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Artefatos milenares são destruídos por tratores de mineradoras em Manaus

Amazonia Real http://amazoniareal.com.br/
14 de Jun de 2019

Artefatos de cerâmicas de povos amazônicos pré-coloniais foram encontrados destruídos em terrenos explorados por mineradoras de areia, no Ramal São Francisco, da estrada AM-010, que liga as cidades de Manaus e Itacoatiara, no Amazonas. O caseiro Adriano Gomes da Costa, 42 anos, achou pedaços de panelas e machadinhas em maio de 2018. Desde então, ele já recolheu centenas de fragmentos e os guardou em um local sigiloso. O terreno sofre degradação ambiental de empresas que retiram areia usando tratores. As comunidades ribeirinhas querem que o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) reconheça o lugar como um sítio arquelógico.

O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) confirmou à reportagem que as empresas Vista Serviços e Comércio de Materiais de Construção Ltda e Terra e Mar Mineração exploraram areia nos terrenos onde os moradores encontraram os artefatos. A primeira empresa, segundo o órgão, está com a atividade paralisada para cumprir uma condicionante da licença de operação. A segunda está com a licença suspensa.

Em várias regiões da Amazônia não é raro encontrar sítios arqueológicos. Eles revelam a história da ocupação milenar dos povos antes e após a colonização.

A agência Amazônia Real visitou os terrenos do Ramal São Francisco, da estrada AM-010, no qual os moradores encontram os artefatos, e comunicou a ocorrência do achado ao arqueólogo Carlos Augusto Silva, do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Ele analisou as fotografias das peças feitas pelo fotógrafo Bruno Kelly. Para Silva, os artefatos têm valor histórico e arqueológico, podendo ter quase 2 mil anos. "É uma cerâmica muito clássica da Amazônia Central, principalmente de Manaus", disse o arqueólogo.

Um grupo de moradores da comunidade São Sebastião, localizada no Ramal São Francisco, no KM-42, solicitou, no mês passado, o apoio do Iphan. Os moradores querem que o órgão federal intervenha e tome medidas de proteção e salvaguarda das peças.

O caseiro Adriano Gomes da Costa contou à reportagem como encontrou as peças milenares. "Eu estava andando pela área quando vi uma tronqueira (cerca). Minha mulher viu e me chamou e disse: 'Adriano, achei um negócio interessante!'. Fui e vi uma coisa grande, diferente. Limpei e vi que tinhas ranhuras. Levei para casa. Voltei lá com um balde, luva e pincel. Fui mexendo. O material [fragmentos] ia descendo do barranco. No outro dia, o material arreou [caiu] todinho. Voltei lá mais umas 30 vezes e arrumei as peças em casa e depois guardei em outro local. Infelizmente, uma das peças que estava inteira, se quebrou quando resgatei", disse ele.

A dedicação de Adriano Gomes da Costa não se limitou a recolher as peças. Ele consultou livros antigos que possuía e constatou a relevância do achado. Decidiu, então, registrar os dados sobre a descoberta em um caderno e em fotografias tiradas pelo celular que, para sua infelicidade, foram perdidos.

"Quando me mudei, deixei na outra casa e deram fim no meu caderno. Não sei o que fizeram. Perdi todo o registro. O outro estava no cartão de memória do celular, que foi furtado quando meu filho foi assaltado. Eu registrei o local, onde as peças caíam, a cor da terra, a faixa de área que era preta, onde estava", contou ele.

Adriano disse que ficou impressionado com a resistência dos fragmentos cerâmicos, mas também estava muito preocupado com sua preservação.

"Esse material vai ser destruído e ninguém vai conhecer a história. Ninguém vai conhecer que existiram [pessoas] aqui, que moraram aqui muito antes da gente? Não é importante para nós brasileiros ter isso? Por que não voltar o interesse para nossos antigos, os povos antigos aqui do Amazonas? Isso é valorizar a história. Do jeito que está indo, [tudo] vai embora", afirmou.

Morador de um sítio à margem do Ramal São Francisco, o agricultor Ivan de Oliveira, 56, disse que apoia a iniciativa de Adriano, e pede que os órgãos ambientais e do patrimônio histórico apresentem projetos de preservação e de recuperação das áreas degradadas.

Ele ressalta que a presença dos fragmentos sempre foi mencionada entre os moradores da comunidade, mas não havia comprovação, até pouco tempo atrás. O que se ouvia, segundo Ivan, eram apenas especulações.

"Havia apenas uma conversa de que foram 'descobertos alguns objetos indígenas' dentro do areal. Mas não se falou mais no assunto. Passaram-se alguns meses, até que encontrei o Adriano nessa movimentação dele. Isso aconteceu devido à nossa luta pelas melhorias nas condições do ramal, quando já estava sem acesso e nos juntamos para tomar providências. Foi quando o Adriano me disse: 'Vou te mostrar umas coisas que tenho guardado'. Então, ele me apresentou esse material e lembrei dos comentários do ano passado sobre os objetos. Decidimos procuramos o Iphan", conta Ivan de Oliveira.

Segundo o agricultor, o grupo de moradores passou se mobilizar duplamente, com a intenção de preservar o sítio arqueológico, para evitar o que ainda resta de artefatos seja extraviado, e impedir o avanço da degradação ambiental da vegetação e dos cursos d´água do Ramal São Francisco.

Fases Paredão e Guarita

O arqueólogo Carlos Augusto Silva disse que é fundamental que o Iphan e os órgãos ambientais tomem providências para a preservação da área.

"Essas peças, pelo que avaliei [nas fotos], são de duas fases: a fase Paredão, entre o século 7 e o 11; e a fase Guarita, do século 9 ao século 16. São peças de épocas diferentes. Muitos deles [objetos] têm quase 2 mil anos. É uma cerâmica muito clássica da Amazônia Central, principalmente de Manaus", disse Silva. Segundo o arqueólogo, a matéria-prima é argila processada, cujos diferenciais entre as fases são os estilos. Para Silva, os fragmentos podem ser de vasilhas, machadinhas ou urnas funerárias.

A existência desses fragmentos em uma região tão distante da margem dos rios [Amazonas e Negro] também aponta a importância da preservação para, futuramente, se estudar o sítio, segundo o arqueólogo.

"É importante para traçar a história da ocupação pré-colonial. Como este povo vivia tão distante do rio? Como ele se alimentava? Uma das respostas pode ser encontrada na floresta. A floresta era o supermercado deles. Também cultivavam, pois conseguiram introduzir palmeiras que serviram de dieta alimentar deles. Por isso que tem a terra-preta", afirma Carlos Augusto Silva.

Para o arqueólogo, os bancos de areia nestas áreas se formaram há cerca de 20 mil anos, mas a quantidade deste minério não era tão grande naquela fase.

"Quando eles viveram ali, talvez não havia toda essa quantidade [de areia]. Eles foram evoluindo, tornaram-se complexos e se mudaram, deixando as peças. Mas ficaram essas evidências sobre sua presença. Esses fragmentos são provas materiais da presença humana e tem uma grande importância histórica, que pode ser reescrita através dos vestígios. Por isso é importante preservar", afirma ele.

O que diz o Iphan?

A assessoria de imprensa do Iphan confirmou que a superintendência do órgão no Amazonas foi procurada, no mês passado, pelos moradores, para tratar a respeito dos fragmentos arqueológicos em maio, mas "a carta não deixava clara a descrição do local".

O órgão disse que foi novamente procurado há duas semanas por um morador, que deu informações mais precisas sobre o local. Segundo a assessoria do Iphan, o órgão "irá realizar uma fiscalização na área e tomar as providências cabíveis sobre o caso". O Iphan disse à reportagem que iria fazer a visita ao longo desta semana.

Igarapés poluídos e degradados
Os terrenos onde o provável sítio arqueológico do Ramal São Farancisco estão degradados pela extração de areia. A reportagem visitou igarapés, que estão assoreados e poluídos devido ao barro despejado pelo maquinário da extração do minério.

Os moradores ouvidos pela reportagem dizem que as águas dos igarapés são impróprias para o consumo e, até mesmo, para tomar banho. Há registros, segundo eles, de mortes de peixes. Eles dizem que a devastação é visível ao longo de todo o ramal, que agora está cheio de lama e barro, devido ao transporte de areia em caminhões pesados.

Além da degradação do manancial e da floresta da região, o vai e vem de caminhões e tratores no ramal prejudica as condições de trafegabilidade para os moradores. Eles dizem que, em 2016, fizeram um protesto e fecharam o ramal, na tentativa de pressionar o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão do governo do Amazonas, a cobrar medidas de recuperação das áreas degradas e das condições do ramal. Outro protesto foi realizado em 2018.

Os moradores afirmam que nos últimos meses retomaram a mobilização, cobrando fiscalizações e providências mais efetivas e permanentes do Ipaam. Eles dizem que pretendem, também, recorrer ao apoio do Ibama, do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública do Estado.

No final de maio de 2019, quando a reportagem esteve no local, caminhões da empresa Vista faziam obras no ramal. A via não tem asfalto. O barro é jogado para a vegetação que fica à margem, segundo os moradores.

"As laterais do ramal estão cheia de barro. A chuva vem e carrega [a terá] para o igarapé. Nosso igarapé está soterrado; as nascentes, assoreando. A empresa puxa areia das cinco da manhã até às oito da noite. Quando terminam, deixam áreas imensas devastadas. O ramal fica nessas condições. Os alunos não têm mais acesso à escola, as viaturas de polícia não entram mais aqui para dar segurança, o carro de ambulância não vem mais", diz Ivan de Oliveira.

Segundo Ivan de Oliveira, há informações de que na área dos areais existam árvores gigantes e centenárias, cuja derrubada é proibida, mas não se sabe se elas ainda permanecem em pé.

O que diz o Ipaam?
Procurado pela reportagem, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) disse que somente a empresa Vista Serviços e Comércio de Materiais de Construção Ltda tem licença do órgão para operar na área, mas ela está com as atividades paralisadas, pelo não cumprimento de condicionante da Licença de Operação (LO), referente à manutenção dos ramais de acesso à área.

Outra empresa atuava no local, a Terra e Mar Mineração, mas ela teve a licença vencida e esta não foi renovada, segundo o Ipaam. Contudo, a empresa assinou um Termo de Ajustamento de Conduta Ambiental (TACA), no dia 25 de janeiro deste ano, e teve uma multa reduzida em 90%. O Ipaam não informou o valor da multa nem o motivo. "O processo da empresa está em análise jurídica para definição do termos a serem definidos para elaboração de aditivo", afirmou o Ipaam.

A reportagem não conseguiu falar com os proprietários da Vista Serviços e Comércio de Materiais de Construção Ltda.

A Amazônia Real enviou email para a empresa Terra e Mar, fornecido pelo telefone pelo seu proprietário, João do Vale, perguntando a respeito da licença vencida, sobre o TACA e se a empresa pretende voltar a extrair areia no local. Até o momento, a empresa não respondeu. Por mensagem de texto no WhatsApp, do Vale afirmou que a empresa não atua mais na extração de areia no Ramal São Francisco, há mais de um ano, e que resolveu não renovar a atividade. Ele disse também que um engenheiro da empresa está realizando atividades de recuperação da área.

Comunidade é assentamento do IncraA comunidade São Sebastião existe há mais de 30 anos. Hoje tem cerca de 120 famílias. Alguns de seus primeiros moradores foram famílias assentadas pelo Incra. Um desses moradores é Sonia Maria de Souza, 69, que migrou, com o marido, do Rio Grande do Norte para o Amazonas.

"Nossa intenção era procurar terra e plantar. Já existiam pessoas aqui, mas daquelas primeiras famílias, que eram cerca de 80, hoje há apenas quatro daquela época. O Incra titulou as terras, mas não deu condições para trabalhar e o pessoal começou a vender. Nós continuamos, enfrentando malária, leishmaniose, mas não saímos. Não havia extração de areia. Isso começou há 12 anos, onde era tudo área de campina. Hoje, a área está sendo devastada", diz Sônia, uma das lideranças que lutam contra a degradação da área onde fica a comunidade São Sebastião.

"Nós já fechamos esse ramal três vezes por causa da situação. Em uma das vezes, os proprietários vieram e disseram que estávamos tolhendo o trabalho deles. Eu disse: 'quem está tolhendo são vocês'. Não tem fiscalização. Continua do mesmo jeito. Já denunciamos para o Ipaam. Eles vêm aqui, dizem que vão ajeitar, mas é enxuga-gelo. Não há clareza sobre os reais proprietários desses areais. Às vezes, são duas ou três [empresas] explorando, mas a gente não sabe ao certo. Eles se sentem donos daqui. Não reflorestam", afirma Sônia.

Sônia, como uma das moradoras mais antigas da área, também se mostra apreensiva com o futuro do sítio arqueológico. Para ela, é preciso que os órgãos tomem providências urgentes.

"Eu vejo isso de suma importância para a nossa história, como amazonense, como brasileiros. É encontrada uma 'mina' dessa e ninguém dá importância! É um descaso das autoridades", afirmou ela, em relação à forma como o poder público está tratando a questão dos achados arqueológicos milenares naquela região do Amazonas.

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