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Basta de preservar a degradação

JB, Cidade, p. A25
Autor: MOSCATELLI, Mário
18 de Set de 2005

Basta de preservar a degradação

Mario Moscatelli
Biólogo

Em resposta a uma lenta e progressiva conscientização por parte de nossa sociedade, inúmeros dispositivos legais vêm sendo criados e alguns outros tantos aprimorados, conforme a dinâmica que envolve todos os problemas de ordem ambiental.
No entanto, sua aplicabilidade em nosso país continua sendo um problema sem solução. Tal situação se dá, por um lado, diante da descontinuidade das políticas públicas e da excessiva burocracia de vários órgãos públicos e, por outro, pela falta de aplicabilidade no campo da realidade de alguns rígidos dispositivos legais diante da complexa e dinâmica realidade ambiental.
A romântica visão preservacionista, presente em textos técnicos do passado, em alguns textos legais do presente e no discurso inflamado de alguns ambientalistas” de plantão, que muitas vezes apenas reclamam e tumultuam, sem indicar caminhos factíveis para a resolução dos problemas emergenciais, mais uma vez não tem mostrado na prática o resultado esperado, isto é, a proteção de fato dos recursos naturais da forma abrangente como nós gostaríamos.
Um dos motivos para esta frustração de resultados práticos se deve à falta de políticas ambientais claras com começo, meio e fim, e orientadas por interesses político-partidários, corporativistas e clientelistas deste ou daquele grupo momentaneamente no poder. Há muito tempo, as questões ambientais são o verdadeiro samba do crioulo doido no Estado do Rio de Janeiro, onde associado à falta de um conjunto de diretrizes claras, soma-se o sucateamento das instituições teoricamente responsáveis pela materialização das políticas que também não existem. Deixo claro que o tal sucateamento institucional varia desde a falta de infra-estrutura operacional, como a redução numérica dos quadros, e a marginalização salarial da matéria-prima dessas instituições que é seu corpo técnico.
Mas isso vem de longe, visto que dentro de uma ótica onde as questões ambientais são um empecilho para os chamados desenvolvimentistas míopes e assistencialistas defensores do lema Só Jesus Salva”, o sucateamento das estruturas públicas de gerenciamento ambiental que representam na vida real a política e a proteção dos recursos naturais mostra-se uma prioridade em seus inconfessáveis objetivos particulares imediatistas. Tal atitude acaba gerando monstros ambientalmente inúteis e poços sem fundo com os recursos públicos perdidos tal como vem se materializando há anos, no arrastado Programa de Despoluição” da Baía de Guanabara ou nas irresponsáveis trocas de acusação entre as diversas esferas do poder público, seja na Lagoa Rodrigo de Freitas ou no sistema lagunar da Baixada de Jacarepaguá.
Analisemos sucintamente a situação de algumas unidades de conservação presentes na região da Baía da Ilha Grande, que são o reflexo do casuísmo político no ato de suas criações. Em estudo patrocinado pelo Programa Nacional do Meio Ambiente com apoio do Banco Mundial, desenvolvido em 1997, visando à criação de um Programa de Gestão para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia Contribuinte à Baía da Ilha Grande”, das cinco unidades de conservação locais analisadas, totalizando aproximadamente 160.000 hectares de áreas teoricamente protegidas, nenhuma delas contava, até então, com plano diretor, sendo sua implantação no mundo real” classificada pelo estudo como incipiente.
Provavelmente este quadro deve ter mudado muito pouco e quase que generalizável nas demais unidades de conservação existentes sob tutela das esferas municipais, estaduais e federais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, salvo raríssimas exceções. Alie-se a isso a verdadeira loucura de superposições legais que mais uma vez na prática não geram os resultados esperados, onde no mundo da teoria do não poder fazer nada, intimamente associado com a falta de infra-estrutura fiscalizatória e planos de gerenciamento, impera no mundo real o poder fazer tudo e de qualquer jeito.
Exemplo clássico dessa situação eu presencio diariamente nos manguezais da Baía de Guanabara e do sistema lagunar da Baixada de Jacarepaguá, onde pelos inúmeros dispositivos legais em vigor, o mesmo é intocável e inviolável, uma verdadeira virgem, largada num prostíbulo há décadas pelo poder público. No entanto, seja pelo aporte de lixo, de resíduos químicos, esgoto, sedimento ou pelo seu direto aterro, os mesmos diariamente são aniquilados, sem que saiamos de nossas confortáveis retóricas preservacionistas, apresentadas em ambientes refrigerados, completamente diferentes do caos que impera não só nos manguezais como em nossas lagunas, transformadas criminosamente pela ação e omissão das autoridades, em depósitos de lixo, esgoto e metais pesados.
Se alguém duvida do que afirmo acima, façam uma pesquisa junto aos órgãos ambientais gestores de algumas unidades de conservação tais como do Parque Estadual da Pedra Branca (IEF), Reserva Biológica e Arqueológica de Guaratiba (IEF), Reserva Biológica da Praia do Sul (Feema), APA de Tamoios (Feema) e APA de Marapendi (SMAC) quanto ao tamanho de cada unidade, dotação orçamentária destinada ao funcionamento dessas unidades, equipamentos disponíveis, corpo técnico de fato atuando, regularização fundiária (quando assim se fizer necessário) e vocês ficarão estarrecidos com o que vão encontrar. Mas enfim, isso não é novidade para ninguém, pelo menos para quem de fato trabalha na realidade e não apenas na burrocracia” ambiental onde nos últimos 400 anos tem imperado na prática da cultura brasileira, a filosofia exploratória do pau-brasil, de usar até acabar.
Dentro deste contexto de degradação generalizada onde o negócio é parir e abandonar unidades de conservação em datas festivas – no qual convido qualquer autoridade ambiental de nossa cidade a confrontar minhas informações publicamente – não me espanta todo esse nervosismo em relação a possíveis alterações na APA de Marapendi. As perguntas que devem ser feitas a todos os interessados são: vocês saberiam me definir o que é uma área de proteção ambiental? Qual sua finalidade? Como deve ser gerida? Quais os instrumentos de gerenciamento? Caso não saibam me responder essas perguntas básicas, ficará difícil manter um diálogo técnico produtivo sobre o assunto. Informem-se e vamos debater em nome de um futuro melhor em comparação ao seu recente passado, como devemos de fato gerenciá-la na realidade.
Gostaria de saber se no caso da construção de um resort”, se o mesmo iria aceitar que seus hóspedes navegassem ou mergulhassem em águas cheias de fezes e organismos patogênicos, como se observa atualmente em vários pontos da APA de Marapendi. É claro que se o principal produto oferecido por um resort” é a qualidade de vida respectivamente dependente da qualidade ambiental, até hoje negligenciada. Acho pouco provável que a presença de atividades econômicas que agreguem valor aos ecossistemas até hoje usados como latrinas pelo poder público venham a comprometer mais o meio ambiente. Muito pelo contrário, considero que tais atividades econômicas, desde que comprovadamente ecologicamente sustentáveis para com os ecossistemas locais serão as primeiras a exigir qualidade dos serviços públicos, bem como investir no gerenciamento (fiscalização, recuperação e manutenção) de fato dos tensores que agem na região e comprometem sua existência.
De uma forma geral, como o tempo é nosso maior inimigo nas questões ambientais, quero indicar um caminho possível para revertermos parcialmente esse caos. Para mim é muito claro que a sociedade não pode mais depender da vontade momentânea desse ou daquele governante mais sensível para com as questões ambientais. Precisamos no atual estágio de colapso de inúmeros recursos naturais estratégicos, tal como a água, de uma forma gerencial inexistente nas míopes estruturas públicas na medida em que a situação exige para a resolução de nosso eminente caos ambiental.
Neste contexto, lanço a idéia da transferência administrativa das unidades de conservação, bem como de recursos naturais teoricamente protegidos, para a gestão da iniciativa privada. Esta gestão terceirizada seria por um determinado número de anos, a ser definido caso a caso pelo poder público concedente e fiscalizador de fato, nessa nova divisão de tarefas. O poder público, por sua vez, transferiria o ônus do gerenciamento sustentável dessas áreas para os interessados no uso dos recursos dentro de parâmetros mais conservacionistas na prática do que preservacionistas só na teoria.
Enquanto não agregarmos valor econômico aos ecossistemas ambientalmente vulneráveis por meio de atividades que não os degradem, desenvolvendo atividades econômicas que transformem as unidades de conservação e demais ecossistemas protegidos em ativos e não em eternos passivos, continuaremos nos lamentando de nossa incapacidade gerencial dos recursos naturais em claro processo de colapso numa sociedade cheia de demandas não preenchidas pelo poder público. Agora é a hora de mostrarmos que aprendemos alguma coisa com 400 anos de degradação. Amanhã, já será tarde demais.

Mario Moscatelli Coordenador na Escola de Biologia do Centro Universitário da Cidade dos Projetos Manguezal da Lagoa e Manguezário (Lagoa Rodrigo de Freitas).

JB, 18/09/2005, Cidade, p. A25

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