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A árvore da pátria

FSP, Mais, p. 9
Autor: LOPES, Reinaldo José
15 de Mai de 2005

A árvore da pátria
Projeto faz conta oficial da extração do pau-brasil e desfaz mitos sobre sua importância para a colonização

Reinaldo José Lopes

É assumidamente uma estimativa conservadora, baseada apenas nos relatórios oficiais de uma das atividades extrativistas mais predadoras da história, mas pelo menos é a primeira vez que alguém mergulha na documentação e tira dela um número: quase 470 mil árvores. Certamente indivíduos maduros, com cerca de 15 metros de altura. Do contrário, o precioso corante cor-de-fogo que moveu a colonização brasileira não poderia ser obtido numa quantidade que compensasse o trabalho de botar a planta abaixo.
Essa é a conta oficial da devastação do pau-brasil (Caesalpinia echinata), árvore-símbolo do país, do século 16 ao 19, feita por um grupo de pesquisadores paulistas. Com o apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), ele estão concluindo um esforço de quatro anos que buscou redescobrir a primeira fonte de lucro para os europeus que aportaram aqui, hoje uma espécie ameaçada de extinção. Além de desfazer alguns mitos sobre o passado do pau-brasil -como a idéia de que ele só foi importante economicamente num "boom" relativamente curto do século 16-, eles mapearam a atual distribuição da árvore na natureza e traçaram estratégias para facilitar sua conservação dentro e fora das áreas onde ainda ocorre.
Responsável pelo lado histórico do projeto, o engenheiro agrônomo Yuri Tavares Rocha, do Departamento de Geografia da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), é o primeiro a reconhecer que há lacunas nos dados. "Há pouca informação sobre o século 16, e eu tive que me restringir a Portugal e ao Brasil. Seria interessante ver o que há nos registros holandeses e franceses, e mesmo no Vaticano, já que os jesuítas também estiverem envolvidos na exploração do pau-brasil", conta. "De qualquer maneira, é uma coisa que nunca ninguém havia feito."
Além-mar
Além da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e dos registros em armazéns como o que abrigava as toras em Recife, Rocha se baseou no Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, espalhado entre as cidades de Évora, Coimbra e Lisboa. Lá, guardadas em caixas correspondentes às antigas capitanias hereditárias, estão informações sobre o fluxo de toras de pau-brasil da colônia para a metrópole. A estimativa do pesquisador se baseia no número de toras e em seu peso em quintais (antiga unidade de peso equivalente a quatro arrobas, ou 58,758 kg, para ser exato) registrados nos arquivos.
"É possível dizer que o número corresponde a árvores de 15 m em média porque você precisava de um tamanho considerável para obter o cerne, vermelho e mais duro, que daria origem ao corante", explica Rocha. O alburno, camada externa e mais clara do tronco, era arrancado ainda no Brasil. Você vê esse procedimento em algumas iluminuras da época." Os arquivos luso-brasileiros também sugerem que a exploração esteve longe de arrefecer depois que a cana assumiu o posto de atividade econômica mais importante.
"O raciocínio de que os ciclos se sucediam é meio simplista. É claro que a importância relativa do pau-brasil diminuiu com a cana e, mais tarde, com o ouro", diz o pesquisador. "Mas em quantidade absoluta os meados do século 18 foram o período de exploração mais intensa." Segundo ele, é possível que a falta de dados sobre o século 16 não encubra uma era de ouro da exploração, uma vez que muitas regiões da costa ainda estavam sendo mapeadas e visitadas pela primeira vez.
A situação só mudaria de vez no fim do século 19, com o desenvolvimento de corantes artificiais, como as anilinas. O preço muito inferior acabou de vez com a transformação de árvores em tinta vermelha, mas outra forma de exploração persiste: o uso da madeira para fabricação de arcos de violino e outros instrumentos musicais. "Infelizmente, ainda não foi achada uma madeira que tenha tanta qualidade sonora quanto a do pau-brasil", diz Rocha.
Extinções locais
Desnecessário dizer que esses séculos de desmatamento seletivo deixaram cicatrizes na população das árvores de hoje. "Com certeza o número de plantas hoje é muito menor. Como toda espécie arbórea da mata atlântica, o pau-brasil sofreu com o desmatamento [estima-se que só 7% da vegetação original da mata atlântica subsista], e ainda mais por ser de interesse econômica", afirma a bióloga Rita de Cássia Leone Figueiredo Ribeiro, coordenadora do projeto e pesquisadora do Instituto de Botânica de São Paulo.
A distribuição original da espécie acompanhava o litoral do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Norte, em áreas conhecidas como "mata seca" ou "mata de tabuleiro". "São áreas que incluem algumas árvores cujas folhas caem na estação seca, como o ipê, embora com o próprio pau-brasil isso não aconteça", explica Rocha. "No Rio Grande do Norte, nas matas que existem na região das dunas, o pau-brasil cresce na faixa que está voltada para o continente", conta o pesquisador, para quem ainda não é possível estimar com certeza qual a era a quantidade de indivíduos da espécie na floresta pré-Descobrimento. O certo é que áreas cujos nomes sugerem a presença antiga da planta, como Coruripe (AL) -citada nos registros de exploração- e a praia dos Franceses, perto de Maceió (que certamente atraiu os competidores comerciais dos lusitanos), já não têm mais a árvore.
Pior, o mesmo vale para os Estados de Sergipe e Espírito Santo, onde o levantamento feito por Rocha não foi capaz de localizar populações naturais. A situação é mais animadora em Pernambuco e na Paraíba, embora a exploração ilegal continue acontecendo, diz o pesquisador.
"Por isso, numa reunião feita pelo Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] da qual eu participei, ficou decidido que ainda não há elementos para tirar a espécie da lista de espécies ameaçadas. Não há como controlar o extrativismo. Precisamos continuar com as iniciativas para conservação, plantio e divulgação", afirma Rita de Cássia Ribeiro.
Nesse ponto, o trabalho do projeto contribuiu com estudos sobre a biologia básica da árvore (como a forma de seus grãos de pólen, por exemplo), sobre a variabilidade genética de bosques plantados da espécie em Mogi-Guaçu, no Estado de São Paulo (a boa notícia: ela continua alta e saudável) e sobre a conservação de suas sementes.
Para Rocha, é preciso enfatizar as palavras de ordem do movimento ambientalista: uso sustentável. "Documentos do século 17 já falam de maneiras de cortar a árvore para estimular a rebrota", conta. Os portugueses não seguiram seu próprio conselho, mas seria vergonhoso que o século 21 não tentasse fazê-lo.

FSP, 15/05/2005, Mais, p. 9

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