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Ataque à floresta

Revista Veja, p.82-84 (São Paulo-SP)
Autor: JUNIOR, Policarpo
18 de Set de 2002

O mogno, que quase foi extinto, sofre nova ameaça de madeireiros, políticos e até de funcionários do Ibama

O mogno, madeira nobre de tom avermelhado, é um sobrevivente. Natural das Antilhas e da América do Sul, ele esteve perto da extinção nos séculos XVIII e XIX, época em que era muito usado na fabricação de móveis e, dada sua alta durabilidade, até na construção de navios. Depois dessa ameaça, o mogno recuperou-se, tornou a ser farto nas florestas tropicais, mas na década de 60 voltou a ser explorado comercialmente - para a fabricação de móveis, pisos, esquadrias e acabamentos. De lá para cá, transformou-se numa das madeiras mais preciosas e requisitadas em virtude de suas qualidades raras: é bonito, resistente e versátil. E, de novo, está ameaçado de extinção. Hoje, há estoques de mogno no México, na Bolívia, no Peru e em países da América Central, mas a grande reserva se encontra na Amazônia brasileira, especialmente no Pará e no Acre. No Brasil, em razão do risco de extinção, a extração do mogno está proibida por lei desde 1996. A novidade é que a madeira tem sido vítima da ação de piratas ecológicos, incluídos aí entidades respeitadas, políticos e até funcionários do Ibama, a agência responsável pela preservação do meio ambiente.

Com uma reserva de 30 milhões de metros cúbicos de mogno, o que equivale a 135 bilhões de reais, o Brasil tinha 130 projetos de manejo da madeira em andamento. Eram programas, devidamente aprovados pelo Ibama, pelos quais as madeireiras podiam extrair o mogno desde que respeitadas determinadas condições. Dos 130 projetos, 110 foram cancelados, a maioria por irregularidades. Além disso, o envolvimento de funcionários do Ibama com a exploração ilegal da madeira chegou a tal ponto que o ministro do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, autorizou uma investigação em todas as gerências do Ibama que lidam com a questão madeireira. Mais de duas dezenas de funcionários do Ibama estão sob investigação de uma força-tarefa, montada especialmente para tratar do assunto, que inclui agentes da Polícia Federal e procuradores da República. Nas apurações, descobriu-se que um deputado federal e três senadores têm relações com madeireiros clandestinos. "As madeireiras agem com a desenvoltura típica das organizações criminosas", diz o delegado Jorge Pontes, chefe da delegacia de crimes ambientais da Polícia Federal.

Um dos maiores madeireiros de Mato Grosso, Osmar Queiroz, foi pilhado extraindo mogno ilegalmente das terras dos índios cintas-largas, no norte do Estado, para os quais pagava 50 reais por tora - o que permitiu à tribo comprar uma frota de picapes importadas. Ao ver sua serraria lacrada, receber multa de 7 milhões de reais e ter prisão decretada, o madeireiro socorreu-se do deputado Ricarte de Freitas, do PSDB, conforme prova telefonema ouvido pela PF com autorização judicial. No telefonema, em que ambos se tratam amistosamente, com o deputado chamando o madeireiro jocosamente de "presidiário" e se apresentando como "seu deputado", Osmar Queiroz pede auxílio ao parlamentar para livrar-se do cerco. O deputado fica de ajudá-lo, e lembra que já o fez em outra vez. De fato, o deputado e os três senadores do Estado - Antero Paes, Carlos Bezerra e Jonas Pinheiro - já estiveram no Ibama negociando mudança nos valores das multas por extração ilegal. O gerente do Ibama no Estado, Leôncio Pinheiro, é irmão do senador Pinheiro. O antecessor, Nivaldo Bezerra, é primo do senador Bezerra.

"Tudo era feito com o aval de funcionários do Ibama", acusa o procurador da República em Mato Grosso, Pedro Taques. A investigação descobriu que funcionários recebiam mesada dos madeireiros. O ataque ao mogno só existe porque é um negócio milionário. Com a exploração proibida, a madeira tornou-se rara e seu valor explodiu. Hoje, o metro cúbico extraído na floresta chega a custar míseros 3 reais, quantia que madeireiros pagam às tribos indígenas, donas da maior parte das reservas. Da floresta até as indústrias estrangeiras, a madeira sofre uma tremenda valorização. Lá fora, pagam-se até 9 000 reais pelo metro cúbico, ou 300 000% a mais em relação ao valor pago aos índios. Ao proporcionar lucros tão elevados, a madeira se tornou alvo de saqueadores - o que amplia o risco de extinção, mesmo porque o crescimento do mogno é lento. Em quarenta anos, uma árvore de mogno já pode ser explorada comercialmente, mas só atinge o diâmetro ideal, de cerca de 1 metro, em oitenta anos. Além disso, o manejo é bastante complicado. As experiências de plantar o mogno para reflorestar não têm dado certo. A partir dos dois anos, as árvores costumam ser atacadas por pragas.

Recentemente, o Ibama fez um estudo com cinqüenta espécies de madeira brasileira para saber se alguma poderia substituir comercialmente o mogno - um modo de ajudar na preservação. Os testes, porém, mostraram que nenhuma outra madeira reúne, simultaneamente, as mesmas características e vantagens do mogno. Devido a seu alto valor comercial, os negociadores da madeira lidam com gordas somas de dinheiro - e acabam corrompendo funcionários do próprio Ibama. Em Sinop, em Mato Grosso, madeireiros apresentavam projetos de manejo para desenvolver programas agropecuários em regiões de cerrado. Os projetos, quase uma centena, foram aprovados em ritmo aceleradíssimo e, descobriu-se depois, falseavam a descrição da área. Em vez de cerrado, onde o dono deve preservar apenas 20% da vegetação nativa, eram regiões de floresta, com fartura de mogno, onde a preservação deve ser de 80%. A fiscalização visitou as áreas e constatou que toda a madeira ali existente fora extraída - e a maioria das terras nem pertencia a quem delas se dizia dono.

Além de testar novas madeiras e apertar a fiscalização, o Ibama já tentou outras alternativas para preservar o mogno. Uma das iniciativas, concebida pelas entidades ambientais, foi a criação do "selo verde". Trata-se de uma espécie de certificado, concedido por uma entidade, a FSC International, às madeireiras que trabalham dentro da lei e sem causar danos à natureza. No Brasil, duas madeireiras entraram para esse seleto grupo - a Gethal e a Mil Madeiras, ambas multinacionais instaladas na Amazônia. Com o "selo verde", as duas conseguem vender seus produtos com facilidade no exterior. Há dois anos, o Greenpeace, uma das mais conhecidas e atuantes entidades de defesa do meio ambiente, enviou correspondência a 200 empresas inglesas atestando a qualidade e a seriedade da Gethal e da Mil Madeiras - mas também elas estão enroladas. Numa investigação, a Mil Madeiras recebeu seis autuações e multa de 36 milhões de reais. Para o Ibama, a documentação não estava em ordem, havia autorizações de exploração rasuradas, outras vencidas, guias falsas e até toras de madeira sem origem comprovada.

A Gethal também recebeu multa, de 12 milhões de reais, por razões semelhantes. A empresa, segundo os fiscais do Ibama, ainda comprava madeira de terras indígenas, o que não é permitido, e despejava nos rios da Amazônia produtos químicos usados no processo de secagem da madeira. "Essas empresas usavam o selo verde como salvo-conduto para ações criminosas", afirma o procurador da República no Amazonas, Sérgio Lauria. "Elas não têm consciência ambiental alguma." As duas empresas estão recorrendo das punições. A Mil Madeiras explica que estava operando sem a autorização formal porque fizera um "acordo informal" com o gerente do Ibama na Amazônia, José Leland. "A fiscalização foi feita por gente despreparada e, acho, com motivação política. Estamos recorrendo e temos certeza de que essas multas serão anuladas", garante o presidente da Gethal, Ailton Leite. O Greenpeace, por sua vez, afirma que, se as punições forem mantidas depois do recurso, retirará suas recomendações em favor de ambas. Enquanto isso, o mogno, esse sobrevivente, vive sob a ameaça, mais uma vez, de desaparecer do planeta.

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