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Bienal revela o olhar de cineastas indígenas brasileiros

Amazônia Real- http://amazoniareal.com.br
Autor: Elaíze Farias
05 de Out de 2016

A indígena Alcilane Melgueiro, 27 anos, nunca tinha segurado uma câmera. Quando teve a oportunidade, a primeira escolha que fez foi registrar o trabalho na roça de dona Irene, 58 anos, moradora da comunidade Santo Antônio, no município de Barcelos (a 405 quilômetros de Manaus). Da etnia Baré, Alcilane fez a filmagem junto com a colega Maria Cidilene Basílio, do povo Tukano. O tema é sobre o método de plantação tradicional dos povos do Alto Rio Negro, no extremo norte do Amazonas. O resultado da filmagem, que durou uma semana, foi o documentário "Não gosta de fazer, mas gosta de comer", com duração de 43 minutos.

Esta é uma das 53 produções cinematográficas feitos pelos próprios indígenas que fazem parte da programação da segunda edição da Aldeia SP - Bienal de Cinema Indígena. O evento começa nesta sexta-feira (07/10) e vai até o dia 12, em São Paulo.

Coordenada por Ailton Krenak, liderança histórica do movimento indígena no Brasil, a mostra tem patrocínio da Spcine e conta com o apoio das secretarias de Cultura e Educação da capital paulista.

O filme "Não gosta de fazer, mas gosta de comer", de Alcilene Melgueiro e Maria Cidilene Basílio, foi filmado com uma câmera Canon T5i doada para a Associação Indígena de Barcelos (Asiba) pela Associação Filmes de Quintal, que coordena oficinas de formação audiovisual em áreas indígenas, entre elas a região do Alto Rio Negro. Um dos integrantes da Associação Filmes de Quintal é o antropólogo Pedro Portella, curador da Bienal de Cinema Indígena.

Segundo Portella, dos onze filmes realizados por indígenas do Amazonas e que estão na mostra, sete foram gerados nas oficinas de registro do patrimônio agrícola tradicional do rio Negro, realizadas pela superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em parceria com a Associação Filmes de Quintal, de Belo Horizonte. Os quatro restantes foram realizados em oficinas do Pontão Indígena do Rio Negro, da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).

Em "Não gosta de fazer, mas gosta de comer", dona Irene fala sempre na língua Nheengatu. O título nasceu de uma cena observada por Alcilene Melgueiro, quando viu a neta de Dona Irene zombando da avó.

"A dona Irene só falava em Nheengatu. A neta dizia que só ia para o roçado se a avó não falasse nessa língua. Foi quando eu respondi: 'Não gosta de fazer, mas gosta de comer'. Decidimos dar o título", diz Alcilene em entrevista à Amazônia Real.

Fazer um filme sobre um roçado parece uma escolha simples e trivial, mas não para Alcilene e Cidilene. Para as duas, foi uma volta às origens de uma técnica que elas, mesmo morando na zona urbana, nunca se distanciaram. "Filmamos todo o manuseio da mandioca, toda a plantação. Isso aconteceu durante uma semana. Fizemos essa escolha para mostrar a base de alimento dos indígenas de Barcelos. Quis mostrar que a base de nossa cultura é o trabalho com agricultura e em roçados", diz Alcilene, que não estará presente na Bienal para acompanhar a exibição de seu filme.

Mulheres cineastas

Da região do Alto Rio Negro também serão apresentadas na Aldeia SP outras três produções feitas apenas por mulheres indígenas: "Kupixá Yanékitiwara: Nora Malcriada", de Elisangela Fontes Olímpio, do povo Baniwa. No filme, a autora faz uma conexão entre o mito indígena do título com cenas de seus parentes em trabalho de roçado; "Wehsé Darasé - Trabalho da Roça", de Larissa Ye'padiho Mota Duarte, da etnia Tukano, e "As manivas de Basebó - Histórias e Tradições", de Maria Claudia Dias Campos, indígena Tariano.

"Eu avalio esse cinema feminino de forma muito positiva. Elas quebraram esse preconceito de que mulher indígena não pode fazer cinema porque tem filhos, cuida da casa. Fazem cinema com os filhos, maridos... Sejam mães solteiras, casadas, fazem cinema de todas as formas, e brilhantemente", afirma Pedro Portella.

Dez realizadores indígenas estarão presentes na mostra: Txana Isku Nawa (Huni Kuin, do Acre), Alexandre Pankararu (Pankararu, de Pernambuco), Carlos Papá (Guarani), Cristiane Takuá (Takuá), Jerá Giselda e Wera Alexandre (Guarani Mbya), ambos de São Paulo, Larissa Ye'padiho Mota Duarte (Tukano, do Amazonas), Morzaniel Iramari Yanomami (Yanomami, Roraima/Amazonas), Michely Fernandes (Guarani-Kaiowa, do Mato Grosso do Sul/Rio de Janeiro), Alberto Álvares (etnia Guarani-Nhandeva, do Mato Grosso do Sul) e Patrícia Ferreira (Guarani-Mbya, Rio Grande do Sul).

Urgência e resistência

O idealizador e coordenador da Bienal de Cinema Indígena, Ailton Krenak, classificou as atuais produções indígenas como um cinema de combate e resistência. "Os realizadores indígenas, que vêm de diversas regiões do país, com suas narrativas e visões sobre as realidades regionais e locais de onde filmam, estão assumindo uma vanguarda da denúncia, mostrando, ao mesmo tempo, a sua cultura e sua luta e resistência diante do cerco às últimas regiões ainda naturais de nosso planeta", disse Krenak, à Amazônia Real.

Para Ailton Krenak, a presença de indígenas produtores no momento presente tem mais sentido de urgência do que de relevância. E essa urgência também precisa enfrentar as dificuldades pragmáticas e financeiras comuns a quem faz cinema no Brasil, diz o líder indígena.

"As narrativas indígenas, com as suas cosmovisões, talvez se façam ouvir com a sua ampla difusão nas telas espalhadas pelo mundo. Esse cinema que está sendo mostrado é um olhar indígena, utilizando tecnologia e recursos consagrados pela mídia audiovisual, com uma narrativa que marca a visão de grande variedade de povos indígenas. É plural a visão expressa nesse cinema de índio, digamos. Já nasceu com identidade e a questão agora é se vai sobreviver às dificuldades de ordem prática", analisou Ailton.

Uma das características do Cinema de Índio, como classifica Ailton Krenak, é o seu parentesco com o Cinema Novo, movimento que dominou o gênero brasileiro no final da década de 1960. A caraterística atualizada deste movimento é a simplicidade dos equipamentos, como um celular, através dos quais é possível contar histórias prodigiosas. É com estas ferramentas que muitos indígenas, através de seus coletivos, estão indo a campo de suas próprias aldeias para registrar a realidade.

"Muitos fazem filmes com celular, como é o caso dos integrantes de Coletivos de Realizadores do Nordeste, que estão muito bem representados pelos Pankararú Kiriri e Tupinambá. São documentaristas que apropriam as mídias digitais, como aplicativos e outros recursos de tecnologia, na realização de suas obras. Invenção é a marca deste cinema de combate e resistência", explica.

Entre os coletivos indígenas que estão desenvolvendo cinema com as ferramentas possíveis, Ailton Krenak cita o Mbya Guarani de Vídeo, o Espalha a Semente, do povo Tupinambá, a Associação Cultural dos Realizadores Indígenas de jovens Kaiowa, Guarani e Terena do Mato Grosso do Sul, e o Coletivo Mbya Guarani de Cineastas. "Este é da turma que já fez clássicos, como 'Bicicletas de Ñanderu', e trará seu último filme, 'No Caminho com Mario'. É uma maneira de divulgar a criativa rede de realizadores indígenas espalhados pelo Brasil e que deve se ampliar ainda mais", explicou Ailton Krenak.

Como se produz cinema indígena?

O cinema indígena não é apenas um cinema de resistência, mas de coragem e perseverança. A Agência Nacional do Cinema (Ancine), principal organismo de fomento de produção cinematográfica do país, não tem uma linha para incentivar e financiar filmes de indígenas, como observa Pedro Portella.

"Mesmo com uma produção expressiva, a Ancine nunca fez um edital sequer para o audiovisual indígena, e nem permite que produtoras e associações indígenas registrem seus filmes com a emissão do Certificado de Produto Brasileiro (CPB) que permite a exibição dos filmes no cinema e na TV aberta. Por isso o audiovisual indígena ainda é marginal, sobrevive sem esses milhões desta agência que privilegia uma visão publicitária e pouco comunitária", conta Portella.

Ele ressalta que entre alguns dos apoiadores do cinema indígena estão a Associação Filmes de Quintal, o Vídeo nas Aldeias, o Pontão de Cultura Rio Negro, o Observatório da Educação Escolar Indígena e o Instituto Catitu. E também cita a iniciativa da TV FOIRN, de indígenas do Alto Rio Negro, o Departamento de Projeto Audiovisual do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e o Centro de Mídia Kokojagoti, dos jovens Kayapó, do Pará.

"Os indígenas produzem muito com poucos recursos. É a comprovação do ideal glauberiano de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Os trabalhos são criados de forma artesanal. Existe a casa de forno, de farinha, e a casa de cinema, o cinema de maloca. O indígena munido com uma pequena câmera com microfone, que custa pouco, faz media metragem. O cinema artesanal é assim, criado calmamente, como um trançar de palhas que cria um tipiti, um waturá", afirma.

Mas não há uma linguagem ou estética homogênea. Portella destaca que há diversidade de linguagens e métodos entre os povos indígenas. "Os Kayapó, os Maxakali e os Yanomami não editam muito seu material, preferem sequências grandes. Já os Baré gostam de mais cortes, uma montagem mais picotada. Os Guarani-Kaiowá e os Tikuna fazem videoclipes. Os primeiros, inclusive, cantando hip-hop, que é uma extensão de sua luta pela terra", relata.

Atualmente, o órgão público que apoia as produções indígenas é o Iphan, vinculado ao Ministério da Cultura. "O Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, por exemplo, foi registrado por jovens indígenas em um destes projetos de patrimonialização e rendeu belos documentários", diz.

São as oficinas os principais instrumentos de aprendizagem dos indígenas no mundo do cinema. Pedro Portella trabalha com formações audiovisuais com indígenas há 15 anos. Fez parte do Vídeo nas Aldeias, uma das iniciativas mais inovadoras e reconhecidas no país. Coordenou oficinas para quase 30 etnias, muitas delas na Amazônia. "Nas oficinas eles aprendem, tecnicamente, a como fazer enquadramento, focagem, medição de luz, edição. Todos assistem às próprias imagens coletivamente, com os mais velhos dando palpites. É uma roda de cinema, as imagens entram nesse círculo de saberes", conta.

Ele lembra que em muitos casos, homens e mulheres desenvolvem o interesse conforme suas afinidades cotidianas. Xamanismo, por exemplo, é um tema mais comum entre os homens. A agricultura atrai as mulheres. "Cada qual se preocupa mais com suas próprias atividades e quer mostrar mais seu próprio universo de saberes", afirma.

Um dos jovens talentos que também terá seu filme apresentado na Aldeia SP é Morzaniel Iramari, do povo Yanomami. O filme "Curadores da Terra-Floresta" foi filmado em 2014, na aldeia Watoriki, no rio Demini, no extremo norte do Amazonas, já na divisa com Roraima. Portella descreve a câmera de Morzaniel como "magia dos xamãs e o movimento dos espíritos em cinema".

"Os Yanomami não podem sequer pronunciar o nome de seus parentes mortos. O registro audiovisual por eles é algo novo e surpreendente. Morzaniel registra o xamanismo. A sobrevivência desta prática depende do interesse dos mais jovens. É aí que entra o cinema documentário para valorizar este universo particular", diz Portella.

Para o curador, a produção indígena sobre sua realidade é um ato político, onde eles mostram segundo sua estética e desejo. "O registro realizado pelos indígenas lança sua própria voz, é onde a intimidade sobrevive, contrasta com a impessoalidade das imagens realizadas por não indígenas", explica.

Djuena está na abertura

A abertura da segunda edição da Aldeia SP - Bienal de Cinema Indígena acontece às 17h desta sexta-feira (07), no Centro Cultural São Paulo, com exibição de filmes e outras atividades. Na abertura, está confirmada a primeira exibição oficial em São Paulo do longa-metragem "Martírio", dirigido pelo antropólogo, indigenista e documentarista franco-brasileiro Vincent Carelli. O filme recebeu recentemente o Prêmio Especial do Júri Oficial e o prêmio de melhor filme de longa-metragem do Júri Popular no Festival de Cinema de Brasília. "Martírio" será exibido às 15h, na sala Lima Barreto do CCSP.

No mesmo dia e horário, na sala Adoniran Barbosa, apresentam-se o Coral Guarani (17h) e a cantora indígena Djuena Tikuna (17h30), acompanhada no violão pelo marido Diego Janatã, ambos residentes em Manaus (AM).

Djuena, de 31 anos, é da etnia Tikuna e seu nome significa "a onça que pula no rio". Ela nasceu na aldeia Umariaçu, no município de Tabatinga, região do Alto Solimões, na fronteira do Brasil com a Colômbia. Em depoimento ao jornalista Jotabê Medeiros para o site da Bienal, ela disse que a família mudou-se para Manaus quando ainda era criança. Começou a carreira de cantora influenciada pela prima, Cláudia Tikuna. O repertório é formado por músicas tradicionais da etnia de Djuena. "A música para nós, povos indígenas, é nativa, tanto quanto o mais velho ancião. É nativa porque nasce conosco, tem cheiro de fumaça, gosto de mapati [fruta] e é pintada de urucum e jenipapo", disse a cantora.

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