habitam o território entre os Estados de Roraima e Amazonas. O objetivo é outro: defender o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) de acusações de responsabilidade pelo agravamento da crise humanitária que chocou o mundo recentemente.

De fato, os problemas dos Yanomamis não começaram no governo Bolsonaro - eles atravessam, pelo menos, 50 anos. Especialistas, associações indígenas e até órgãos governamentais vêm falando há décadas sobre a situação. Mas não faltam evidências de que o último governo, por açāo e omissão, agravou substancialmente a crise.

Segundo lideranças indígenas, o governo Bolsonaro ignorou pedidos de socorro e incentivou a mineração em terras indígenas, atividade considerada uma ameaça grave à sobrevivência dos povos originários. Entre outros motivos, porque o garimpo favorece a contaminação da água dos rios e dos peixes, que servem de alimento para os povos.

Há ainda denúncias formais de desabastecimento de medicamentos que seriam destinados aos Yanomami e ataques a postos de saúde por parte de garimpeiros. Uma decisão da Funai, no governo passado, impediu que a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) adentrasse o território para fornecer atendimento de saúde aos indígenas.

O Ministério Público Federal em Roraima, que acompanha de perto a situação dos Yanomamis, aponta que há registros de subnutrição infantil no território desde 2009, pelo menos. No entanto, para o MPF, o agravamento da situação começou em 2017, chegando ao ápice em 2022. De acordo com procurador da República Alisson Marugal, entre o final de 2021 e o final de 2022, 300 crianças Yanomami com sinais de desnutrição precisavam ser transferidas de onde viviam para receber tratamento de saúde na capital de Roraima, Boa Vista. Número 150% maior do que nos quatro anos anteriores.

A Hutukara Associação Yanomami, responsável pela publicação do relatório Yanomami Sob Ataque, em abril do ano passado, aponta que 2021 foi o pior momento em termos de impacto provocado pela ação do garimpo ilegal desde que a Terra Indígena Yanomami foi demarcada, na década de 1990. Nesta quinta-feira, 26, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou uma representação criminal na Procuradoria Geral da República contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e aliados: o ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) Marcelo Xavier, a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e o ex-secretário de Saúde Indígena da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde Robson Santos.

O pedido é para que Bolsonaro, Damares, Marcelo Xavier e Robson Santos sejam responsabilizados criminalmente por genocídio dos povos Yanomami em Roraima. A denúncia da Apib afirma que a gestão de Bolsonaro foi omissa com o povo indígena. Segundo a entidade, de 2019 a 2022, eles foram afetados pelo aumento de desnutrição, malária, assassinatos e estupros, além da contaminação de indígenas com a covid-19. Para a Apib, todos esses fatores foram ocasionados pela invasão de garimpeiros ilegais na Terra Indígena, incentivada à época pelos agentes públicos.

"Houve uma flagrante omissão por parte desses agentes públicos em dar resposta ao povo Yanomami. Nesse documento, a gente elenca os direitos fundamentais dos povos indígenas que foram violados e também os direitos humanos que foram cerceados", disse Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib.

Na Folha, a coluna de Mônica Bergamo publicou recentemente que o Supremo Tribunal Federal (STF) já tem evidências de que a crise dos Yanomamis foi agravada pela inação do governo Bolsonaro.

Conflito antigo
Uma publicação do Instituto Socioambiental (ISA) sobre Povos Indígenas Brasileiros aponta que os antigos Yanomamis começaram a ocupar o território entre as cabeceiras dos rios Orinoco e Parimpa, próximo da margem direita do Rio Branco, há um milênio. A partir da segunda metade do século XVIII, com a colonização naquela região, eles começaram a se dispersar em direção a terras mais abaixo do Orinoco.

Até o final do século XIX, os Yanomamis tinham contato apenas com outras comunidades indígenas vizinhas, e encontros com brancos no Brasil - caçadores, funcionários do governo ou viajantes estrangeiros - começaram a ocorrer entre 1910 e 1940. A ONG Survival Internacional trabalha com os Yanomamis desde a década de 1970 e explica como o território foi invadido aos poucos.

"Assim como para a maioria dos povos indígenas do Brasil e do mundo, os problemas começaram a partir do contato regular com os não-indígenas", disse a pesquisadora da Survival Brasil Priscilla Oliveira. "Os Yanomami primeiramente entraram em contato direto com invasores na década de 1940, quando o governo brasileiro enviou equipes para delimitar a fronteira com a Venezuela. Logo depois, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) do governo e grupos religiosos missionários se estabeleceram no território Yanomami. Este fluxo de pessoas levou às primeiras epidemias de sarampo e gripe, resultando na morte de muitos Yanomamis".

A abertura de uma estrada na década de 1970 e a corrida do ouro, em 1980, pioraram o quadro. "No início dos anos 70, o governo militar decidiu construir uma estrada, conhecida como Perimetral Norte, cortando a Amazônia. Com o início das obras, começou a invasão ao território com tratores percorrendo a comunidade Yanomami de Opiktheri. Duas aldeias inteiras desapareceram em decorrência das doenças trazidas pelos invasores", completa Psicilla.

Ela conta que, nos anos 1980, o lugar chegou a ter 40 mil garimpeiros atuando ilegalmente: "Eles atacaram indígenas, destruíram suas aldeias e os expuseram às doenças para as quais não tinham imunidade. Em apenas sete anos, 20% dos Yanomami morreram", diz.

A pressão internacional motivada por uma campanha liderada por Davi Kopenawa Yanomami, pela Survival e pela Comissão Pró Yanomami acabou resultado na demarcação da terra indígena em 1991. Os limites são válidos até hoje, mas as ameaças ao território não acabaram. "Antes de Bolsonaro assumir a Presidência, estimava-se que cerca de 7 mil garimpeiros ilegais estavam já atuando no território. Ou seja, a situação já estava longe de ser a ideal", lembrou Priscilla. "Mas, com o governo dele, a situação tomou uma proporção catastrófica. Bolsonaro e seus aliados estimularam o garimpo ilegal com falas e projetos de lei e enfraqueceram a Funai, o Ibama e outros órgãos responsáveis pela proteção territorial, que quase totalmente pararam de expulsar invasores."

Priscila aponta que, embora os problemas enfrentados pelos Yanomami sejam antigos, a comunidade vive agora seu momento mais grave. "O povo Yanomami está vivendo o pior momento desde a demarcação do território. Agora esperamos que o novo governo tome as medidas urgentes e necessárias para acabar com essa crise", disse.

Bolsonaro tentou derrubar demarcação
Em 1992, quando era deputado federal, Jair Bolsonaro propôs um Projeto de Decreto Legislativo na Câmara Federal na tentativa de derrubar a Portaria 580/1991, que demarcava a Terra Indígena Yanomami (TIY). Ele argumentava que a demarcação feria a defesa do território nacional e questionava se os Yanomamis eram mesmo brasileiros ou venezuelanos. Na semana passada, bolsonaristas espalharam pelas redes um texto que, supostamente, mostrava que eram venezuelanas as vítimas da crise humanitária denunciada após a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O Estadão Verifica desmentiu a história.

O projeto apresentado por Bolsonaro em 1992 foi arquivado em 1995, como mostrou o jornal O Globo. Já como presidente, em 2019, Bolsonaro tentou retirar da Funai a prerrogativa da demarcação de terras indígenas e entregar a incumbência para o Ministério da Agricultura, mas foi derrotado no STF, mostrou o Estadão.

Mobilização por direitos foi se fragilizando
Para a pesquisadora Artionka Capiberibe, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a disputa pela terra Yanomami está no centro dos conflitos, porque, apesar de os indígenas terem uma terra demarcada e homologada, ela não é protegida. Em entrevista à universidade, ela apontou que, na década de 1990, a invasão de garimpeiros e o genocídio em andamento foram contidos por pressões internacionais, mas a "corrosão do sistema político brasileiro", especialmente após 2014, fragilizou a mobilização pelos diretos dos indígenas.

"Quando o Brasil entrou em crise depois das manifestações de 2013, a pressão sobre o governo Dilma em 2014, toda a mobilização política em favor dos povos indígenas sofreu", afirmou a professora. "O governo Dilma ficou dividido, porque levava um projeto de desenvolvimento em torno do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] que batia de frente com a preservação. A partir daquele momento, a terra Yanomami volta aos poucos a ser invadida por garimpeiros".

Segundo ela, as invasões e os problemas só cresceram. "Isso vai escalando, na medida em que o sistema político brasileiro vai ficando corroído, a partir de 2014. E, com o Congresso Nacional muito dominado pela bancada ruralista e da mineração, a questão indígena vai ficar de fato fragilizada. E aí tem o impeachment [de Dilma], vem o governo Temer, que não se importa com os indígenas, e finalmente vem um governo que é inimigo dos indígenas", completou, se referindo a Bolsonaro. Para Artionka, a tônica do último governo foi "deixar acontecer" e "incentivar" violações aos direitos dos indígenas.

Um exemplo de como o garimpo ilegal cresceu na região no período mencionado pela pesquisadora está no avanço da degradação na terra indígena a partir de 2016, segundo dados do site Mapbiomas. "A partir de 2016, a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%", diz o relatório Yanomami Sob Ataque, da Hutukara Associação Yanomami.

Violações aos direitos humanos e negação à saúde
Especialistas apontam que a omissão do governo Bolsonaro ficou ainda mais evidente durante a pandemia de covid-19. Em abril de 2020, um adolescente Yanomami de 15 anos foi o primeiro indígena aldeado a morrer no Brasil de covid - e ele vivia numa região próxima de onde atuavam garimpeiros.

Também à Unicamp, o médico infectologista Paulo Abati, especialista em saúde indígena e professor da instituição, afirmou que a situação dos Yanomami piorou recentemente. "Além da degradação ambiental promovida pelo garimpo, que acaba impedindo os modos de vida tradicionais e impactando na saúde do povo, houve, nos últimos anos, uma baixa importante nas ofertas de acesso à saúde", disse.

Ele denuncia, entre outros problemas, falta de medicamentos e alimentos. Isso também é apontado pelo Ministério Público Federal em Roraima, que deflagrou no ano passado a Operação Yoasi, que investigou, junto com a Polícia Federal, o desvio de medicamentos essenciais no atendimento aos indígenas, principalmente crianças.

Os procuradores Alisson Marugal e Matheus de Andrade Bueno afirmaram que a falta de fármacos simples, como aqueles para combater verminoses, aceleraram a tragédia yanomami, e que a estimativa é que, em 2022, 10 mil crianças, de um total de cerca de 14 mil, deixaram de receber remédios.

No último domingo, 22, Bolsonaro respondeu às acusações de omissão e responsabilidade sobre a crise dos Yanomamis: "Contra mais uma farsa da esquerda, a verdade: os cuidados com a saúde indígena são uma das prioridades do governo federal. De 2019 a novembro de 2022, o Ministério da Saúde prestou mais de 53 milhões de atendimentos de atenção básica aos povos tradicionais, conforme dados do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do SUS, o SasiSUS", escreveu no Twitter.

Correção: Anteriormente, a ONG Survival Internacional havia dito que se estimava a existência de 10 mil garimpeiros ilegais atuando na região antes do governo Bolsonaro. O número correto é 7 mil.

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