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Aprendendo a desmatar

O Globo, Ciência, p. 41
Autor: LEITÃO, Míriam
08 de Jul de 2007

Aprendendo a desmatar
Corte programado e dentro da lei testa uma nova forma de explorar a Floresta Amazônica

Míriam Leitão

Quando a maçaranduba de 160 anos tombou e caiu no solo da Amazônia, foi uma cena tão dolorosa quanto a de qualquer outro corte de árvore. Houve um silêncio breve, estranho, logo após a queda; um líquido branco escorreu do tronco. Mas aquele corte foi programado, teve técnica para cair do lado menos danoso para a floresta, a árvore tem número, mapas orientam o corte, e o trabalhador, todo equipado, foi explicando passo a passo o processo de coleta, que tem auditagem internacional. A árvore caída será exportada como madeira certificada do Brasil e faz parte de uma minoria: apenas 7% da madeira extraída de área nativa são certificados.

O corte executado por Ariovaldo de Souza, com 12 anos de experiência, vai por etapas. O primeiro gesto é enfiar fundo a motosserra no tronco para saber se ela está oca e evitar cortá-la à toa. Depois, ele retira uma fatia do tronco para melhor direcionar a queda; por fim, o corte circular.
Antes de concluir, uma breve pausa para definir o que eles chamam de "ponto de fuga", para onde vão todos no momento em que ela tomba.

Gostar de botar uma árvore no chão ninguém gosta, mas desse jeito dói menos - diz Ariovaldo.

Na verdade, muita gente no Brasil deve gostar de ver árvore no chão; do contrário, o país não estaria desmatando 1,4 milhão de hectares por ano. Pior: é desmatamento feito da forma mais estúpida.

- Da madeira retirada de floresta natural do Brasil, 95% saem da Amazônia e, desses, pelo menos 60% são retirados ilegalmente conta Tasso Azevedo, diretor do Serviço Florestal Brasileiro.

Mesmo na extração supostamente legal, há muita coisa errada, como plano de manejo não seguido e autorizações fraudulentas. O normal na Amazônia é ser tudo ilegal: grilagem de terra para retirar algumas espécies mais valiosas e fogo ateado ao resto. O Brasil, literalmente, queima dinheiro e biodiversidade.

O corte foi acompanhado por visitantes, funcionários do Ministério das Florestas da Indonésia, que foram até a fazenda Cauaxi em Paragominas (PA) para conhecer tentativas de exploração da floresta, mantendo-a de pé. O Brasil não sabe proteger sua floresta, mas a Indonésia está perdendo a dela mais rapidamente.

Operação planejada fica mais barata
A Cauaxi é uma das unidades das fazendas do grupo Cikel. Lá funciona também o Instituto Floresta Tropical, um centro de treinamento para o manejo florestal. O diretor executivo do IFT é Johan Zweed, um holandês nascido na Indonésia, que veio para o Brasil a primeira vez em 1965. Alto, roupa caqui, sem medo de entrar na mata com sapato furado, Johan sabe o nome de cada árvore e comandou todas as explicações sobre métodos e processos do manejo florestal:
- A operação na mata fica mais barata com planejamento, os trabalhadores já saem com o mapa, sabem o que cortar. Não existe desperdício nem árvores abandonadas. É preciso ver o custo/benefício de se fazer o manejo da forma certa.

Os visitantes foram a áreas diferentes para comparar a recuperação após o corte convencional e o manejo com planejamento. Não precisava ser especialista para perceber que uma estava claramente mais deteriorada, e a outra mais recomposta.

Na área do corte convencional, tinha sido feito o plano de manejo, mas ele não foi seguido. Não era ilegal, apenas sem a técnica adequada.

Lá havia vários sinais da irracionalidade: troncos abandonados, inclusive de madeira nobre, como jatobá.
- Eles cortam e depois descobrem que não é essa que queriam, ou não sabem como tirar da floresta. As árvores caem derrubando outras, destruindo mata ciliar, secando igarapés - explicou Tasso.
No manejo com certificação tudo tem que ser seguido corretamente.
Cortam-se, no máximo, três a quatro árvores por hectare e só se pode voltar naquele mesmo local em 25 anos.

Antes é feito o inventário e todas as árvores são numeradas. Depois do corte, uma equipe planeja o trajeto para arrastar a árvore cortada antes que um trator com enormes garras possa entrar na mata. Mas quem garante que é feito assim?

- A empresa certificadora é a garantia. Estamos sob a melhor certificação internacional, a FSC. Eles, de propósito, não avisam quando chegam. Posso receber agora um telefonema deles dizendo que chegam hoje e querem ver exatamente a árvore número tal - explicou Wandréia Baitz, diretora de meio ambiente da Cikel, com doutorado na Universidade de Dresdner.

- No Brasil, não há muita diferença de preço entre a madeira certificada e ilegal, mas no exterior há. Holanda, Alemanha e Inglaterra pagam bem mais por ela - explica Johan.

Na exportação, a diferença de preço entre a certificada e a legal sem certificação, chega a 30%. Para fazer o manejo correto e ter certificação, o primeiro passo é responder a pergunta mais difícil na Amazônia: o documento de propriedade é legal?
A Cikel tem título de propriedade de terra comprado do Bradesco num leilão. O banco tinha ido para lá na época em que o governo militar dava incentivos para desmatar. A terra tinha 142 mil hectares de mata e 20 mil de pasto. O presidente da empresa, Manoel Pereira Dias, discreto, de fala mansa, vestido com elegância casual, não lembra em nada o estereótipo do madeireiro.

Somos madeireiros, e não pecuaristas - diz Manoel.

Tecnologia aumenta a produtividade
Ao todo, a Cikel tem hoje 463 mil hectares. Em 1.700 deles, está plantando paricá e mogno africano. O plano é ocupar o pasto com o replantio, em algumas partes, para exploração comercial. Novas tecnologias estão aumentando a produtividade:
- Normalmente, tira-se o tronco e os galhos ficam. Descobrimos que, se retirarmos parte da galhada, temos muito mais madeira para todos os fins, e a floresta se recupera mais rapidamente - diz Manoel.

Concessões para tentar reduzir a ilegalidade

Na Amazônia, é tão fácil se perder no meio de suas árvores quanto no cipoal de títulos de propriedade produzidos pelas várias técnicas de falsificação, grilagem e roubo de terra. Há 14 tipos de títulos no imenso mercado informal de destruição da floresta. O governo acha que pode organizar esse caos, e lança nos próximos dias o plano anual de outorgas, primeiro passo para licitar áreas de concessão da floresta.

- Entre outubro e dezembro faremos a primeira licitação, que não deve ultrapassar 500 mil hectares; são 10% da área possível. O programa deve atingir só 3% da área pública de florestas - diz Tasso Azevedo.

Já se tem certeza de que 75% são terras públicas na Amazônia; 25% podem ser privadas, dependendo de verificar a legalidade dos títulos.

O leilão é gratuito. Quem ganha paga o edital. O vencedor recebe a concessão, faz o plano de manejo, retira os produtos, vende e paga a taxa ao governo. O governo espera arrecadar R$ 8 milhões/ano, mas o objetivo é substituir a oferta ilegal de madeira, que hoje atende a 60% da demanda. A indústria consome hoje 25 milhões de m³ por ano, sendo 35% disso exportados. Outros 15 milhões de m³ são consumidos em carvão.

O mercado para o produto legal deve aumentar pela MP que exige que toda a demanda pública de madeira seja atendida por madeira plantada ou de manejo florestal.

Mas isso depende da fiscalização. Há locais em que foi um fracasso, como no sudeste da Ásia. Não adianta ter boas leis, quando a lei na prática é outra coisa - diz Johan Zweed.

Mas há quem duvide até que seja possível fazer manejo sustentável. Miguel Milano, da Avina, é contra:
- O manejo é melhor que a barbárie, mas ele pode dar certo nas florestas temperadas e frias. Nas tropicais, com tanta diversidade, o risco é maior. Em cada hectare da Amazônia, pode haver de 300 a 400 espécies florestais.

O estrago pode ser imenso.

O Globo, 08/07/2007, Ciência, p. 41

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