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Artistas buscam inspiração no universo indígena e criam nova utopia política

FSP, Ilustrada, p. C1
04 de Jan de 2019

Artistas buscam inspiração no universo indígena e criam nova utopia política

Maurício Meireles
SÃO PAULO

Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante, canta Caetano Veloso, em uma de suas músicas mais famosas. Aquilo que nesse momento se revelará aos povos, conclui, surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio.

A canção, entoada com a retórica grandiloquente de uma profecia, poderia ser muito bem o hino de um novo momento das artes brasileiras -que agora vão buscar no imaginário indígena inspiração conceitual ou visual.

É um movimento que une teatro, cinema, artes plásticas, design, livros e se fortaleceu sob os governos petistas. Tem como marcos, por exemplo, a carta de 2012 em que os guarani-kaiowás pediam sua morte coletiva, em Mato Grosso do Sul, e o movimento dos mundurukus contra a hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.

A tendência deve ganhar novo fôlego com a decisão do governo Bolsonaro de retirar da Fundação Nacional do Índio a prerrogativa de demarcar terras indígenas, agora responsabilidade do Ministério da Agricultura. Na prática, a função passa para as mãos dos ruralistas.

Como não poderia deixar de ser, em um movimento que se alinha aos interesses dos índios e se opõe às vontades do alto comando instalado em Brasília, as obras têm um forte teor político.

O poeta e artista visual André Vallias, por exemplo, criou há sete anos o poema-instalação "Totem" -nele, escreveu e recitou os nomes de 222 povos indígenas ainda existentes no Brasil. "Sou guarani-kaiowá", diz o primeiro verso.

No universo dos livros, há uma série de lançamentos. A publicação em 2015 de "A Queda do Céu", do líder ianomâmi Davi Kopenawa, foi um marco -mas de lá para cá mais títulos surgiram.

A editora Azougue, do Rio de Janeiro, tem publicado a coleção Tembetá em vários volumes, cada um dedicado a um pensador indígena. A Todavia, por sua vez, lançou no ano passado "Paletó e Eu", em que a antropóloga Aparecida Villaça relembra a relação paternal que desenvolveu com um índio wari, de Rondônia.

"É como um fio vermelho na cultura brasileira. Às vezes se levanta, às vezes fica subterrâneo. Nos últimos dez anos, há um retorno. Acho que Belo Monte e os guarani-kaiowá mostraram que essa era uma ferida aberta", diz Sérgio Cohn, editor da Azougue.

O cinema puxa esse mesmo fio. No ano passado, o filme "Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos", de Renée Nader Messora e João Salaviza, ganhou o prêmio do júri na mostra Um Certo Olhar, do Festival de Cannes. O longa luso-brasileiro conta a história de um jovem do povo krahô que precisa organizar um rito funerário para o pai morto.

No ano passado, causou impacto o documentário "Ex-Pajé", de Luiz Bolognesi, sobre um líder espiritual que deixa seu posto diante do avanço evangélico em sua tribo.

As artes plásticas acompanham de perto. São conhecidos os autorretratos de Adriana Varejão, nos quais a artista surge com pinturas inspiradas nos padrões indígenas. Também o trabalho de Ernesto Neto, que há dois anos levou um grupo de índios huni kuin, do Acre, para uma performance na Bienal de Veneza.

Os índios vão e voltam nas artes brasileiras ao longo da história. Há, por exemplo, o romantismo do século 19, que alimentava o mito de um bom selvagem. Ou o modernismo de 1922, que vai buscar a imagem da antropofagia para definir a cultura nacional.

Uma das novidades de agora, no campo do pensamento, é o reconhecimento do trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, hoje o intelectual brasileiro de maior relevância internacional.

Em 2002, sua obra passou a ser editada pela extinta Cosac Naify. Seria exagero usar a palavra popularidade para se referir a uma obra de antropologia, mas o conceito de "perspectivismo ameríndio", que fez a fama de Viveiros de Castro, passa a circular mais e mais -mesmo que, como ocorre a toda teoria influente, muitos a repitam de orelhada.

A ideia é que o pensamento dos povos indígenas tem como cruciais as relações entre presa e predador. Você, que lê este texto, é a um só tempo caça da onça e caçador do peixe. O peixe, por sua vez, se vê como gente e vê a nós, humanos, como onça.

O pensamento indígena seria, assim, o inverso da tradição ocidental -em vez de termos a biologia como base comum, o que é partilhado pelos seres é a cultura. Nessa cadeia, ninguém está em posição superior para dizer quem é onça e quem é gente.

As obras de arte que buscam refletir esse universo alimentam, com ou sem intenção, uma nova utopia indígena -os povos nativos seriam o repositório de ideais de um outro mundo possível.

No Teatro Oficina, Zé Celso -que já trazia, é claro, a influência do modernismo de 1922- diz que se aproximou mais desse pensamento. Ele aponta, por exemplo, o livro de Davi Kopenawa como uma de suas inspirações.

"É um livro tão importante quanto 'Os Sertões', de Euclydes da Cunha, quanto Freud. Porque ele nos remete ao perspectivismo, à maneira de ver dos indígenas", diz o diretor.

Zé Celso já disse também não se identificar mais com "ismos" políticos, e sim com o xamanismo -e ver o teatro como um ritual místico.

Na visão dos artistas, o universo indígena passou a evocar uma vida alternativa. Nela, haveria mais harmonia com a natureza e entre as pessoas -é daí que alguns vão depreender um futuro possível para uma sociedade que já abandonou todas as utopias políticas.

"Utopia para nós. Para eles, é filosofia, existe na prática", diz Aparecida Villaça, autora de "Paletó e Eu" e ex-orientanda de Viveiros de Castro no Museu Nacional.

"É uma ideia de um mundo sem chefe, com a convivência de perspectivas, com uma política descentralizada e respeito pelos modos de ser. Uma utopia concreta, que agora está ameaçada."

Colaborou Maria Luísa Barsanelli

FSP, 04/01/2018, Ilustrada, p. C1

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/01/artistas-buscam-inspira…

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