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Atentado ao Estado de Direito

GM, Opinião, p. A3
30 de Jan de 2003

Atentado ao Estado de Direito

É vergonhoso que 115 anos após a promulgação da Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tivesse que lançar, em março de 2003, um Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo. Essa iniciativa, que nenhum presidente da República quisera ou ousara tomar, espelha uma realidade inconcebível numa economia capitalista neste início de século XXI.

Tecemos essas considerações tendo como pano de fundo a chacina de três auditores fiscais e de um motorista do Ministério do Trabalho, na quarta-feira, no município de Unaí (MG). Como amplamente noticiado pela mídia, os servidores públicos foram covarde e friamente emboscados e executados por matadores profissionais quando cumpriam o seu dever de investigar a existência de trabalho escravo na região.

Primeiro há de se lamentar a perda dessas vidas e manifestar solidariedade com as famílias enlutadas. Este é mais um ato de violência que choca a sociedade brasileira, que aspira viver em um Estado de Direito, com pleno respeito às leis, como é a norma nos países democráticos.

Fatos como esse, como todos sabem, repercutem negativamente sobre a imagem do Brasil no exterior. A repercussão internacional desse ato insano foi tal que, em uma conferência de imprensa para jornalistas de todo o mundo, ontem, em Genebra (Suíça), o presidente Lula viu-se obrigado a comentá-lo: "Estamos no século XXI e não é possível que alguém mate alguém para defender trabalho escravo", afirmou.

Já constitui uma nódoa para o País a existência, em pleno século XXI, de trabalhadores mantidos em regime de escravidão ou semi-escravidão, trabalhando a troco de comida e mantidos virtualmente presos em propriedades rurais. E isso, não podemos negar, ocorre em várias regiões do Brasil, como um número preocupante de denúncias e dados oficiais comprovam.

Segundo o Ministério do Trabalho, no ano passado 4.932 trabalhadores em situação similar à de escravidão foram libertados no decorrer de ações de fiscalização no meio rural. Esse número representa aumento de 115% em relação aos 2.300 trabalhadores libertados em 2002.

Desta vez não se trata de um conflito pela posse de terras, como os que ensangüentam o campo brasileiro e deixam a cada ano um rastro de mortes - sobretudo de líderes camponeses, posseiros, trabalhadores sem-terra e outros -, mas de um atentado ao poder constituído e uma afronta ao Estado. Afinal, as vítimas eram servidores de um dos braços do Poder Judiciário, a Justiça do Trabalho.

Além do mais, a chacina não foi cometida num distante e perdido grotão deste imenso País, mas a apenas 160 quilômetros da capital federal, numa área do cerrado mineiro ocupada por moderna atividade agropecuária. O município de Unaí destaca-se, principalmente, como grande produtor de feijão. Os fiscais assassinados faziam inspeções de rotina para identificar situações de trabalho irregular em fazendas da região, que nesta época contratam trabalhadores avulsos para a colheita da safra.

Já se sabe que uma das vítimas vinha sendo ameaçada de morte. Infelizmente, nenhuma medida preventiva foi tomada, talvez porque o próprio destinatário da intimidação tenha subestimado o perigo a que estava exposto.

Ressalve-se que a reação das autoridades governamentais federais e de Minas Gerais a esse bárbaro assassínio foi imediata e decidida. Sua apuração foi considerada prioritária e, para isso, formou-se uma força-tarefa integrada por diferentes organismos policiais - capitaneada pelo Departamento de Polícia Federal - para a condução das investigações que levem à elucidação do crime. É imperativo que se descubra - e se puna severamente - não só quem praticou o ato físico de acionar o gatilho, como também o seu mandante.

Seja ele quem for - fazendeiro ou "gato", como é chamado o aliciador de mão-de-obra rural -, esse tipo de desafio à lei e à ordem constituída espelha o anacronismo das relações de trabalho no campo que ainda prevalece em vários pontos do território nacional. Mesmo em empresas rurais supostamente modernas, localizadas nos estados mais desenvolvidos, proprietários usam todo tipo de subterfúgio para se esquivar do cumprimento da legislação trabalhista.

Menos organizados que os operários urbanos - até porque são obrigados a se deslocar em busca de trabalho -, os trabalhadores rurais vêem-se muitas vezes submetidos a contratos laborais irregulares e a todo tipo de constrangimento e coação.

Mudar esse quadro é um dever da sociedade brasileira à memória dos servidores assassinados em Unaí.

kicker: O bárbaro assassíniode funcionários do Ministério do Trabalhoem Minas Gerais expõe a nódoa da escravidão que ainda existe no País

GM, 30/01-01/02/2004, Opinião, p. A3

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