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Ataque uma cidade à espera do próximo

CB, Brasil, p. 9
06 de Mai de 2009

Ataque uma cidade à espera do próximo

Leonardo Cavalcanti
Enviado especial

No início daquela tarde quente, chuvosa e de maré cheia, Charles Heitor Pires se viu no meio de uma batalha para a qual não estava preparado. Pouco antes de voltar a dar braçadas sobre a prancha e fechar a série do dia, o pernambucano se sentiu cansado. "Era um aviso. Devia ter parado. Mas o mar estava perfeito e voltei." Uma leve correnteza tirou Charles da linha dos surfistas, a menos de 50m da praia.
Foi quando ocorreu o primeiro ataque. Sentiu um puxão, como se um grande alicate dilacerasse os músculos e os ossos da perna direita. Era um tubarão, que o levou para baixo d'água. "Entrei em pânico. Queria sair dali e tentei esmurrar o bicho, mas o murro saiu lento." O bicho, de quase 2 metros, levou as mãos de Charles.
O ataque contra o surfista ocorreu há 10 anos, em 1o de maio de 1999, num trecho da turística Boa Viagem, em frente ao Edifício Acaiaca. Passada uma década, Recife e as praias da Região Metropolitana, como Piedade, continuam a ser um território perigoso para banhistas. Os tubarões estão por perto. A opção de lazer mais democrática dos municípios costeiros tornou-se uma aventura com regras rígidas a serem seguidas. É recomendado se manter afastado do mar quando ele estiver turvo, evitar banho desacompanhado, no início da manhã e no fim da tarde. Mergulhos devem ser rápidos e sem objetos que brilhem, como anéis e correntes.
Com tantas recomendações, o mais seguro por ali é mesmo ficar na areia da praia.
Recife e as cidades vizinhas são o mais triste exemplo de como a degradação ambiental provocada pelo homem pode afetá-lo de forma irreversível. De tão simples, a equação é irritante. A degradação do ecossistema costeiro reduziu os estoques de peixes nos recifes de corais e levou os tubarões até as praias. Do mais cético ao mais otimista, nenhum pesquisador que acompanha os ataques de tubarões consegue prever uma data próxima para que o pernambucano volte a usar o mar com tranquilidade. "É uma pergunta extremamente difícil de responder", diz Fábio Hazin, diretor do Departamento de Pesca e Aquicultura da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Hazin é também presidente do Comitê Estadual de Monitoramento aos Incidentes com Tubarões (Cemit), ligado à Secretaria de Defesa Social.
Para o professor, em qualquer praia do mundo sempre existirá o risco de um ataque acontecer. "No caso de Pernambuco, com as medidas implementadas pelo governo, conseguimos reduzir a incidência, da ordem de quatro ataques por ano, para cerca de um ataque em quatro anos, o que já é muito próximo do normal." Mas apenas em junho do ano passado, fora do "período de ação do projeto" - entre o fim de um convênio, a renovação de outro e a consequente descontinuidade dos recursos -, ocorreram dois ataques. Entre janeiro de 2004 e julho de 2008, foram capturados 37 tubarões de espécies agressivas, com um ataque contabilizado. Em 15 meses desse mesmo período, quando não houve operações de pesca seletiva (ações de caça) por falta de verbas, ocorreram 10 ataques a pessoas.
Debate de lunáticos
Ao todo, de junho de 1992 até agora, ocorreram 52 ataques, com 19 mortes registradas. Os culpados são os tubarões das espécies Carcharhinus leucas, o cabeça-chata, e Galeocerdo cuvier, o tigre. Charles - hoje com 31 anos, é auxiliar de escritório, trabalha com ajuda de próteses, e estudante de direito - acredita que foi um cabeça-chata que o atacou. Logo depois do ataque, pesquisadores chegaram a acreditar que se tratava de um tigre. A diferença entre exemplares adultos das espécies pode chegar a quase dois metros, mas a voracidade é a mesma. Dos oitos ataques em que a espécie foi identificada, sete eram cabeça-chata e um era tigre. Integrantes do Cemit, porém, não descartam o envolvimento de espécies como o Carcharhinus limbatus, o galha-preta, já identificada no litoral recifense e considerada a principal autora de ataques na Flórida (EUA).
Com o impacto gerado pelos ataques na indústria de turismo local - 357 mil pessoas no estado dependem direta ou indiretamente da atividade e 64% dos leitos de hotéis estão dentro da área de risco -, o tema em alguns momentos vira um debate de lunáticos, reunindo personagens como um candidato a vereador autointitulado "O caçador de tubarões" e até os que defendem a apreensão de pranchas de surfe. Como numa novela policialesca, os tubarões viraram criminosos e os surfistas começaram a ser vistos como irresponsáveis, por atiçarem os bichos e deixarem Pernambuco refém dos tubarões. Quando um pescador consegue trazer um tubarão enroscado numa rede, mesmo das espécies lixa ou martelo, há um clima de revanche, como se o peixe pudesse vingar o medo sentido pelos banhistas.
O problema é que os ataques são causados por uma combinação de fatores, todos eles relacionados à degradação ambiental produzida com a chancela ou o descuido do próprio Estado. Informações recolhidas pelos pesquisadores do Cemit mostram que o principal motivo dos ataques está na construção do Porto de Suape, no litoral sul. O empreendimento começou a ser implantado ainda na década de 1970 e afetou diretamente as zonas estuárias, usadas por tubarões. O desequilíbrio e a intensificação do tráfego marítimo teriam levado os tubarões para o estuário do Rio Jaboatão, mais próximo às praias da Região Metropolitana.
"Outros fatores também contribuíram para a deflagração do surto, como a degradação do ecossistema costeiro, o despejo de resíduos poluentes de matadouros e aterros sanitários no rio e o aumento natural de banhistas ao longo dos últimos anos", diz André Afonso, pesquisador do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve, em Portugal, que atualmente desenvolve estudos no Departamento de Pesca da UFRPE. O mar deu o preço do descaso. Os tubarões são os cobradores.

Financiamento de R$ 1 milhão

O custo da manutenção do projeto desenvolvido pelo Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes de Tubarões, o Cemit, chega a R$ 1 milhão por ano. Estão incluídos nos gastos com dois barcos e tripulação, compra de marcas para monitoramento de tubarões e trabalhos de educação ambiental nas praias do Recife e da região metropolitana.
Mesmo com tais investimentos, o engenheiro de pesca Leonardo Veras, dono do Museu do Tubarão em Fernando de Noronha, afirma que a população do Recife está num beco sem saída. "É preciso que o Estado se defina de uma vez por todas. Ou abate os tubarões de forma eficiente, sem desculpas de que se está matando para fazer pesquisa, ou proíbe as pessoas de entrarem na água." Uma vez por semana, Veras dá uma palestra sobre tubarões na sede do Projeto Tamar, em Fernando de Noronha. É uma das mais concorridas e divertidas. Ali, ele, que se intitula um pesquisador "pirata", desmistifica a imagem do peixe como um bicho perigoso, a ponto de mergulhar com várias espécies num dos pontos da ilha, para monitorar o comportamento.
No museu de Veras já funcionou um abatedouro de tubarões. "Parei com a pesca em 1999, não era viável", diz. Daí fundou o museu, onde funciona o restaurante que, entre os petiscos, oferece carne de tubarão. "O tubarão é um peixe impressionante e deve ser preservado, mas se hoje a pesca e comercialização são permitidas, que se pesque, então. O Estado tem que encarar o problema e achar uma alternativa para não deixar a população em perigo."

CB, 06/05/2009, Brasil, p. 9

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