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Bispo diz que transposicao e projeto politico

OESP, Nacional, p.A18
09 de Out de 2005

Bispo diz que transposição é 'projeto político'
Segundo D. Luís, que fez greve de fome de 11 dias contra a obra, governo deve buscar plano para beneficiar todo o semi-árido
Ângela Lacerda
O bispo dom Frei Luiz Cappio afirmou ontem que o projeto de transposição do rio São Francisco apresentado pelo governo federal é "um projeto político muito endereçado e determinado", que não abrange o semi-árido como um todo.
Na sua avaliação, um plano sustentável de desenvolvimento para o semi-árido tem de conter todo o semi-árido, e não apenas parte dele. "Se não, não é um projeto para os pobres do semi-árido, mas para beneficiar politicamente alguns Estados".
"Este é um dos grandes defeitos do projeto, somente uma parte é contemplado (os Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco)", destacou. "Quando se fala em semi-árido, só se fala no Nordeste Setentrional. E o Norte de Minas, o centro-oeste da Bahia, e o resto?".
Frei Cappio deu entrevista, pela manhã, no Centro Diocesano de Petrolina, a 750 quilômetros do Recife, onde está hospedado desde o final da tarde de anteontem. Hoje, ele abre um encontro que deverá reunir mais de mil pessoas em Juazeiro (BA), separado de Petrolina (PE) pelo rio São Francisco. O Fórum Permanente em Defesa do Semi-Árido, Via Campesina, atingidos por barragens, movimentos indígenas e pastorais da terra e da pesca devem comparecer ao ato que começará a discutir as necessidades do semi-árido e a revitalização do São Francisco.
O frei afirmou que o documento que apresentou e discutiu com o ministro da Coordenação Política, Jaques Wagner - representando o presidente Lula - numa negociação que durou cinco horas, em Cabrobó, e pôs fim à sua greve de fome de 11 dias, inclui todo o semi-árido. Ele defende que o grande objetivo do projeto de convivência com o semi-árido deve ter como principal objetivo melhor qualidade de vida para as populações desta região, prioritariamente os pequenos e pobres. Segundo ele, existem segmentos que têm autoridade para afirmar que o projeto apresentado pelo governo não é o melhor. "O comitê de bacias, os grupos que estão especificamente organizados para fazerem esse trabalho, nunca foram ouvidos", destacou. "Que o governo os ouça."
Ele acredita que somente depois desse diálogo entre os dois lados se poderá chegar a um consenso.
Ao seu ver, do projeto apresentado pelo governo deve ser mantido o quesito referente à reforma agrária e futuros assentamentos. "Se verdadeiro, este é um ponto razoável."
COTAS
Quanto ao projeto de revitalização, que "bem ou mal está caminhando", o bispo defende a implantação de um sistema de cotas para uso da água tomada para projetos de irrigação, que deve ser gerenciado e fiscalizado. As cotas de uso variariam de acordo com a vazão do rio, a época do ano. "Se você tiver dinheiro para pagar a conta de energia elétrica, coloca tantos motores quanto quiser, tira a água que quiser e ninguém vai fiscalizar". Para ele, este é um dos principais pontos da revitalização do rio São Francisco, além de saneamento básico nos aproximadamente 500 municípios do vale e a restauração de matas ciliares, nascentes, brejos e lagoas.
De acordo com o frei, já existem muitas propostas alternativas ao projeto de transposição do governo, mas elas precisam ser revistas, ordenadas, estudadas. "Isso não acontece da noite para o dia". Ele espera que a partir de agora, depois do acordo firmado com o governo federal garantindo um diálogo aberto, é preciso que os que realmente entendem do Nordeste - universidades, técnicos, cientistas, engenheiros hídricos - se "sentem calmamente para colocarem propostas verdadeiras, racionais e aplicáveis, para serem ouvidas pelo governo". "Não basta o oba-oba, o barulho", disse ele, destacando que as manifestações populares são importantes, mas agora é necessário ocupar o espaço de negociação com propostas concretas.
GREVE
O bispo voltou a repetir que se o governo não cumprir o compromisso, ele volta para Cabrobó, para nova greve de fome, mas desta vez acompanhado por "centenas e centenas de pessoas".

D. Luís iria mesmo até o fim; garantem amigos
José Maria Mayrink
Quem conhece o franciscano d. Luís Flávio Cappio de perto, como seus amigos de escola e seus confrades de convento, não tinha a menor dúvida de que, se o governo não cedesse, ele levaria a greve de fome até a morte pela salvação do Rio São Francisco. Duas horas antes do anúncio do acordo com o ministro das Relações Institucionais, Jaques Wagner, na quinta-feira, João Franco, o Nine, irmão do bispo que estava com ele em Cabrobó, telefonou para os filhos em Guaratinguetá e avisou:
"Só há duas maneiras de seu tio sair daqui: em procissão com o povo ou deitado num caixão."
Os cinco sobrinhos do bispo acharam que não havia outra saída, pois a última notícia confirmava o impasse. "Não é questão de achar, é questão de a gente conhecer bem o tio e saber da convicção dele, um homem de coragem, para chegar às últimas conseqüências", disse Luiz Flávio, xará do tio-bispo.
"Aquela cabeça eu conheço bem, é um sujeito determinado que renunciou à vida dele por aquela gente, o povo ribeirinho do rio", reforçou o engenheiro Waldomiro Rizzato, amigo de infância e adolescência do bispo, até ele se refugiar no Seminário Frei Galvão, um internato franciscano em Guaratinguetá. Não era o que pretendia o pai, Luiz Cappio, gerente de uma fábrica de tecidos, homem de posses e de prestígio na cidade.
Como o rapaz insistiu em ser padre, o pai culpou o jardineiro da casa, Bernardo Ribeiro da Silva, que tinha feito uma cruz na testa quando o menino nasceu, dizendo que ali estava um servo de Deus. O relato é do comerciante Hélio Maia Filho, genro do jardineiro e colega de escola do futuro bispo. "A gente freqüentava as aulas de catecismo no Orfanato Puríssimo Coração de Maria, jogava no Clube de Regatas Guaratinguetá e nadava junto no caixão (piscina natural) do (rio) Paraíba".
Foi nos mergulhos juvenis que Luís Flávio, o homem que faria 11 dias de greve de fome contra o projeto de transposição do São Francisco, começou a se interessar por água de rio. "Ele entende disso porque bem na frente da casa dele fizeram uma obra de transposição do Paraíba, projeto que endireitou o trajeto do rio, mas também acabou com o leito e matou os peixes", observou Maia.
DESPRENDIMENTO
Frei Walter Hugo de Almeida, colega de noviciado e estudos, elogiou seu desprendimento - um franciscano santo e fraterno que abria mão de tudo para ajudar as pessoas, sobretudo os pobres. No Instituto de Filosofia e Teologia de Petrópolis, onde os dois foram alunos de Leonardo Boff, frei Cappio tinha atitudes generosas: "Se ganhava um par de sapatos ou uma camisa nova, dava para quem precisasse." Uma vez, levou para uma família de um morro de Petrópolis um colchão que achou num depósito do convento.
Depois de ordenado padre, em 1971, frei Cappio trabalhou na Pastoral Operária em São Paulo. "Vivia em pobreza completa, não usava dinheiro, dependia de esmolas e comia o que lhe davam", disse o cardeal d. Paulo Evaristo Arns, então arcebispo da arquidiocese. Um dia, o frade sumiu, deixando documentos e alguns trocados na casa paroquial. "Foi embora descalço, vestindo o hábito franciscano, como nosso pai, São Francisco", recorda o cardeal. Foi d. Paulo quem ordenou frei Luís Flávio sacerdote e, mais tarde, bispo, em julho de 1997.
Quando foi para o sertão da Bahia, não acreditaram que ele era padre. "O bispo até ligou para o superior provincial dos franciscanos, pedindo confirmação", revela frei Walter, o ex-colega de seminário. Na diocese de Barra, frei Cappio vivia no meio do povo. Em 1993 e 1994, tirou um ano para percorrer as margens do rio. "Viajava a pé, de canoa ou a cavalo, comendo o que davam para ele", contou o poeta e compositor Roberto Malvezzi, o Gogó, militante da Pastoral da Terra.
O estilo foi sempre o mesmo. "Gosta de usar roupa velha, calça e camisa surradas, os pés descalços", conta a secretária Sofia de Oliveira Cavalcanti, que trabalha na diocese desde o tempo de d. Itamar Vian, antecessor de d. Cappio em Barra. "A nomeação foi uma surpresa, pois ninguém esperava, nem ele mesmo", diz o padre José Oscar Beozzo, teólogo e estudioso da história da Igreja.
DO POVO
"O Espírito Santo acertou na escolha, esse vai ser um bispo do povo", comentou frei Walter, ao saber da notícia. Mandou uma mensagem prometendo orações e foi convidado para padrinho na ordenação episcopal. A cerimônia foi realizada na igreja de Nossa Senhora da Glória, no bairro de Pedregulho, onde a família Cappio sempre morou, em Guaratinguetá. Ligado à família, d. Cappio volta à cidade pelo menos uma vez por ano.
"Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho", escreveu d. Cappio no pé da carta que enviou ao presidente Lula para anunciar a greve de fome contra a transposição do São Francisco. A carta terminava com um pedido: "Caso venha a falecer, gostaria que meus restos mortais descansassem junto ao Bom Jesus dos Navegantes, meu eterno irmão e amigo, a quem doei toda a minha vida em Barra, minha querida diocese." Era um testamento.

Obra no Rio São Francisco divide Igreja, políticos e movimentos sociais
Roldão Arruda
Em conversas com seus assessores, o bispo d. Luís Flávio Cappio tem dito que já marcou um ponto importante, que foi abrir o debate sobre a projeto de transposição do Rio São Francisco. Na verdade, ele foi além: expôs as profundas divergências existentes em torno da proposta. A idéia é apoiada pelos governos de quatro Estados - PE, RN, CE e PB - e vista com desconfiança por outros quatro - MG, SE, BA e AL.
O primeiro grupo é formado basicamente pelos Estados que receberão água; e o segundo, pelos doadores.
O presidente Lula já tentou explorar essa divergência entre os governadores, dizendo que os mais ricos em água estão negando "uma cuia" para os mais pobres. O governador de Sergipe, João Alves, do PFL, não gostou: "O presidente está estimulando a cisão entre os nordestinos, criando um clima de ódio."
O tema é tão polêmico que pôs em campos opostos a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e o Movimento dos Sem-Terra (MST). Na opinião dos dirigentes da Contag, a transposição será "uma obra extremamente útil", que permitirá a desapropriação de mais de 350 mil hectares, às margens do canal, onde será possível assentar 25 mil famílias. Para os dirigentes do MST, o projeto só beneficiará as empreiteiras e o chamado agronegócio. Principal líder do movimento, João Pedro Stédile defende a realização de um plebiscito.
O conflito se estende à área acadêmica e, na semana passada, expôs fissuras no meio do episcopado católico. O projeto de transposição é tão ruim, na opinião de d. Luís Flávio, que inicialmente ele estava disposto até a morrer de fome, caso o presidente Lula prosseguisse com a obra. Foi imediatamente apoiado pelos bispos mais envolvidos com questões sociais, como o presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), d. Tomás Balduíno.
No décimo dia da greve, porém, a direção do Conselho Regional Nordeste 2 divulgou nota criticando a greve de fome e apoiando a proposta de transposição. Aquela regional abrange três dos Estados que serão beneficiados pelo projeto - Alagoas, Pernambuco e Paraíba - e a sua direção já tinha se manifestado favoravelmente em outras ocasiões. O arcebispo da Paraíba, d. Aldo Pagotto, chegou a dizer que se trata de "uma bênção para o povo do semi-árido". D. Tomás reagiu à manifestação de seus colegas num tom alto e incomum entre os bispos. Acusou-os de "colaborar com as empreiteiras e o grande capital, que estão de olho nesta obra gigantesca".

OESP, 09/10/2005, p. A18

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