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A bola dos Kamaiurá

D24 AM - http://blogs.d24am.com
Autor: Ribamar Bessa Freire
03 de Jun de 2012

Diz que é assim. Quem inventou a bola foram os índios Kamaiurá, muitos e muitos séculos antes de os ingleses conceberem o futebol. Diz que é assim: dois milênios antes de o meu Vascão eliminar o Flamengo, os Kamaiurá já batiam um bolão. Ou uma bolinha. Eles confeccionavam uma pequena bola de borracha, branca, com resina de mangaba, que depois de fervida, era moldada como uma esfera, antes de endurecer. Era oca por dentro, elástica, e quicava quando batia no chão. Com ela, promoviam o "jogo de bola", em língua Kamaiura mangawa apitap, que era disputado entre dois times, em competição intertribal ou como treino e diversão.

O Maracanã dos Kamaiurá, o "Kamaiurão", conhecido como mangawa rape (campo da bola), se localiza bem no centro do pátio da aldeia e está delimitado nas laterais por duas linhas curvas e opostas. Cada time tem seis ou oito jogadores, que ficam em fila, afastados um dos outro em cerca de um metro. Neste jogo, pode usar as mãos, Arnaldo? Não, a regra é clara. A bola só pode ser tocada com os joelhos e com a cabeça, exceto no primeiro lance, quando o jogador que inicia a partida, levanta a bola com a mão. O gol acontece quando a bola - pimba na gorduchinha - acerta outra parte do corpo do adversário. Aí, os times trocam de lado no campo.

Os campeonatos eram disputadíssimos. Quando o time visitante ganhava, os jogadores entravam nas casas dos vencidos e pegavam como premio todos os pertences que ali estivessem: redes, cestas, armas, adornos. Se os visitantes, porém, perdiam, deixavam tudo o que tinham e voltavam para sua aldeia de mãos vazias. Esses campeonatos aconteceram até os anos 1960, quando o futebol foi introduzido na aldeia e o mangawa apitap caiu em desuso.

Como é que nós sabemos tudo isso, leitor (a)? Graças a um grande pajé Kamaiurá, chamado Tarakwaj, que praticou esse jogo e o descreveu em detalhes, em setembro de 1977, na aldeia Ipawu, no Xingu. Outro índio, chamado Kanutary (Koka), que também era pajé, assistiu muitos jogos e deu também sua versão, em 2006, em Campinas, quatro anos antes de morrer, para a linguista Lucy Seki, que a publicou com o título 'História da Onça: origem do jogo de bola e da huka-huka'.

Senhores das histórias

Lucy Seki, linguista brasileira, é uma dessas raras sacerdotisas que dedicou sua vida ao estudo das línguas indígenas. Ela entrou no Xingu em 1967, pelas mãos da antropóloga Carmen Junqueira, depois foi fazer seu doutorado na Universidade Patrice Lumumba, em Moscou. Maior especialista nas línguas Kamaiura e Krenak, atualmente é professora titular de Linguística Antropológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Lançou recentemente, no Museu do Índio, no Rio, um livro belíssimo - "O que habita a boca de nossos ancestrais", uma coletânea de narrativas míticas dos Kamaiurá, ilustrada com desenhos dos próprios índios.

Os Kamaiurá falam uma língua da família Tupi-Guarani, moram às margens do lago Ypawu, na região dos formadores do rio Xingu, dentro da Terra Indígena do Xingu, um lugar sagrado onde vive desde sempre Mawutsini, criador dos Kamaiurá e dos seus heróis civilizadores. Os primeiros contatos com eles foram feitos por Karl von den Steinen, em 1884. Quando Lucy Seki chegou lá, em 1968, apenas dez índios sabiam algo de português. Hoje, embora todos os 500 Kamaiurá falem a língua nativa, o número de bilingues aumentou.

A história da origem do jogo de bola é uma das tantas contadas por alguns dos velhos narradores, que são os senhores das histórias. Um deles, Kanutary (Koka), que faz a apresentação, explica:

"As historias que estou contando agora são historias muito antigas, historias de nossas origens. Elas vem sendo passadas de geração em geração, contadas pelos avós para seus netos. Quando os avós morrem, outros contam as historias para seus filhos. Nos tempos antigos, nós narrávamos somente em nossa língua, oralmente, Hoje em dia a moçada sabe lidar com a escrita e a leitura, e nossas historias podem ser registradas no papel. TV. Se tivéssemos recursos, poderíamos igualmente mostrar em imagens as nossas historias antigas, na televisão,do mesmo modo que eles fazem".

O velho pajé, que morreu em 2010, antes da publicação do livro, lamenta que "acabaram-se os velhos narradores, somos poucos os que restaram, como o meu primo e o Takumã. ...Nós velhos vamos morrer e os Kamaiurá não vão mais a ouvir como antes e conhecer as histórias".

Vale a pena ler o livro, todo ele bilíngue, com as narrativas míticas Kamaiurá escritas na língua indígena e em português. As narrativas contem informações sobre visão de mundo, conhecimentos tradicionais, acontecimentos históricos, estratégias de sobrevivência, sistema de organização social, etc. Está dividido em duas partes: a primeira contém informações introdutórias sobre a cultura e a língua kamaiurá; a segunda traz narrativas nas duas línguas, cada uma acompanhada de uma contextualização, de notas etnográficas e de tradução, feitas cuidadosamente pela autora.

http://blogs.d24am.com/taquiprati/2012/06/03/a-bola-dos-kamaiura/

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