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Autenticidade é força de exclusão

A Crítica, p. A-11 (Manaus - AM)
Autor: OLIVEIRA, João Pacheco de
17 de Jun de 2002

A sociedade brasileira ainda carrega uma idéia profundamente tutelar em relação aos indígenas. Quer sempre um especialista em índios, alguém que fale no lugar dos índios sobre os índios e, enquanto uma nova compreensão não for assimilada - a de que são os indígenas que devem expressar suas demandas -, sociedade, governos e agências internacionais exercem um papel nocivo. É o que defende o antropólogo João Pacheco de Oliveira, 54, professor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, membro do Conselho Indigenista da Funai, um órgão consultivo cujos participantes não representam instituições, mas são convidados a partir da experiência acumulada na área. João Pacheco de Oliveira é um veterano pesquisador da questão indígena no Amazonas, onde iniciou, em 1973, os seus primeiros trabalhos de investigação, na região do Alto Solimões. Para ele, é preciso acabar com a história de, no Brasil, embaixador falar pelos indígenas. O professor esteve em Manaus há uma semana onde participou de um debate, a convite do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Amazonas (UA), sobre um tema polêmico: a inautenticidade dos indígenas. Nesta entrevista, diz que a mudança nos procedimentos do IBGE para o censo revelou um Brasil que estava debaixo do tapete - o Brasil indígena -, e que a autenticidade exigida aos índios é um instrumento de manipulação pelo qual o branco se auto-anistia de todo o processo de colonização e exclui os não-brancos. A seguir, trechos da entrevista:

A CRÍTICA - Os índios atuais são autênticos?
JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA - Essa é uma pergunta que deve ser respondida com uma firme rejeição em relação à idéia de autenticidade. Os seres humanos não são necessariamente autênticos, podem mudar, se adaptar e estão relacionados com o contexto histórico-cultural onde vivem e essa relação deve ser governada por eles e não por uma política de Estado ou pela expectativa de grupos que se consideram dominantes. Não deve haver uma capacidade seja do cientista, seja do Estado ou da opinião pública de impor padrão de autenticidade aos seres humanos. Os grupos humanos vão mudando, filtrando a cultura, reelaborando, reapropiando, são atos que fazem parte da vida e da dinâmica social. A cultura não é uma coisa imutável, não está no formal. Quando falamos do encontro de portugueses e índios há 500 anos sempre pensamos que um lado deles é imutável, necessariamente de pedra, e não pode jamais ser modificado sem perder a sua autenticidade. Não perguntamos nunca sobre as mudanças lingüísticas, comportamentais, de estratégias de nacionalidade que fazem parte do lado não-indígena. Há 150 anos não existia a Alemanha, a Itália, no entanto, imaginamos que os índios têm de ser iguais aos da fase da "descoberta".

AC - A ciência não se torna perversa ao manter e reforçar essa exigência?
JPO - Isso faz parte de um elemento do próprio encontro colonial. É uma parte da consciência culpada do homem branco em relação ao indígena que ele pretende que seja tal qual era antes da chegada desse homem branco. Ao tentar imaginar o índio nessa ótica de autenticidade, de certo modo o branco se auto-anistia de todo o processo de colonização.

AC - Mas também sentencia o indígena tentando colocá-lo em um gueto, não?
JPO - Penso que há sim esse exercício. No âmbito das políticas dos Estados existem preocupações, por exemplo, em definir quem é e quem não é índio. A própria Funai tem um conjunto de demandas feitas por vários grupos sociais emergentes - índios ressurgidos como define o Cimi -, que existem em muitos lugares do Brasil e não estão dentro da documentação mais antiga em relação a essas áreas e, muitas vezes, a Funai tem a preocupação em saber se são índios verdadeiros ou se é uma manipulação, coisa falsa, criada por interesses sindicalistas, pela igreja, antropólogos ou ONGs. Evidentemente é sempre a idéia de que o indígena não é capaz de fazer sem ter alguém por trás dele que faça. Penso ser essa uma atitude equivocada, pois, as populações estão construindo suas fronteiras, seus limites, em função de estratégias que são delas. A cada momento uma população se identifica por um determinado aspecto. Veja, se o brasileiro tiver um trauma em relação à Copa do Mundo, provavelmente, o Brasil deixará de ser mais o "País do futebol" para ser o País de outra coisa; quer dizer as pessoas vão mudando, os símbolos para a identidade são escolhidos em função de conjunturas políticas, mudança de interesses. A cultura não é nunca um objeto. Em alguns casos o objeto foi danificado, destruído, prejudicado, mas pode ser visto por uma coletividade como sendo o mesmo. Então, cultura é o que se faz com ela, o que se diz, o que se reapropria.

AC - A idéia da cultura é museológica?
JPO - De certo modo sim, pensa-se a cultura como algo que está no museu, objetos relacionados às etnias, à sociedades, ao tempo.

AC - É uma postura patrocinada pelos antropólogos?
JPO - É uma idéia na qual os antropólogos conviveram, incentivaram durante muito tempo e participaram. Os museus foram muito importantes na prática e na consolidação da antropologia. Mas é possível ter mudanças dentro desses padrões. Em 1957, Darci Ribeiro criou o Museu do Índio, um museu contra o preconceito que ele pretendia reter. Penso que hoje os indígenas têm propostas alternativas a esse tipo de visão. Existem os museus indígenas nos quais eles falam sobre a cultura, apresentam aquilo que querem da cultura. O objeto cultural implica na apreensão do mesmo, não pode ser pensado só como materialidade, é também espírito que dá sentido à matéria.

AC - Qual é a sua compreensão sobre a autenticidade?
JPO - É uma palavra muito pesada, usada freqüentemente na história brasileira para excluir determinado grupo. Tem-se a idéia de que os indígenas não são mais verdadeiros porque absorveram certas instituições que são dos brancos, com isso seriam menos índios, mestiços, aculturados. Aliás, essa é uma visão singular em relação a ideologia da mestiçagem brasileira, pois, Gilberto Freire preconiza que o brasileiro conseguiu ter o melhor do branco e do índio, só pegou os aspectos positivos. Isto é, o mestiço brasileiro é um homem perfeito. Do ponto de vista indígena funciona a outra visão, a de que herdou o que havia de ruim, não pode ser tratado nem com o que é aplicado ao branco porque é índio e, de outra forma, não é mais visto como índio e passa a ser mutuamente discriminado. Se se for trabalhar com a política da terra em relação a essa visão, os índios perderam seus territórios em função da pressão do homem branco e, agora, vem o homem branco dizer que o índio não é mais índio suficiente para que o território fique nas mãos dele. Essa é uma política onde o autêntico está só como mecanismo de exclusão, enquanto isso não precisamos mostrar que somos autênticos no sentido de sermos iguais a D. Pedro I no grito do Ipiranga. É um jogo de dois pesos e duas medidas.

AC - Quanto a identidade, o Censo-2000 do IBGE apresenta um dado novo que é de uma população de 701 mil pessoas se auto-identificando como indígenas. Há uma atualização da cultura indígena no País?
JPO - A história do Censo no Brasil começa com uma categoria muito arbitrária que é a do pardo. Diz o movimento negro que pardo é papel ou são os gatos, pessoas não são pardas, e eu concordo com essa definição. No conjunto da história brasileira, os pardos acabaram sendo a corroboração da história da mestiçagem: a idéia de que o Brasil juntaria numa única raça todas as outras. Esse processo caminhou até o Censo de 1990, na Região Norte, de onde a quantidade de definições que vinham para o IBGE em relação ao pardo chegavam a 80% da população - a identificação era feita pelo entrevistador. O instituto fez uma mudança importante nos seus procedimentos e, nela, não é mais o entrevistador, com os preconceitos que ele tem, que determina, mas o entrevistado que se auto-identifica. O resultado do Censo-2000 foi extremamente significativo, mostra uma ampla faixa da população indígena que estava debaixo do tapete, desconhecida e rejeitada pelas políticas governamentais. Pessoas se auto-identificando como indígenas é muito significativo em um País como o nosso.

AC - Qual a reflexão que o senhor faz em relação a esse número revelado pelo Censo?
JPO - Nos indica presença dos índios nas cidades que é extensa, vai além das capitais e é uma realidade que marca a vida das pessoas, mas o brasileiro continua achando que só tem indígena nas frentes de expansão do Amazonas, nos últimos territórios que não foram ocupados, o que não é verdade, existem índios em São Paulo, Campo Grande, nos Estados do Nordeste. O Censo revelou um outro aspecto, o de que existem índios no Brasil.

AC - O movimento indígena lida com um impasse sobre a situação dos índios na cidade. Uma corrente quer garantir qualidade de vida a esses indígenas, ampliar direitos; Outra entende que tais melhorias vão significar incentivo para que mais indígenas abandonem suas comunidades e venham para as cidades. Como o senhor avalia a situação?
JPO - Para os indígenas é essencial a demarcação dos territórios, mesmo que morem em cidades precisam dos territórios demarcados no interior, as referências míticas, emotivas, inclusive políticas são dadas na relação com o território que é rural, original, dos ancestrais. Também no caso das populações urbanas que têm demandas específicas, há necessidade de se reportar a algum território básico. De certa maneira se vê isso como um dilema do mundo. Qualquer povo - e os indígenas são povos -, precisa ter uma relação com algum território, onde possam executar de forma relativamente autônoma suas gerências dos recursos naturais, dos governos, administrar sua cultura. A idéia do índio urbano é muito pesada, elimina a alternativa de voltar que está sempre presente. Então, se você vende a região deles isso constitui-se em crime de lesa-pátria. A cultura é prazer, relação de afetividade, as pessoas querem voltar ao lugares que são seus porque aquilo completa a satisfação delas.

AC - A pauta dos encontros que vão ocorrer no Rio de Janeiro, na última semana deste mês, está sendo criticada por secundarizar a questão indígena. O senhor concorda com as críticas feitas?
JPO - Vejo com enorme apreensão se a agenda não contemplar a questão indígena na sua amplitude, porque isso será uma demonstração de cegueira absoluta das políticas de cooperação e proteção ambiental. No caso das áreas indígenas estas são absolutamente cruciais à proteção da Amazônia, da floresta tropical e de toda a biodiversidade existente; isso pode ser demonstrado por dados numéricos e se elas forem consideradas como prioridade muito pequena, se as experiências de capacitar organizações indígenas para administrarem seus territórios, desenvolver projetos sustentáveis, criar uma nova relação entre essas populações e as populações regionais retrocederem, estaremos diante de uma ameaça séria para a Amazônia, pois, a política de proteção da região, infelizmente, é reversível sim. A simples demarcação dos territórios não assegura nada no Brasil.

AC - Minimizar a presença indígena seria reoficializar a tutela?
JPO - É isso. Tem uma outra coisa, a tutela é um mecanismo muito mais encruado dentro da cultura, dos hábitos brasileiros e das práticas de dominação do que a gente supõe. Não basta acabar com a tutela no Estatuto do Índio. Os indigenistas continuam a falar em tutela, muitos indígenas em certas regiões reivindicam a manutenção da tutela porque já criaram clientelas indigenistas e, em geral, a sociedade tem uma idéia tutelar em relação aos índios, quer sempre um especialista em índio, alguém que fale no lugar dele. Isso é muito nocivo, a sociedade, as agências governamentais e internacionais precisa tender à compreensão de que o problema indígena é complexo, variável, é diversidade cultural. Toda experiência em que o indígena participou apresentou resultados positivos. Agora embaixador falando pelos indígenas não tem cabimento, deve-se acabar com isso.

AC - As campanhas eleitorais deste ano em relação aos povos indígenas silenciam, não têm propostas...
JPO - Talvez, à exceção do programa do PT de 1989, o próprio partido que tem relacionamento forte com os movimentos políticos, não conseguiu construir um conhecimento mais profundo na questão indígena. De modo geral, ela não está colocada na pauta nacional com visibilidade. Me surpreende a cegueira dos tecnocratas e até da burocracia dos partidos políticos de esquerda, direita, centro, em relação a esse tema. Eles partilham do preconceito da sociedade nacional: vêem a questão indígena pelo lado numérico e acham que ela não tem relevância.

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