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A arte olha para os ianomamis

O Globo, 2º Caderno, p. 10.
11 de Out de 2003

Fundação Cartier, em Paris, exibe obras contemporâneas inspiradas no mundo do povo indígena

Hervé Chandès, diretor da Fundação Cartier, em Paris, vai guardar na memória a imagem do índio ianomami Davi Kopenawa, em Paris, maravilhado diante de olhos humanos gigantescos projetados por vídeo em enormes bolas de resina. E, dentro dos olhos, estáticos, imagens que evocam o mundo dos ianomamis - uma obra que o nova-iorquino Tony Oursler produziu sem nunca ter encontrado antes um índio.

- Davi ficou fascinado com isso. Os olhos têm um papel muito importante na mitologia ianomami. E Davi reconheceu num dos olhos o primeiro sonho que teve quando fez sua iniciação no xamanismo, ritual indígena que faz baixar os espíritos dos anscestrais - diz.

Artistas foram à Amazônia para conhecer os índios

Oursler é um dos 12 artistas da exposição "Yanomami, o espírito da floresta", da Fundação Cartier para a Arte Contemporânea. A mostra é uma ousadia: não há uma peça de arte indígena exposta, nem cocar decorando salas. A exposição é o resultado de um confronto entre dois mundos diferentes: o dos artistas internacionais e o dos ianomamis da comunidade de Watoriki, na Amazônia. Os índios participaram do projeto explicando aos artistas seu mundo e seus ritos. Os artistas, então, partiram para o trabalho, com instalações de vídeo, fotografias, filmes, telas e esculturas.

Foram quatro anos de preparação e 25 viagens, que consumiram 450 mil euros. Alguns artistas nunca haviam ouvido falar nos ianomamis. Mas deu tão certo que a exposição, que acaba este fim de semana, deve seguir para o Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, ano que vem.

- Na sua ambição, é a exposição, de longe, mais importante da Fundação Cartier. A forma de abordar o mundo dos índios é nova. Não há um olhar dominador ou observador sobre eles, no sentido antropológico ou exótico. Os iananomamis são parceiros da exposição - conta Chandès.

O catálogo abre com um texto chamado "Pessoas de perto, pessoas de longe", do índio Davi Kopenawa. O sociólogo Claude Levi-Strauss "ficou fascinado" com o texto, diz Chandès. Davi diz que as pessoas "de perto" não querem saber dos ianomamis, destroem-nos, e nunca perguntaram como viviam seus ancestrais. Só as pessoas de longe querem conhecê-los e defendê-los. É, na realidade, uma mensagem nas entrelinhas para os brasileiros, que termina com um apelo dramático para que o mundo não deixe que os ianomamis desapareçam.

O diretor da Fundação planejava inicialmente fazer uma mostra do acervo fotográfico da brasileira Claudia Andujar, que se consagra aos ianomamis desde os anos 70. Quando veio a Paris discutir o seu trabalho, Claudia apresentou a Chandès o antropólogo francês Bruce Albert, que fala a língua dos ianomamis e se hospeda vários meses por ano nas comunidades indígenas, desde os anos 70. Das longas conversas entre Albert e Chandès surgiu o projeto. Albert contou que no mundo dos ianomamis as imagens não são materializadas, ficam no imaginário.

- Foi isso que me deu um clique. Nós, ao contrário dos ianomamis, estamos num mundo de imagens. Meu trabalho é mostrar as imagens. Eu pensei: como é possível um povo que vive sem imagem material? Eu não conhecia nada do mundo dos índios, mas, por intuição, achei que dava para trabalhar a idéia - conta Chandès.

Albert pôs os artistas em contato com Kopenawa, a quem ele conhece há 25 anos. Cinco dos 12 artistas envolvidos na mostra preferiram não ir à Amazônia, caso do nova-iorquino Toni Oursler, que trabalhou com desenhos e filmes dos ritos que lhe enviaram e do parisiense Vincent Beaurin, que criou "Enseignes", um trabalho colorido, brilhante.

A grande fonte de inspiração dos artistas foi o xamanismo. Os ianomamis xamãs cheiram um pó alucinógeno (yãkoana) para fazer baixar os "espíritos" dos seus ancestrais, que curam os doentes e afastam o mal. Os espíritos, segundo eles, têm a forma de humanóides minúsculos, são ornamentados com penas coloridas e só se movimentam em enormes espelhos, sem jamais tocar o solo.

A partir disso, o japonês Naoki Takizawa produziu uma grande instalação com espelhos, inspirado nos desenhos de crianças. Já o nova-iorquino Gary Hill, estrela do vídeo, entrou fundo na experiência: foi à Amazônia, tomou o pó e produziu um vídeo onde ele parece estar em transe. O alemão Wolfgang Staehle, um dos pioneiros da arte multimídia, também se embrenhou na mata amazônica e filmou num plano fixo a aldeia durante 24 horas. Quem entra na exposição vê a enorme imagem que parece parada, mas não está: é a aldeia, em tempo real. Raymond Depardon, um dos fundadores da agência fotográfica Magnum, produziu para a exposição filmes e fotos. O nova-iorquino Stephen Vitiello fez um trabalho com os sons da floresta e da aldeia.

"Uma resistência à uniformização do mundo"

Há três brasileiros na mostra: a fotógrafa Claudia Andujar, com um impressionante trabalho fotográfico; a artista Adriana Varejão, com cinco obras; e Rogério Duarte do Pateo, estudante de antropologia da Universidade de São Paulo, que filmou os diálogos cerimoniais dos índios. Para Chandés, é uma exposição engajada na causa da preservação dos índios:

- Os ianomamis são uma resistência à uniformização do mundo. Ajudando-os a escolher seu próprio destino, acho que estamos nos salvando.

A Fundação Cartier está também colocando dinheiro num projeto montado por ONGs e o Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento, em Paris, que vai criar uma base de dados, a partir de imagens de satélites, que permitirá aos ianomamis conhecer melhor o território onde vivem.

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