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Até a próxima morte

Isto É, p. 32-38
23 de Fev de 2005

Até a próxima morte
Após assassinato da freira Dorothy, governo se mexe, mas política agrária sofre críticas

Mino Pedrosa e Ronaldo Brasiliense
Anapu (PA)
Colaborou: Florência Costa

Os seis tiros que ceifaram a vida da freira americana naturalizada brasileira Dorothy Mae Stang, 73 anos, na manhã do sábado 12, em Anapu, no sudoeste do Pará, expuseram a fragilidade da política agrária do governo Lula. O assassinato da missionária é fruto também da impunidade nos crimes em conflitos de terras. A ausência da Justiça já transformou em tradição no País e funciona como combustível para a violência que queima vidas no campo. Sob pressão internacional, o governo foi forçado a promover a maior movimentação de tropas dos últimos anos para evitar uma nova guerra pela posse da terra na Amazônia. Pelo menos dois mil soldados foram deslocados de batalhões de Belém, Manaus e Marabá para a região, a 680 quilômetros da capital paraense. Um grande aparato policial foi montado para caçar em plena selva amazônica quatro suspeitos do assassinato: o mandante, um intermediário e dois pistoleiros.
Apontado como mandante, o "fazendeiro" Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida,
foragido, está sob a proteção do verdadeiro grileiro das terras: Regivaldo Pereira Galvão, o Taradão, um velho conhecido da Polícia Federal. Ele chegou a ser preso no escândalo da Sudam, acusado de desviar mais de R$ 1,2 bilhão de incentivos fiscais para projetos fraudulentos, mas foi libertado e continua com sua carreira de golpes em Altamira, na região da rodovia Transamazônica, onde tem residência fixa. Vitalmiro nada mais é do que um "laranja" a serviço de mais uma fraude comandada por Regivaldo, grilando as terras da União, desta vez de olho no dinheiro fácil dos incentivos fiscais da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA) sucessora da Sudam.
Antigo alvo - A irmã Dorothy estava na linha de tiro dos latifundiários da região há muitos anos. Mas os ânimos dos fazendeiros-madeireiros ficaram mais acirrados desde o fim de 2004, quando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) baixou uma portaria obrigando os donos de terra a se recadastrarem. O problema é que boa parte da área é de terra devoluta (pertencente à União). A medida do Incra fez com que dez mil proprietários tivessem seus títulos de terra suspensos. A onda de violência no Pará provocou várias reuniões no Planalto. Na quinta-feira 17, o presidente Lula reuniu seus principais colaboradores.
O governo anunciou a interdição de 8,2 milhões de hectares de florestas em terras da União junto à BR-163 (Cuiabá-Santarém): equivalente a quase o dobro da área do Estado do Rio de Janeiro. Outra decisão tomada na reunião foi a de instalar um gabinete provisório do governo federal na área. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, antecipou a criação de um parque nacional e de uma estação ecológica na região conflitada; o Incra assegurou que 140 mil hectares de terras do Projeto de Desenvolvimento Sustentável defendido pela missionária Dorothy seriam regularizados a curto prazo; a Polícia Federal, no Tocantins, prendeu 14 grileiros na operação Terra Nostra. O governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), comunicou que em poucos dias a Assembléia Legislativa votará o projeto de reordenamento fundiário, transformando em unidades de conservação 63% do território paraense.
Quando o líder seringueiro Chico Mendes foi assassinado em 1988, em Xapuri (Acre), o governo criou a reserva extrativista que leva seu nome, com 960 mil hectares, e liberou recursos extras para reforma agrária e de combate aos desmatamentos na Amazônia. A história se repete: a cada assassinato a reação do governo vem rápida, com ações espetaculosas para justificar a ineficiência dos sucessivos projetos de reforma agrária. A falta de projeto não inibe a política de extermínio de líderes sindicais e religiosos.
A missionária não contava com proteção policial - que ela recusava. "Ninguém vai gastar uma bala numa velha como eu", acreditava. Para os grileiros, irmã Dorothy era "terrorista". Mas os trabalhadores rurais a chamavam de o "Anjo da Transamazônica". Sua morte, após uma noite mal dormida num barraco coberto de palha de apenas 1,7 metro de altura, alcançou repercussão internacional só comparável à que ocorreu com a morte de Chico Mendes. Na pasta amarela que carregava dentro da bolsa a tiracolo no momento em que foi assassinada numa estrada de terra aberta em meio a floresta, a 47 quilômetros de Anapu, irmã Dorothy deixou para a polícia mais do que indícios para apontar seus executores: dois documentos oficiais, autos de infração, com multas de R$ 3 milhões, expedidos pelo Ibama contra Vitalmiro, apontado pela polícia como o mandante do assassinato, por ter desmatado ilegalmente uma área de dois mil hectares no assentamento Esperança, menina-dos-olhos de irmã Dorothy. Segundo a polícia, Vitalmiro teria acertado com Amair Feijoli da Cunha, o Tato, a contratação dos pistoleiros que mataram a religiosa.
Omissão - Cláudio Fontelles, procurador-geral da República, acusou o governo do Pará de omissão no assassinato de irmã Dorothy por não ter dado proteção policial à religiosa, apesar dos insistentes pedidos encaminhados pelos procuradores. Mas há dezenas de processos contra grileiros de terra adormecidos em gavetas do próprio Ministério Púbico, o que estimula a ação dos invasores de terras públicas. A ministra Marina Silva ponderou que, como missionária católica, irmã Dorothy recusava proteção policial enquanto todos os demais agricultores da região ameaçados de morte também não recebessem proteção. O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, advertiu: "Se o governo se restringir a tratar o conflito como fato policial isolado, ele apenas o realimentará, permitindo que a região se transforme numa versão cabocla da Faixa de Gaza." Para Busato, o governo federal tem responsabilidade no caso por causa das consequências das doações de terras feitas pelo Incra na construção da Transamazônica.
A crise agrária só fez aumentar mais três mortes no Estado no rastro do assassinato de irmã Dorothy: a de Adalberto Xavier Leal, de Daniel Soares da Costa Filho, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Parauapebas (PA), e do agricultor Cláudio Dantas Muniz. Mais de 100 policiais federais, civis e militares promoviam incursões na floresta de Anapu e faziam triagem de veículos e passageiros em várias barreiras montadas na rodovia Transamazônica, caçando Vitalmiro, o intermediário Amair e os pistoleiros José Maria Ferreira, conhecido como Fogoió, e Uilquelano de Souza Pinto, supostos autores dos disparos contra a missionária americana.
Tropas do Exército desembarcaram na quinta-feira 17 em aviões Búfalo da Força Aérea Brasileira no aeroporto de Altamira, a 160 quilômetros de Anapu, para iniciar o patrulhamento da região. Única testemunha do assassinato da freira, o agricultor Cícero Pinto da Cruz presenciou a alguns metros de distância o diálogo travado por irmã Dorothy com seus algozes antes de ser executada. "Em determinado momento, a irmã falou para eles: 'A arma que eu uso é essa aqui'." Exibiu a Bíblia e leu dois versículos para os pistoleiros. Ao primeiro tiro disparado, Cícero se embrenhou na mata, deixando a missionária à mercê dos assassinos de aluguel.
No enterro de irmã Dorothy, duas mil pessoas, a maioria trabalhadores rurais, pediam justiça e o fim da impunidade. Afinal, sem punição não há como
evitar outras mortes. No Brasil, apenas 7,5% dos casos de assassinatos por conflitos de terras são levados a julgamento. Entre 1985 e 2003, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT) - entidade à qual Irmã Dorothy era ligada - aconteceram 1.003 ações de homicídios no campo que resultaram em 1.349 assassinatos. Desses 1.003 casos, somente 75 pararam nos tribunais. Foram levadas a julgamento 108 pessoas acusadas de autoras das mortes: 64 foram condenadas e 44, absolvidas. Entre os suspeitos de serem mandantes dos crimes, somente 15 foram condenados e seis, absolvidos.
Violência campeã - O Pará é justamente o Estado campeão em violência e em impunidade: nesse mesmo período houve 327 casos de violência que tiraram a vida de 521 pessoas no campo. Apenas dez casos analisados pela Justiça: cinco mandantes e oito executores dos crimes foram condenados e dez pistoleiros foram absolvidos. Há regiões no Pará em que a impunidade chega a inacreditáveis 100%, segundo o advogado da CPT João Batista Gonçalves Afonso. Essa terra-de-ninguém situa-se no sul e sudeste do Estado. Apenas duas cidades da região - Rio Maria e Eldorado dos Carajás - não apresentam essa taxa de impunidade, de acordo com o levantamento do advogado, publicado no relatório da ONG Rede Social de Justiça e Direitos Humanos de 2003.
Um dos exemplos mais gritantes de impunidade foi o julgamento dos 146 policiais militares que participaram do massacre dos 19 sem-terra em Eldorado dos Carajás (PA), em abril de 1996. Apenas dois foram condenados. No caso de Chico Mendes, o fazendeiro Darli Alves da Silva e seu filho Darci Alves Pereira foram condenados a 19 anos de prisão, mas já receberam liberdade condicional. O que se espera é que a impunidade não bata de novo à porta, abrindo caminho para as próximas mortes.
Marcados para morrer são 161

Frei Henry Burin dês Roziers, missionário dominicano, completou 75 anos na sexta-feira 18, sem comemorações. Francês, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Xinguara, no sul do Pará, o religioso é o mais conhecido integrante da lista de cabras marcados para morrer do
País. Na linha de frente contra a grilagem de terra e nas denúncias contra o trabalho escravo, o frei também não tem proteção policial, embora já tenha perdido a conta das vezes que recebeu ameaças de morte. Entre os grupos de defesa dos direitos humanos há unanimidade: o assassinato de frei Henry teria repercussão internacional superior à causada pela morte de Chico Mendes.
"O maior problema aqui no Pará continua sendo a impunidade. Todos os pistoleiros condenados por assassinatos de trabalhadores aqui na região fugiram, alguns pela porta da frente da prisão", afirma frei Henry, há 27 anos atuando na área do Bico do Papagaio, que engloba o sul do Pará, o norte do Tocantins e o sudoeste do Maranhão. "Ninguém acredita mais na Justiça, que só protege os poderosos", acusa.
Na quinta-feira 17, a CPT divulgou uma lista macabra contabilizando ameaças de morte contra 161 pessoas somente em 2004, devido aos conflitos de terra. O número, ainda preliminar, foi anunciado pelo presidente da CPT, dom Tomás Balduino. "Se mataram uma ativista americana famosa, imagina o que farão conosco, pobres e desconhecidos brasileiros no meio de uma floresta devastada", disse Maria Joel Dias da Costa, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará. Maria Joel é a única jurada de morte do Pará que tem alguma proteção: um PM voluntário, que a acompanha em meio período. O marido de Maria Joel e um diretor do sindicato já apareceram nas listas e foram assassinados. Nenhum mandante foi preso e vários processos desapareceram.

Bagdá Tupiniquim
Madi Rodrigues

Durante nove meses, três mil famílias de sem-teto cultivaram o sonho de que a área do Parque Oeste Industrial, de quase um milhão de metros quadrados na área urbana de Goiânia, avaliada em R$ 38 milhões, seria deles. O local foi batizado pelos moradores de "Sonho Real". Mas o pesadelo não tardou. Na madrugada do dia 16, 2.500 policiais militares cercaram a área e surpreenderam os invasores ao entrar com uma retroescavadeira pelos fundos do parque. A Operação Triunfo, batizada pela PM, transformou a região numa espécie de Bagdá. Tiros, bombas, cavalaria e cassetetes de um lado. Barricadas, fogo e força do outro. A Triunfo massacrou o Sonho Real em menos de três horas e deixou dezenas de feridos e dois mortos: os moradores Wagner da Silva Moreira, 20 anos, e Pedro Nascimento, 22, atingidos por disparos de arma de fogo.
A guerra na capital de Goiás, transmitida ao vivo pela tevê, não foi diferente do que é mostrado quando rebeldes iraquianos enfrentam tropas americanas. O clarão das barricadas de fogo, os gritos e o barulho dos tiros rompiam a escuridão da madrugada, iluminando a tela da tevê. Às 8h, com a área já cercada, os policiais lançaram bombas de gás lacrimogêneo para intimidar os moradores. Revoltados, eles reagiram com fogo em pneus, pedras e pedaços de paus. Mulheres e crianças conseguiram deixar o terreno.
O tenente-coronel Carlos Antônio Elias, assessor de Comunicação Social da PM, comemorou o triunfo: "A operação foi um sucesso. A PM cumpriu seu papel. Desordem, baderna e poder paralelo não podem ser permitidos." Mas, na quinta-feira 17, a Polícia Civil divulgou comunicado admitindo que a operação havia sido um "erro de estratégia".
Segundo o secretário da Segurança de Goiás, Jônathas Silva, 20 comandantes apontavam armas de fogo, mas os soldados estavam munidos com balas de borracha. Segundo a PM, bombas caseiras, facas, facões e pedaços de pau com pregos na ponta foram apreendidos, além de armas de fogo, entre elas espingardas. Parte das famílias foi removida para ginásios de esporte apenas com a roupa do corpo. Foram detidos 800 invasores. O Ministério Público apura denúncia de que haveria mais corpos na área invadida. O clima de tensão continuou na quinta-feira 17, durante enterro das duas vítimas, ao qual compareceram 450 pessoas. Isso porque um policial à paisana deu tiros para cima. Segundo o delegado da Polícia Civil Carlos Teixeira, o agente policial tentava cumprir mandado de prisão contra um dos líderes da invasão, Paulo Sérgio Alves.
Muitos crimes, nenhum castigo
A crônica das mortes anunciadas em conflitos de terra no Brasil é longa. Dela consta outra freira, além da americana Dorothy Stang: a brasileira Adelaide Molinari. Seu assassinato, também no Pará, completará 20 anos no dia 14 de abril. Seguindo a tradição de impunidade no País, o assassino não pagou pelo crime. A irmã Adelaide despedia-se de Arnaldo Delcídio Ferreira, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Eldorado dos Carajás, na rodoviária da cidade. A mesma que ficou internacionalmente conhecida em 1996 com o massacre de 19 sem-terra.
Irmã Adelaide não sabia, mas naquele dia ela também se despediria da vida. Um pistoleiro acertou os dois com um tiro, mas apenas a religiosa morreu, atingida no pescoço. Delcídio conseguiu o feito de viver mais sete anos. Mas ele era mais um cabra marcado para morrer: em 1992 foi executado. O pistoleiro José de Ribamar Lopes, bêbado e chorando, havia confessado para algumas pessoas ter matado uma freira no dia seguinte ao crime. As testemunhas confirmaram a confissão na polícia e no tribunal. O homem chegou a ser preso, mas, seguindo outra tradição da crônica da violência no campo, ele escapou da cadeia e desapareceu.
Anos depois, o pistoleiro foi encontrado no Rio de Janeiro e a Polícia Federal o enviou ao Pará. O julgamento aconteceu em 2004, em Curionópolis (PA), 19 longos anos após a morte de irmã Adelaide. O pistoleiro negou a autoria do crime e foi absolvido, sob protesto de 1.500 pessoas que acompanhavam o julgamento. Advogado de acusação, Aton Fon Filho, da ONG Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, lembra que o julgamento foi marcado por irregularidades. "Três jurados falaram pelo celular durante o julgamento. Todas as testemunhas reconheceram o acusado, mas ele foi absolvido. Nós recorremos", contou Aton. A crônica deste assassinato ainda não terminou, mas até agora o roteiro da história segue a tradição da impunidade. O acusado pela execução da freira está livre e o fazendeiro Aloísio Vieira, acusado de ser o mandante, não vai precisar prestar contas à Justiça. Já morreu. Vinte anos depois, ninguém até agora pagou pela morte da freira. Como manda a tradição.

Isto É, 23/02/2005, p. 32-38

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