VOLTAR

Betty Mindlin dá voz aos caciques e pajés

Jornal da Tarde
25 de Ago de 2001

Mais de duas décadas se passaram desde que a antropóloga Betty Mindlin pisou pela primeira vez no solo da aldeia Gavião, em Rondônia. Em todos esses anos, ela ouviu histórias e lendas agora reunidas em Couro dos Espíritos (Terceiro Nome e Senac, 256 págs., R$ 30). O lançamento ocorreu na última terça-feira na Livraria Cultura, em São Paulo, com a presença de um convidado ilustre: o cacique Sebirop Catarino, guardião dos costumes da tribo e fonte para grande parte das narrativas."Era uma dívida que eu tinha com eles", diz Betty, referindo-se aos Gavião, também denominados Ikolen. Em 1977, a tribo contava 143 pessoas, uma população ínfima ameaçada de extinção desde os primeiros contatos com seringalistas na década de 50. A pesquisadora começou então uma luta de resistência apoiada pelos caciques e pajés da aldeia.
Hoje os Ikolen são cerca de 408 pessoas, que vivem numa área demarcada de 185 mil hectares, e contam com posto de saúde e escola. Os benefícios materiais contudo não impediram a ameaça de destruição da cultura, principalmente em função da ação catequética de missões evangélicas.
"É uma situação de conflito. Daí a importância de uma obra como essa para as novas gerações", explica Betty.
Grande chefe
Os relatos misturam história e lendas para revelar a indissociável relação entre os índios e a natureza. Para os Gavião ou Ikolen de Rondônia, os pajés têm o poder de se transformar em outros seres, vestindo a capa dos animais: o couro da onça, o casco do tatu, a plumagem das araras e as escamas dos peixes.
O cacique Sebirop Catarino, de 49 anos, é filho de Digüit Tsorabá Francisco, uma das pessoas mais velhas da tribo. Digüit não é pajé, mas foi um grande chefe e passou ao filho a maior parte das histórias reunidas no livro.
Sebirop ouviu tudo e foi traduzindo a ponto de também se tornar um narrador importante. Ele acredita que a transmissão dessa cultura por meio de livros e do ensino é de fundamental importância para a preservação dos Gavião.
"Hoje quase todo mundo lá na aldeia é crente. Minha preocupação é deixar herdeiros para resistir e impedir a destruição da tribo", conta Sebirop.
Betty prefere não falar em perda quando o assunto é o choque entre as culturas branca e indígena: "É claro que se perde algo, mas o sincretismo que surge no lugar é a saída para a sobrevivência dos índios".
O livro Couro dos Espíritos será aplicado na escola da aldeia dos Gavião, onde toda a população fala uma língua do tronco tupi e o português.
André Nigri
Como surgiu o namoro
Antigamente, homem e mulher não namoravam como hoje, o corpo da mulher era diferente. A vagina ficava entre o dedão do pé e o outro dedo. O homem ia para o mato com a mulher, namorava entre os dedos do pé da namorada. O homem tinha orgasmo, saía esperma. A mulher grávida ficava com a criança na barriga da perna. Quase imediatamente nascia o nenê - bastava a mulher dar uma topada com o dedão. A criança mal ficava no colo: já sabia andar, não havia o trabalho de cuidar do nenê.
Quando alguém ia namorar, todos ficavam sabendo, pois a mulher voltava sempre com mais um filho pela mão.
Gorá, o Criador, percebeu que não era muito bom não poder namorar escondido.
Complicado também nascer mais gente, aumentar a população, só porque um casal malandrinho tinha vontade de se juntar no mato! Mudou o corpo e o namoro para como é hoje.
Rituais de Morte
Quando morre alguém, é preciso queimar todos os pertences, a começar pela casa. O corpo é enterrado na própria casa e toda a família se muda.
Roupas, enfeites, criação, animais, objetos comprados na cidade, armas, rádios de pilha, panelas, cobertores, redes, tudo é destruído, por mais valioso que seja mesmo agora que o dinheiro é usado para ter bens.
Diante da morte, o que vale o que se possui? Quebrar, desintegrar, forma de desespero, de saudade, de dor.
Não deve ficar nada para lembrar o morto.
Quem morre quer levar junto os seres amados, e é preciso cortar os laços com sua alma pequena, a que fica no tempo.Se as coisas do morto desaparecerem, será menos atraído para o lugar onde viveu e amou.Nunca mais se pronuncia seu nome: fala-se dele ou dela usando o termo de parentesco ou outro atributo. Muita gente ainda segue essa regra, embora o missionário tente mudar o costume, pregando que é desperdício.
Korõi e a onça
Ainda não era pajé quando a onça lhe apareceu no mato e cumprimentou-o.
- Como vai?Korõi estremeceu de medo. A onça falava a língua dos índios Arara, vizinhos dos Gavião. Korõi não entendia, mas tentou conversar. A onça, calma, continuou falando; era um pajé, era o amboy de Korõi, pedindo sua companhia para ir aos céus, ao garpikoy. Korõi tentou dominar o medo.- Venha passear comigo! - pedia o pajé-onça. - Você está com medo?
Korõi lembra seu primeiro passeio espantoso. Não queria ser covarde, encarou o jaguar, controlou-se:
- Subi ao céu, voando, falando como onça! No céu, minha alma dançava em meio à festa, muita gente, os espíritos dançavam rodopiando. Quando subi ao céu, havia bandos de papagaios revoando. Eram o espírito do papagaio, seu ti, vinham me buscar para a dança. Subi voando, gritando como papagaio, já transformado em ave, batendo as asas!
Korõi imita os gestos mágicos que fizera, com saudade do seu estado alado.
- Pedi ao papagaio que me alimentasse, dizia-lhe: "Corta o galho da minha fruta para eu comer!" Eu já entendia sua língua, falava e fazia algazarra como eles. Foi um passeio longo, fomos a outras aldeias, como a do urubu-espírito, Maiakô-ti. Ouvi muitos cantos pela primeira vez....
O Pajé Onça
Orotxob era um pajé. Era filho dos Babekáwei, mas sua mãe era Arara. Era um bom pajé. Nessa época Txiposegov foi caçar, ficou no esconderijo esperando os animais. Quando olhou para o lado viu uma onça-pintada. Desconfiou que era Orotxob.
- Eu sei que você é Orotxob! Você está querendo me matar?Atirou em Orotxob. Este, quase no mesmo instante, começou a passar mal em sua casa. Orotxob gritava, corria como doido. É porque fora perseguir o pajé Txiposegov, mas este tirara o seu couro de onça. Agora gritava de tanta dor, ninguém sabia por que, era porque o pajé tinha tirado o couro da onça.
Gritava, pulava fora de si. Correu para o rio, por lá mesmo morreu. Orotxob morreu porque Txiposegov tirou o couro da onça.
A queda do céu
O céu já caiu uma vez, era para ser o fim do mundo. Trovejou, trovejou, foi um estrondo, o céu foi caindo no chão. Vinha devagarzinho, devagarzinho. Na terra, todos choravam apavorados. Fugiram para debaixo do mamoeiro.
Antes de cair o céu, apareceram sinais. Caiu o cupim da árvore, prenúncio do desastre. Em pouco tempo o céu, que ficava altíssimo, muito longe da terra, começou a tremer.
O céu já estava bem baixinho, roçando um coqueiro, quando um menino pequeno, de uns 5 anos, tentou impedir a queda.Fez flechas com penas de mawir, uma espécie de nambu, que criança pequena não pode comer senão fica aleijada, não consegue andar. É um nambu bem redondinho, não tem penas no rabo, parece um favo de mel. Tanto os favos como o pássaro mawir são redondos, à semelhança da abóboda celeste.O menino flechou o céu, que era duríssimo. Atirou flechas enfeitadas com plumas de mawir. O céu começou a voltar para cima só porque a criança deu uma flechada com penas de mawir no céu. O céu subia devagarzinho, descia outra vez, subia com mais vigor. O menino jogou as flechas três vezes até o céu subir.
O coqueiro e o mamoeiro é que seguraram o céu. Quando o menino flechou, o céu resolveu voltar para cima. Retomou seu lugar nas alturas, ninguém morreu.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.