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Ativismo em sinal de alerta

Época, Terceiro Setor, p. 66-72
18 de Dez de 2018

Ativismo em sinal de alerta
Líderes de ONGs, criticados por Bolsonaro, tentam abrir diálogo com o presidente eleito

Silvia Amorim e Tiago Aguiar
18/12/2018 - 19:54

"Está uma correria aqui. Acho que correr deve ser parte da minha carga genética." É assim, esbanjando bom humor, que Viviane Senna começa a conversa com ÉPOCA. Ela é irmã de Ayrton Senna, o tricampeão mundial de Fórmula 1 morto em 1994. Há mais de 20 anos, Viviane está à frente do instituto que leva o nome do irmão e é voltado para a área da educação. Ela também é a representante de organização não governamental (ONG) que mais vezes falou com o presidente eleito, Jair Bolsonaro, nas últimas semanas. Em 18 de outubro, usando um vestido branco abaixo do joelho, com brincos e um colar de pérolas e relógio da mesma cor, Viviane foi até a casa do então candidato discutir sobre os desafios da educação ainda antes do segundo turno. Acompanhada por Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, encontrou lá Joice Hasselmann, deputada federal eleita pelo PSL-SP. A foto tirada naquele dia, em que Viviane aparece ao lado de Bolsonaro e Hasselmann, correria solta pelas redes sociais.

"Vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil", dissera Bolsonaro 11 dias antes do encontro com Viviane. A declaração deixou o mundo das ONGs em polvorosa, gerando manifestos contrários a sua candidatura. Por isso, à primeira vista, o encontro com Viviane parecia ter sido, na visão de muitos observadores, apenas uma jogada oportunista. Ao aparecer ao lado dela, Bolsonaro mandava sinais contraditórios e parecia tentar angariar apoio entre eleitores favoráveis e contrários às ONGs. O mesmo candidato que varreria o ativismo também queria a opinião do Instituto Ayrton Senna. Passado o segundo turno, o presidente eleito voltou a procurar Viviane, o que foi interpretado por ONGs do setor de educação como um interesse genuíno no assunto. A primeira reunião no Rio de Janeiro não havia sido apenas um cálculo eleitoral.

"O presidente eleito ligou pessoalmente e perguntou se eu poderia ajudar mais. Aí marcamos uma reunião de trabalho liderada pelo Onyx Lorenzoni, o futuro chefe da Casa Civil", disse Viviane. O encontro foi em Brasília, em 14 de novembro. Além de Ramos, outro diretor do Instituto Ayrton Senna a acompanhou. Formado em engenharia eletrônica pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e doutor em economia pela Universidade de Chicago, Ricardo Paes de Barros é uma das maiores autoridades em temas sociais no Brasil. Quando os três chegaram ao hotel marcado, encontraram Priscila Cruz, presidente executiva do Todos Pela Educação, outra ONG referência na área da educação. Viviane a havia convidado para participar da reunião. Logo em seguida chegou a deputada eleita Joice Hasselmann, mas Lorenzoni se atrasou. A reunião marcada para começar às 9h30 só começou depois das 11 horas. Em vez das duas horas programadas, o encontro durou cerca de 50 minutos. A primeira parte da exposição ficou a cargo de Paes de Barros. Ele fez um alentado raio-x da educação no Brasil. Em seguida, Viviane falou, de forma enfática, da indignação que ela sente ao ver que 55% das crianças brasileiras entre 8 e 9 anos são analfabetas. Propôs que essa seja uma das prioridades do novo governo. Viviane foi transparente. Perto do final de sua exposição, deixou claro que via a proposta do Escola sem Partido como uma pauta bomba, algo que vai mais atrapalhar do que ajudar. Cruz, do Todos pela Educação, a terceira e última a falar, seguiu na mesma linha.

"Toda a literatura internacional sobre educação aponta que é incompatível fazer a reforma na educação que o Brasil precisa e, ao mesmo tempo, colocar em prática algo como o Escola sem Partido", disse Cruz, relembrando o que falou na reunião. Para ela, o professor é central em qualquer melhoria que se tente fazer. Não pode ser tratado como um inimigo doutrinador. Depois da introdução sobre os motivos contrários ao Escola sem Partido, Cruz passou a explicar o Educação Já! , um documento suprapartidário feito em parceria com outras organizações, como a Fundação Getulio Vargas e o Insper, e mais de 50 especialistas. Em 91 páginas, o Educação Já! explica, de forma didática, quais deveriam ser os objetivos do governo. Meta 1: toda criança e jovem de 4 a 17 anos na escola. Meta 2: toda criança plenamente alfabetizada até os 8 anos. Meta 3: todo aluno com aprendizado adequado a sua série. Meta 4: todo aluno com o ensino médio concluído até os 19 anos.

"O documento justifica a escolha das metas, faz um passo a passo da implementação das medidas necessárias para atingir esses objetivos e seus custos. Levamos mais de um ano e meio para finalizá-lo", disse Cruz. A impressão foi que tanto Lorenzoni como Hasselmann gostaram do que ouviram. Naquele momento, tudo parecia seguir da melhor forma possível. Mas, no prazo de uma semana, tudo voltaria à estaca zero. Convidada a ser ministra, Viviane declinou - é o quarto convite que ela nega nas últimas três décadas. Em seu lugar, Viviane indicou Mozart Ramos. Passados o feriado da Proclamação da República e o da Consciência Negra, o nome de Ramos vazou na imprensa.

No que pareceu ser um balão de ensaio orquestrado pelo governo eleito, a bancada evangélica protestou, e Bolsonaro desistiu do convite. Em 22 de novembro, anunciou como ministro Ricardo Vélez Rodríguez, um colombiano naturalizado brasileiro, ex-professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, sem nenhuma experiência como gestor de política pública nem como formulador na área da educação.

"Vélez, você tem faca nos dentes para enfrentar essa guerra?", perguntou Bolsonaro em 28 de novembro, quando o encontrou na Granja do Torto, em Brasília. "Senhor presidente, estou nessa guerra há 30 anos. Porque há 30 anos o marxismo está aí presente, marginalizando gente, fazendo 'fake news'. Então, a gente tem de estar sempre alerta. Não pode dormir no ponto", respondeu o futuro ministro da Educação, segundo conversa divulgada nas redes sociais. Sem conseguir influenciar na escolha do ministro da Educação e vendo a nomeação de uma pessoa sem tradição na área e com um discurso favorável ao Escola sem Partido, o Instituto Ayrton Senna e o Todos pela Educação afirmaram estar onde sempre estiveram: dispostos a ajudar no que for preciso. Como Viviane gosta de dizer, o foco será sempre as crianças e jovens brasileiros. "Nossa meta é que todos tenham a educação que eu, você e o Ayrton (Senna) tivemos", declarou. Até o fechamento desta edição ( esta reportagem foi originalmente publicada na edição 1067 de ÉPOCA, em 10 de dezembro ), Vélez não havia retomado a conversa com as duas ONGs.

Na área do combate à corrupção, uma ONG teve mais sorte na tentativa de moldar políticas que, provavelmente, serão adotadas pelo novo governo. "A luta contra a corrupção é difusa. Nosso papel é colaborar de maneira técnica para esse debate, mas também fazer crítica e cobrar", disse Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional no Brasil. Brandão está à frente da ONG que não chegou nem perto de emplacar um ministro, mas, até agora, parece ter sido a que mais influenciou os planos do governo eleito. A Transparência Internacional redigiu o documento Novas medidas contra a corrupção . O então juiz federal Sergio Moro levava um exemplar do livro em sua viagem ao Rio de Janeiro quando se encontrou com Bolsonaro para falar sobre sua atuação no governo. Já como futuro ministro da Justiça, Moro deu entrevista ao Jornal Nacional dizendo que se inspiraria no documento da Transparência Internacional. Entre os assuntos abordados no documento estão uma reforma das regras de recursos de ações e de prescrição de pena. "Temos há muito tempo um diálogo com Moro, assim como com o ministro Wagner Rosário, da Controladoria Geral da União", disse Brandão. Embora interpretada como positiva, a nomeação de Moro não silenciou os críticos ao novo governo.

"Há sinais trocados sendo emitidos pelo novo governo. Ao mesmo tempo em que defende muito o combate à corrupção e nomeia Moro, causam desconforto declarações de que o ativismo vai ser varrido do mapa. Esperamos que o ativismo seja fortalecido nos próximos anos e que não seja projeto do governo reduzir o controle social", disse Juliana Sakai, diretora de Operações da Transparência Brasil, entidade que também combate a corrupção, mas sem relação com a Transparência Internacional.

A declaração de Sakai mostra que grupos que lideram o combate à corrupção, uma das bandeiras de Bolsonaro, também estão acompanhando os primeiros passos do novo presidente com certa desconfiança. "A importância hoje do controle social para combater a corrupção é enorme. O Estado sozinho não tem condições de levar adiante isso. Nesse contexto, é preocupante uma fala que vai contra o ativismo social", disse Sakai. Embora tanto ONGs ligadas à educação como ao combate à corrupção se digam atentas, a situação delas em nada se compara à de grupos que foram alvos do presidente eleito antes ou depois da eleição. A lista inclui o movimento LGBT, defensores dos direitos humanos, ONGs associadas ao PT que dependem de verba do governo federal e ambientalistas.

"Vamos ter de dialogar. Quem venceu a eleição foram eles. Então vamos descer dos palanques e dialogar", disse Toni Reis, diretor da Aliança Nacional LGBTI+, uma das maiores do país nessa área. Um dos temas prediletos de Bolsonaro como deputado foi o movimento LGBT. Suas declarações sobre gays repercutiram nas redes sociais. Ciente disso, Reis desembarcou em Brasília na quarta-feira, 28 de novembro, para uma audiência com o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Pediu ao ministro que intermediasse um diálogo da comunidade gay com o futuro governo. Em sua passagem por Brasília, Reis também esteve no gabinete de alguns parlamentares pedindo apoio. "Sabemos que avançar vai ser difícil, mas não queremos regredir. Vamos utilizar todas as instituições democráticas existentes para que não se dê um passo atrás", disse. Os temas mais caros são conquistas recentes, como a união estável, o casamento homoafetivo, a adoção de filhos e a mudança de nome. Reis e Bolsonaro não são completos desconhecidos um do outro. O líder da comunidade gay e o então deputado já tiveram conversas no passado.

"Nós nunca nos recusamos a dialogar. Sempre falei com o Malafaia ( Silas Malafaia, líder evangélico ), já estive com o Magno Malta, senador pelo Espírito Santo. Eu dialoguei com Fernando Collor, José Sarney, Fernando Henrique, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff", explicou Reis, listando os ex-presidentes. Mas a posição de Reis não é um consenso na comunidade gay. Há quem pense que o movimento LGBT deveria assumir o papel de opositor a Bolsonaro desde já. A defesa do diálogo tem um preço interno, mas Reis está convencido que não há outro caminho. "Não queremos ensinar ninguém a ser gay nem sexualizar nossas crianças. Não queremos acabar com a família tradicional, só queremos respeito a todas as famílias", disse.

Outra preocupação é com a política de prevenção a aids. "O futuro ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, falou que não vai mais fazer campanha de prevenção. Estamos com o alerta amarelo ligado. Eles têm muito poder, mas não podem tudo. O Programa DST e aids é referência mundial. Precisamos neste momento ter o maior número de parceiros possíveis nessa luta pela garantia dos direitos conquistados", disse.

O nível de tensão na comunidade LGBT é comparável ao das ONGs ligadas à defesa dos direitos humanos. "Estamos preocupados com os sinais que o novo governo dá. Seja numa agenda mais concreta, como a do Escola sem Partido, que representa um ataque ao pensamento crítico, seja nas declarações mais gerais sobre ativismo e ONGs. Parece haver uma falta de compreensão que a democracia se mede pelo respeito à opinião crítica", afirmou Rafael Custódio, coordenador da Conectas, ONG brasileira voltada para os direitos humanos. Durante o processo eleitoral, a Anistia Internacional e a Human Rights Watch (HRW), duas referências internacionais na área, permaneceram, de certa forma, tímidas, condenando pontualmente as declarações que viam como contrárias a suas posições, como a violência contra jornalistas e eleitores. Logo após a eleição, ambas as organizações elevaram o tom, com declarações duras. De acordo com uma nota da Anistia, a eleição de Bolsonaro "representa um risco enorme para os povos indígenas e quilombolas, comunidades rurais tradicionais, pessoas LGBTI, jovens negros, mulheres, ativistas e organizações da sociedade civil". Já a HRW disse que monitorará de perto o governo: "Continuaremos fazendo nosso trabalho rigoroso e independente de investigação e pressão por mudanças de políticas públicas na defesa dos direitos humanos de todos os cidadãos brasileiros". Essa estratégia de combate, que parece ser a eleita pela Anistia e pela HRW, não é um consenso entre ONGs de outras áreas.

"Não dá para dizer que não estamos preocupados. O que foi dito contra o ativismo social por Bolsonaro é grave e coloca as ONGs num grau de vulnerabilidade como se fossem contra o Estado brasileiro", afirmou Alexandre Pires, coordenador, em Pernambuco, da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), uma rede de organizações sociais que atuam no Nordeste, muitas delas dependentes do governo federal. Apesar da ressalva, Pires quer o diálogo. Uma das entidades que integram a ASA é responsável por um programa que já construiu um milhão de cisternas. Somente este ano, ela recebeu R$ 25 milhões do governo federal para custear os reservatórios para abastecimento de água no semiárido nordestino - mais de 90% do total investido. Ao contrário das ONGs voltadas para as áreas da educação e do combate à corrupção, algumas entidades ligadas à ASA têm uma forte história de ligação com o PT. A ONG responsável pelo programa de cisternas foi criada em 2002, cresceu sob a égide do governo petista e atua num reduto em que é predominante a força do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Se o novo governo não acolher essas políticas públicas como prioritárias, elas estarão ameaçadas. Nossa disposição é de cooperar", disse Pires. Internamente, essas entidades também convivem com resistências ao novo governo, reflexo da radicalização do debate eleitoral. "Assim como na sociedade como um todo, o acirramento eleitoral deixou um sentimento de temor. Mas posso garantir que há uma compreensão coletiva de que nossa participação é fundamental. Afinal, a melhoria da vida das pessoas que vivem na miséria do semiárido depende da manutenção dessas políticas públicas", afirmou Pires.

Em termos de pessimismo quanto ao novo governo, as ONGs ambientalistas são um caso à parte. "O Observatório do Clima ( uma coalizão de organizações que discutem mudanças climáticas ) trabalhará para que o novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, faça o oposto do que prometeu." Assim a ONG se posicionou quando o resultado da eleição foi divulgado, no final de outubro. Ao longo das duas últimas semanas, ÉPOCA tentou falar com o Observatório do Clima, o Greenpeace e o Instituto Socioambiental (ISA), três referências na área ambiental. Mas nenhuma das três organizações aceitou destacar um porta-voz para dar entrevistas. O mote de uma campanha de doação, no entanto, deixa claro o diagnóstico de parte dos ambientalistas. "Mais do que nunca, a proteção ao meio ambiente e aos povos indígenas precisa de seu apoio", diz uma campanha recente do ISA. As principais notas públicas de ONGs ambientalistas até agora se limitaram a criticar a ameaça do fim do Ministério do Meio Ambiente e da desistência brasileira de sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática de 2019 (COP25). A esperança é ter o agronegócio brasileiro como aliado em algumas pautas. Preocupado com o fechamento de mercados no exterior, parte dos agricultores parece também querer frear medidas que façam aumentar o desmatamento ou tirem o país do Acordo de Paris, aprovado por mais de 190 países para reduzir emissões de gases de efeito estufa.

Época, Terceiro Setor, p. 66-72.

https://epoca.globo.com/ativismo-em-sinal-de-alerta-23311694

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