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A balda agrária

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: GRAZIANO, Xico
03 de Fev de 2004

A balda agrária

Xico Graziano

Uma idéia fixa, um verdadeiro cacoete, atrapalha o entendimento do processo da reforma agrária no Brasil: trata-se da discussão sobre o número de lotes distribuídos. Todos querem saber: qual a meta de assentamentos? Quantas famílias receberam terra?
Recentemente, o Incra anunciou que promoveu 36 mil assentamentos durante 2003. É muito ou pouco? O governo disse que, por ser início de gestão, fez bastante. Para o MST, o passo é de tartaruga. A esperança agora recai sobre 2004: a meta visa a assentar 115 mil famílias. Tá de bom tamanho?
Vem de longe essa mania na questão agrária. Há meio século já se defendia um processo maciço e amplo de distribuição de terras, capaz de eliminar por completo o latifúndio, dominante então no País. Milhões de camponeses seriam beneficiados. Nada aconteceu.
Com a redemocratização, em 1985, o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) estimava os beneficiários potenciais entre 6 e 7 milhões de famílias. A meta do governo Sarney, porém, ficou estabelecida em 1,4 milhão de famílias. Ao final do período, apenas 6% da meta acabou cumprida.
Mais tarde, no esquentar da campanha presidencial de 1994, o PT saiu na frente da ousadia, anunciando que, se vencesse, assentaria 1 milhão de famílias. O PSDB, mais modesto, ficou em 280 mil. Levou chumbo pela suposta timidez.
Findo o governo Fernando Henrique, divulgou-se que 620 mil famílias haviam recebido terras em oito anos. O feito, extraordinário, não era reconhecido pela oposição. Maquiaram os números, afirmavam, para delícia da mídia. Não chegou nem a 400 mil, jurava o MST. A Contag aceitava 500 mil. Quem dá mais?
Eleito Lula presidente, durante 2003 em segredo uma equipe formulava o segundo PNRA. De repente, ressurge a meta milionária: por menos de 1 milhão de famílias ficava pequena a reforma. O ministro Rossetto, porém, esfriou o jogo: anunciou que 400 mil famílias deveriam receber terra até 2006. Foi uma decepção na esquerda agrarista.
Mas, afinal de contas, qual o sentido dessa discussão numérica? Qual é a base comparativa? Quantos são os sem-terra, hoje, no País? Francamente, ao certo, ninguém sabe responder. A conta depende da ideologia, e os números brotam de políticos.
Era fácil, no passado, calcular. O País era rural e os trabalhadores da agricultura residiam no campo. Somados todos, resultavam milhões. Terra para quem nela trabalha, dizia o jargão, simplesmente.
Hoje, urbanizada a Nação e modernizado o latifúndio, na maioria das regiões brasileiras o mercado de trabalho rural está profissionalizado. A produtividade impera, substituindo braços por tecnologia. O bóia-fria mora na cidade e o sem-terra mudou de ramo. Expulso do campo ou atraído pela ribalta, quer virar cidadão urbano.
Tem gente da academia que ainda faz conta à moda antiga, incluindo no contingente de sem-terra os operários rurais, esquecendo-se de que a oferta e a demanda de emprego definem os salários. Felizmente, ao contrário do que muitos imaginam, inexiste desemprego na roça. Assim, quanto mais se assentar, mais se provocará elevação dos salários, inviabilizando a própria reforma agrária. Qual sua preferência: um lote alhures ou um bom emprego aqui?
Alguns, meio romanticamente, parecem apostar no sucesso da agricultura de subsistência. Uma autêntica volta ao passado. Nesta hipótese, o caos urbano será a contrapartida da reforma agrária, pois sem excedentes de alimentos e matérias-primas não funcionam as cidades. Haveria desabastecimento.
A novidade na estimativa dos sem-terra surgiu recentemente com a arregimentação das periferias para invadir propriedades rurais. Criou-se uma espécie de "fábrica de sem-terra", alimentada a partir do desemprego urbano.
Apareceu até mesmo intelectual teorizando sobre o novo ciclo pós-industrial da reforma agrária, um escape das tensões urbanas. Besteirol puro.
Os ricos gostaram da idéia: bota essa gente miserável longe daqui, que vá atrapalhar os fazendeiros lá no interior, e deixem em paz nossos negócios! E assim, vendendo ilusão aos coitados da cidade, a esquerda atrasada fez as pazes com a burguesia. Tudo em nome do social. Com a bênção da Igreja Católica.
É falsa essa polêmica sobre a quantidade dos assentamentos. Ela distrai a atenção sobre o dilema fundamental: qual o resultado concreto dos projetos?
As famílias assentadas estão produzindo bem? Auferem renda? Vivem com dignidade? Em outras palavras, como vai a qualidade da reforma agrária?
Pouco importa quantas famílias foram assentadas. Há que se livrar dessa balda, que valoriza a matemática e menospreza a economia rural. Ora, a política fundiária se inicia, não acaba, com os assentamentos. Qual a relação custo-benefício dos projetos de reforma agrária?
O Incra calcula que cada família assentada absorve, em média, R$ 31 mil do Tesouro. Fora os créditos, que raramente retornam. Quanto à produção, ninguém nunca avaliou. Estudos mostram que as famílias vivem mal. A baixa qualidade de vida provoca elevada evasão dos lotes. Há, sempre, exceções que confirmam a regra.
Mais importante que assentar é garantir que aquelas famílias que já estão na terra consigam produzir e viver com dignidade. Além disso, o Estado, que pensa em criar novos agricultores, precisa, antes, zelar pelos produtores que ostenta. Se não, assenta de um lado, expulsa de outro. A soma dá zero.

Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98) E-mail: xicograziano@terra.com.br

OESP, 03/02/2004, Espaço Aberto, p. A2

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