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Até os guaranis são migrantes

www.nominimo.com.br
Autor: Rodrigo Leite
25 de Jan de 2004

Jandira Augusta Kerexu Venício nasceu em Itanhaém, litoral sul de São Paulo. Antonio Carlos Karaí Mirin de Lima é de Parati, mas foi registrado no Rio. Alízio Tupã Mirin e Marcelo Karaí Mirin vieram do Paraná. Mais distante é a origem de Timóteo Verá, o norte da Argentina. Todos fazem parte da comunidade de 1.200 índios guaranis que vivem em quatro aldeias da cidade de São Paulo. Na terra dos migrantes - 30 por cento dos 10 milhões de paulistanos nasceram fora do Estado, segundo o IBGE - nem os herdeiros ancestrais da terra escapam à regra.

A "capital" dos guaranis é a aldeia da Barragem, 55 quilômetros ao sul da praça da Sé, com 700 habitantes, dos quais 65 por cento são crianças - estas sim, paulistanas da gema. Tradicional parada de índios nas suas viagens para o litoral, o lugar começou a se tornar um assentamento definitivo há cerca de 45 anos, e há 20 vive um vertiginoso crescimento.

Tradicionalmente, os guaranis não permanecem tanto tempo numa mesma localidade. O habitual é que se desloquem em grupos dentro do seu imenso território, que vai da Argentina ao Espírito Santo, em busca de caça, de espaço para o cultivo e da yvyju miri, a terra sem males que dizem existir além do oceano Atlântico.

"A Barragem é uma exceção. Não conheço outra aldeia que tenha 700 habitantes", diz a antropóloga Maria Inês Ladeira, que há 28 anos convive com os guaranis da capital e do litoral de São Paulo. "Ela cresceu tanto que, nos últimos 10 a 15 anos, passou a ter gente suficiente para permitir que não haja casamentos co-sanguíneos, e com isso os jovens não precisam mais buscar um par em outras aldeias. Além disso, instituições como escola e posto de saúde que existem na Barragem influenciam os índios a permanecerem", explica.

Briga com Tupã

Quem ajudou na consolidação da aldeia guarani foi um japonês - tipo de mistura que só pode mesmo ocorrer em São Paulo. Nos idos da década de 1950, o senhor Kugo colonizava aquela região da zona sul, com uma posse um tanto duvidosa sobre a terra. Sessém, como ficou conhecido pelos indígenas, simpatizou com eles e lhes cedeu os terrenos da aldeia da Barragem e da sua vizinha, o Krukutu (hoje com 200 habitantes). Eles se ajudavam mutuamente, e Sessém chegou a viver na aldeia Krukutu, de onde só saiu na década de 80, arrancado por parentes, para morrer em um hospital. Os herdeiros tentaram tomar a terra, mas o governo do Estado decidiu em favor dos índios. Ironicamente, outra ação judicial - elas são freqüentes - envolveu a extinta rádio Tupã, nome do deus deles. Nessa briga entre os guaranis e a Tupi (dona da rádio Tupã), saíram-se melhor novamente os índios.

Por volta do ano 2000, a Barragem atingia os mil habitantes, mas desde então cerca de 220 se mudaram para o sopé do Pico do Jaraguá, a 77 quilômetros ao norte, ainda no município de São Paulo. Esse grupo seguiu José Fernandes, o pajé mais respeitado da metrópole, profundo conhecedor das plantas medicinais. Infelizmente, a aldeia do Jaraguá não tem nenhuma dessas plantas. O terreno tem apenas dois hectares, o tamanho de dois campos de futebol, onde mal cabem as casas e alguns poucos pés de milho e mandioca. O barulho que vem da estrada do Jaraguá é constante.

Alguns metros abaixo da aldeia de José Fernandes vivem outros 60 guaranis, instalados ali desde 1962. Todos nesse grupo têm laços familiares com Jandira Kerexu, de 70 anos, uma das três únicas caciques mulheres no Brasil, segundo contabilidade dela mesma.
Em comparação com as condições do Jaraguá, a Barragem e o Krukutu são quase um paraíso. Juntas, elas têm 52 hectares, uma área pequena para tantos índios, mas onde ainda cabem roças de feijão, mandioca e do avaxí eteí, o milho guarani, mais "robusto" que o normal. Além disso, a população branca está mais distante do que no Jaraguá, e a encosta da serra do Mar fica a apenas uma hora e meia de caminhada. Na terça-feira, 27, os índios vão enfrentar um dia de caminhada até o litoral para se abastecer de peixe fresco. É que três dias depois há uma grande festa programada, uma "revelação de nome", espécie de batizado.

O cacique Timóteo Verá, 33 anos, conta que a situação já esteve melhor. Ele vive na Barragem desde os quatro anos, quando chegou com seu pai (um guarani brasileiro, que serviu no regimento do Catete no tempo de Getúlio Vargas) do norte da Argentina. "Na década de 1980, eu caçava naquele lugar mais adiante, mas agora virou uma vila. Hoje em dia a gente vive numa ilha", afirma.

Escolta para as professoras

A violência é outro problema. Há um ano, um branco passou de carro apontando uma arma para as mulheres. Houve gritaria, e um rapaz guarani saiu de sua casa para saber o que estava acontecendo. Foi baleado. "As professoras brancas têm a escolta de três índios quando vão embora. À noite, a gente sempre escuta tiroteio, mas em geral aqui é mais tranqüilo do que no resto", afirma o cacique Timóteo. O resto, entenda-se, é o bairro de Parelheiros, do qual a Barragem faz parte, um dos distritos mais violentos de São Paulo.

Também é difícil manter algumas características originais. Chuveiros substituem os rios e a represa, que estão poluídos. A erva-mate do chimarrão, abençoada na casa de reza a cada uso, agora é comprada em armazéns. Raros índios, como a velha Cecília, de alegados 115 anos, mantêm a dieta sem sal nem produtos industrializados. O ambiente também condiciona a paisagem, já que muitos índios agora preferem casas de blocos de cimento, mais duráveis. "No mato não há mais sapê para cobrir os telhados. Mas a gente mantém a arquitetura tradicional, com uma porta ou janela voltada para o nascente", diz o cacique Timóteo, que vive em uma casa de chapas de madeira e telha de zinco. Para cobrir a casa de rezas da Barragem, ele mandou vir sapê de Campinas.

Por outro lado, algumas tradições são rigorosamente observadas. Todas as noites há atividades (fechadas a não-índios) na casa de rezas. É a chance de preservar língua e tradições e de contrabalançar a influência da televisão, que está em várias casas. Com exceção do grupo da cacique Jandira - onde vivem índios de outras etnias e até alguns brancos - casamentos miscigenados são impensáveis.

Para manter essa rede de relações culturais, os guaranis paulistanos mantêm intenso contato entre suas várias aldeias, especialmente com as de Itanhaém, Mongaguá e Ubatuba. Para buscar peixe no litoral para a festa do batizado, os guaranis andarão sobre os trilhos da ferrovia para Santos, construída sobre a antiga trilha indígena. Ir para a Zona Norte também exige algum sacrifício: no começo de janeiro, quando decidiu passar um mês com sua tia Jandira, a cacique do Jaraguá, a guarani Nilza, da Barragem, teve de apanhar quatro ônibus e passar por três terminais - quatro horas de trajeto.

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