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A arte de devolver bichos ao mato

Marcos Sá Corrêa - http://marcossacorrea.com.br
Autor: Marcos Sá Corrêa
01 de Out de 2010

Bicho! Só pode vir de camadas profundas do cérebro humano, onde sobraram circuitos de caçadores ancestrais, a reação imediata de todos os sentidos ao primeiro sinal de que alguma coisa está fugindo às pressas de nosso caminho, quando se anda no mato.

No caso, era a velha trilha da represa, na verdade uma estrada antiga que a vegetação vai espremendo num corredor sinuoso entre árvores centenárias e, agora, com as copas rebrotando depois do inverno, consegue se manter sombria mesmo debaixo do sol a pino.

É um percurso tão batido que as primeiras deduções vêm sozinhas, sem necessidade de pensar. Fica, de cara, descartada a hipótese de ser a cutia do costume, que mora perto de casa e dispara com a nossa chegada como se não estivesse farta de ver gente. Sua toca ficou centenas de metros para trás.

Teiú também não era. Falta lugar para um lagarto aquecer o corpo no terreno sombreado. Sem contar que ele, arrastando um rabo maior do que o corpo, faz barulho demais na serapilheira para um animal de seu porte. O que se ouviu há menos de um segundo foi o ruído nas folhas de patas cautelosas mas ligeiras.

Gato? Não. Seria sorte demais topar com o menor felino que fosse, assim, sem mais nem menos, à luz do dia. Mas uma irara que viesse já valeria o desvio, como diz o guia Michelin das coisas que obrigam o turista digno do nome a mudar de roteiro.

Irara mesmo, na certa, porque alguns adiante acabou subitamente o farfalhar nas folhas e os ramos da vegetação rasteira começaram a se mexer, como se soprasse um foco de vento no ar parado. Tronco acima, na primeira forquilha ela estacou.

Dava para enxergar vagamente um retalho ou outro de seu vulto através da folhagem. Mas não chegavam a compor uma figura reconcível. Imóvel como estava, meio dissolvida no ambiente e sem mexer um músculo, era menos uma visão do que um pressentimento.

Certamente me olhava, de seu poleiro. Deve ter seguindo o braço que se esticava para trás, tateando silenciosamente na mochila a teleobjetiva. O gesto acabou acordando nas veias a memória de algum antepassado longínquo que se contorseu assim para catar a flecha na aldrava.

Em seguida, foi preciso achar, andando de lado, um passo, para, um passo, para, até tirar da frente os galhos que escondiam a presa. Foi aí que encarei o quati. Ou seja, o bicho que eu menos esperava. Aqui mesmo, no Iguaçu, já fotografei onças pintadas com menos adrenalina.

O quati é o tipo da espécie que se encontra a três por dois, atravessando em fila no meio do parque o asfalto da BR-469, enfiando-se em lixeiras como se fossem tocas de plástico verde ou subindo em mesa de lanchonete, para roubar comida. Em vão as placas no parque pedem para não alimentar quatis. Centenas de vezes por dia, a bordo dos ônibus que ligam os portões de entrada às Cataratas um discurso gravado repete, em três línguas, que os quatis são "selvagens" e podem transmitir sabe-se lá que doenças tropicais.

Ninguém dá a mínima para o aviso. Pudera. Nada mais parecido com um animal doméstico do que um quati de olho no seu prato. Outro dia mesmo topei com uma visitante argentiba que segurava a pata de um quati com a mão esquerda, para se fotografar a seu lado com o celular na mão direita. Trata-se de um desses animais que o excesso de convívio humanizou demais. Humanizou tanto, que o transformou numa caricatura de nós mesmos. Humanizado e caricato, vivendo na fronteira cinzenta da natureza com os vícios domésticos, o quati se torna uma criatura meio desprezível.

Já me peguei mais de uma vez esperando ele sair do enquadramento para fotografar o parque. Ou seja, limpando a realidade com métodos inspirados na censura stalinista. E agora estava ali, encarando o mesmíssimo animal com uma lenta pesada, ambos posando um para o outro como legítimo representante da vida primitiva e selvagem. A fotografia só saiu porque o dedo indicador aperta o botão da máquina por sua própria conta.

Era hipnotizante a transfiguração do quati em fauna nativa de pleno direito. Isso dias depois de fotografar, numa ponte metálica na margem argentina, o momento em que um bando de quatis deu de cara com uma parede humana de turistas e câmeras portáteis, todos esperando para clicá-los como roqueiros a caminho do palco.

Deve ser difícil ser quati com o mínimo de naturalidade num cenário desses. Tudo porque o bicho é capaz de tudo no chão ou em cima de uma árvore, mas não quer saber de entrar na água. E por isso não teve outro remédio senão agüentar o assédio até o fim, quando, um a um, assim que o primeiro deu o aviso de terra à vista, pulou de lado e sumiu no mato. Os quatis, naquele caso, estavam a um pequeno salto da dignidade.

Aquele, não. Talvez fosse o remanescente de uma ninhada que foi parar na barriga de um predador. Solitário, arredio e e decidido a pagar para não ver ou ser visto, quando o dispradador da câmera começou a sussurrar, ele escalou a árvore até os últimos galhos e desapareceu no dossel da foresta tropical.

Deixou para trás uma aula que espero seguir daqui para a frente. Dificilmente haverá hoje no mundo animal raro ou feroz que não tenha a vida íntima devassada em detalhes quase pornográficos pelas modernas técnicas de filmagem ou fotografia de natureza. Mas falta fotografia para mostrar que até o bicho mais banal também não é gente e que parque nacional, por mais que seja criado para divertir as pessoas,está longe de ser um mafuá.

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