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Bajaus, nômades do mar em risco de extinção

O Globo, Sociedade, p. 37
01 de Fev de 2015

Bajaus, nômades do mar em risco de extinção
Etnia indonésia é símbolo da ameaça das mudanças climáticas e enfrenta o preconceito e a indústria pesqueira

Renato Grandelle

A gestante hesita em dar à luz no centro de saúde de uma vila no litoral de Bohol, uma ilha a 2,6 mil metros de Jacarta, a capital da Indonésia. Acompanhada de uma mulher mais velha, ela prefere que o parto seja em sua casa de palafita, à moda antiga, com um bambu afiado cortando o cordão umbilical. Enquanto o enfermeiro tenta vencer a resistência da grávida, um pescador, a alguns quilômetros dali, diz que gente como ela merece morrer.
Desde que vêm ao mundo, os bajaus já ganham olhares tortos. São vistos como sujos, bandidos e invasores. A comunidade de 100 mil pessoas é uma das menos conhecidas e mais discriminadas do mundo. Parte do anonimato se deve à falta de um lar. A alcunha "nômades do mar" faz jus a um povo que há mais de mil anos migra no litoral de cidades do Triângulo dos Corais, a região de maior biodiversidade marinha do planeta, entre países como Filipinas e Indonésia.
Exímios pescadores e navegadores, os bajaus são recebidos com crescente hostilidade nas vilas costeiras dos países. Os relatos da gravidez e do desejo por condenação foram ouvidos pela cientista política filipina Regina Estorba, que acompanhou os descaminhos da comunidade em Bohol.
- Conhecia um pescador local há alguns anos, e ele me disse: "os bajaus? Eles merecem ser mortos" - lembra. - Os bajaus são vistos como pescadores ilegais e ladrões de barcos.

ÁGUAS SOBEM ATÉ 12 MM AO ANO
As dificuldades econômicas, a perseguição étnica e a falta de reconhecimento estão entre os maiores obstáculos para a sobrevivência da comunidade. Fora da terra firme, outro desafio a aguarda. As Filipinas estão entre os países mais vulneráveis a eventos climáticos extremos, como furacões, e onde já se observa o maior aumento do nível do mar. Durante o século XX, as águas se elevaram a ritmo de até 12 milímetros por ano, quatro vezes mais do que no resto do planeta, segundo a Organização Meteorológica Mundial.
Encontrar comida também é missão difícil. Os bajaus, que vão de uma ilha à outra em busca de pesca, não são informados sobre a entrada em santuários marinhos, locais em que a atividade é proibida. Por isso, diz Regina, é comum ver pessoas da comunidade detidas pela polícia. Saem após pagar fiança - solução penosa, considerando que o povo vive de trocas e não costuma usar dinheiro. Diante da restrição da área onde podem atuar, e da competição desigual com a indústria pesquisa, os jovens jogam no mar substâncias tóxicas, como cianeto, e explosivos.
- A pressão da indústria e a disputa por recursos marinhos levaram os bajaus a largarem suas normas sagradas de honra ao mar - lamenta a indonésia Veda Santiadji, presidente do Programa de Apoio ao Triângulo de Corais da WWF no país. - Os métodos tradicionais foram substituídos por outros destrutivos, e agora tentamos conscientizar a comunidade e criar um compromisso entre ela e o governo, protegendo sua fonte de subsistência.
Mas conseguir atenção das autoridades nunca foi uma especialidade dos bajaus - mesmo provocando um certo movimento na região. Ao atracar em um novo ponto da costa, cada família usa estacas de bambu para erguer suas casas com parede de madeira e telhados de ferro a pouco mais de três metros acima do mar. Montam até mesquitas improvisadas - 30% da população são islâmicos; 65% seguem religiões étnicas tradicionais, mantendo rituais como jogar tartarugas ao mar em épocas de escassez, pedindo abundância.
Apesar de estar quase sempre circundada por outras populações, a etnia se depara com a falta de recursos básicos, como eletricidade e água potável.
- A rede elétrica não chega à borda da costa, e um membro da comunidade precisa viajar para o outro lado das baías até encontrar um local em que possa comprar água - conta Regina. - Existem regiões em que o governo local leva o saneamento básico a comunidades vizinhas, mas não aos bajaus. Eles cavam buracos no canto das cabanas, bem acima da água, e defecam ali.
Segundo um levantamento da Universidade das Filipinas, os bajaus são vistos, mesmo por outras comunidades nativas, como indolentes, irresponsáveis e inconfiáveis. A má impressão repercute nas cidades, onde um naco cada vez maior de sua sociedade deixa as tradições para trás e procura um ganha-pão. Enquanto os homens correm atrás de empregos em minas e na pesca comercial, mães e filhas apelam para a mendicância. De acordo com Regina, elas conseguem, em média, o equivalente a US$ 1 por dia.
Não há perspectivas para um futuro diferente. Devido à falta de assistência social, quase todos os adultos são analfabetos. Poucas crianças vão às escolas - e muitas o fazem apenas para aproveitar o lanche, segundo a pesquisa universitária das Filipinas. A educação, muitas vezes, fica por conta de ONGs e campanhas missionárias.
A mortalidade infantil é alta. Divididos entre muitos arquipélagos - e, muitas vezes, em comunidades rivais -, não conseguem emplacar representantes políticos, que teriam mais condições de lutar por seus direitos.
Fundador do Munden Project, um grupo de auxílio a povos nativos, o americano Lou Munden acredita que os bajaus não querem viver como uma comunidade isolada.
- Precisamos de dinheiro público para criar uma rede internacional de apoio a comunidades como os bajaus - reivindica. - Eles precisam ter direitos legais sobre seus negócios e a garantia de que suas terras não serão destinadas a outras atividades, como mineradoras. Com os recursos básicos, esses povos podem conseguir bons resultados socioeconômicos sem agredir o meio ambiente.

DESALOJADOS PELO GOVERNO
No entanto, se precisar escolher entre a terra e os bajaus, o governo indonésio prefere a primeira opção.
- As autoridades já nos tiraram da ilha de Bokori, para que ela virasse um destino turístico - conta Abdul Manan, líder de uma das comunidades no país. - Outras vezes, insistimos e ficamos, mesmo quando nos prometem casa em outra parte.
Entre as muitas ofensas empregadas contra os bajaus está a teimosia. Manan é prova disso. Considerando os descalabrados tão comumente ditos deles, bater o pé para manter um espaço para si não deveria ser visto como um defeito.

O Globo, 01/02/2015, Sociedade, p. 37

http://oglobo.globo.com/sociedade/bajaus-nomades-do-mar-em-risco-de-ext…

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