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Após 32 anos, trens voltarão à Madeira-Mamoré

OESP, Cidades, p.C8
10 de Jul de 2004

Após 32 anos, trens voltarão à Madeira-Mamoré
Até o ano que vem, 8 dos 366 quilômetros da estrada de ferro devem ser recuperados

Nilton Salina
Especial para o Estado

Desativada há 32 anos, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) deve voltar a funcionar no ano que vem. Entre os apelidos que ganhou, o mais conhecido é Ferrovia do Diabo, porque cada dormente da linha corresponderia à vida de um trabalhador. Realmente, sabe-se que centenas de operários morreram para que fossem assentados 366 quilômetros de trilhos ligando Porto Velho a Guajará-Mirim, na fronteira com a Bolívia.
Segundo registros do Hospital da Candelária, criado para tratar de funcionários da ferrovia, 1.593 pessoas morreram na obra de 1907 a 1912. Não há registro dos que tiveram de ser enterrados na floresta nem dos que não conseguiram deixar a selva em duas tentativas anteriores de construir a Madeira-Mamoré, quando não havia hospital.
Para rasgar a selva era preciso enfrentar índios, cachoeiras e o rigoroso inverno amazônico, marcado por fortes temporais. Mas os inimigos mais letais eram bem pequenos: os mosquitos transmissores da malária e da febre amarela.
As doenças tropicais mataram trabalhadores vindos de países como Estados Unidos, Inglaterra, Dinamarca, França, Alemanha, China, Portugal, Índia e também do Caribe e Oriente Médio, além de Estados brasileiros, principalmente do Nordeste.
A primeira tentativa de construir a Madeira-Mamoré foi em 1872. O coronel americano George Church calculou que concluiria a obra, com uma companhia inglesa, em dois anos. Acabou desistindo, sem conseguir assentar nem mesmo 1 quilômetro de trilhos.
Em 1879 foi a vez do empresário americano Thomas Collins, que também fracassou. O trilhos assentados durante o dia eram arrancados à noite pelos índios. Ele abandonou máquinas na floresta e voltou para casa falido, com malária e ferido pelos indígenas.
O homem só começou a vencer a selva em 1907, quando o também americano Percival Farquhar decidiu levar o projeto adiante. O sanitarista Oswaldo Cruz ajudou a implantar uma estrutura no local para tratar os doentes.
O Brasil precisava construir a ferrovia o mais rápido possível, por causa do Tratado de Petrópolis, recém-assinado com a Bolívia. O país havia cedido ao Brasil uma área onde hoje é o Estado do Acre e como indenização exigiu um meio de acesso ao Oceano Atlântico, que seria a estrada de ferro.
A obra ficou pronta em 1912. Não há como calcular quanto foi gasto na construção, porque além do que foi perdido na floresta, muitos barcos com equipamentos naufragaram no Rio Madeira, o maior afluente da margem esquerda do Rio Amazonas. A Madeira-Mamoré também ficou conhecida como a Ferrovia dos Trilhos de Ouro.
Primeiro mundo - Na época, Porto Velho, cidade construída por causa da EFMM, podia ser considerada de primeiro mundo. Era uma das poucas da América Latina com água encanada, energia elétrica, fábrica de gelo e dois jornais editados em inglês, o Porto Velho Times e o Porto Velho Courrier.
Quando o marechal Cândido Rondon chegou com os postes do telégrafo, em 1914, na Madeira-Mamoré já havia telégrafo sem fio. O Hospital da Candelária tinha 300 leitos.
Ironicamente, a estrada de ferro nasceu condenada à morte. Justamente em 1912, a exportação de borracha da Ásia superou a da Amazônia. Quando participaram da tentativa de construção da ferrovia, no século 19, os ingleses levaram sementes de seringueira para suas colônias. Como o preço da borracha caiu no mercado internacional, a linha ficou inviável.
Em 1968, os problemas financeiros se agravaram, com a conclusão da estrada ligando Porto Velho a Guajará-Mirim, hoje BR-425, praticamente acompanhando o leito da ferrovia. A Madeira-Mamoré acabou sendo desativada em 1972.
Vagões, locomotivas e oficinas foram jogadas no Rio Madeira.
O que restou do patrimônio da EFMM foi se deteriorando. Hoje, em Porto Velho, trilhos roubados são utilizados em construções. Dormentes e sinos servem de adornos e a caldeira de uma locomotiva foi transformada em lata de lixo.
A alguns quilômetros da cidade, no lugar conhecido como o cemitério das locomotivas, as máquinas, irrecuperáveis, estão tomadas pelo mato. Em Jaci-Paraná, a 90 quilômetros de Porto Velho, uma cadeia feita de trilhos, usada na época da construção da ferrovia, virou galinheiro.
Preservação - A Associação dos Amigos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, fundada em 1979 pelo arquiteto Luiz Leite, de 53 anos, conseguiu preservar alguma coisa na antiga estação às margens do Rio Madeira, onde há uma praça. Voluntários cobravam R$ 1,00 pelo estacionamento e conseguiram recuperar a locomotiva 18.
Na luta para manter o que restou da ferrovia, Leite responde a vários processos, por criticar o descaso das autoridades. Também sofreu ameaças porque protestou contra uma associação de moradores que organizou uma festa junina no galpão onde funcionava a oficina da EFMM. Havia motivo para protestar. Muitas peças de locomotiva e outros equipamentos foram roubados ao longo dos anos e no espaço estavam guardadas máquinas restauradas.
O arquiteto elaborou um projeto para recuperação da ferrovia e conseguiu que fosse aprovado pelo governo do Estado. Mas, segundo o secretário de Cultura, Luiz Carlos Venceslau, para iniciar as atividades, é preciso que o patrimônio da EFMM seja repassado para o Estado, processo que deve terminar até o fim deste ano.
O Ministério dos Transportes mantém uma equipe em Rondônia para transferir o patrimônio da ferrovia para o Estado e já existem empresas que se comprometeram em doar parte do dinheiro necessário para iniciar a reativação.
A previsão é que sejam gastos R$ 20 milhões para que as locomotivas circulem em 8 dos 366 quilômetros da ferrovia. A Secretaria de Cultura tem em caixa R$ 600 mil, repassados pelo Ministério do Turismo, mas acertou com o Serviço Social do Comércio (Sesc) a doação de mais R$ 15 milhões.
A contrapartida ao Sesc será a doação de uma área a 22 quilômetros de Porto Velho para a instalação de uma sede campestre, perto dos trilhos. O combinado é que posteriormente sejam recuperados mais 14 quilômetros de via férrea, para que o trem possa chegar até a sede.
Paralelamente, no Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) tramita o processo de tombamento da Madeira-Mamoré. É a garantia de que não haverá alterações no projeto original da ferrovia.

Minissérie vai contar história da ferrovia
Enquanto avança o projeto de recuperação de parte da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), a Rede Globo adianta os trabalhos para a gravação de uma minissérie contando a história da ferrovia. Deverá se chamar Mad Maria, título do livro de Márcio Souza, de 57 anos, morador de Manaus, que relata a saga da EFMM.
O livro foi lançado em 1980 e vendeu 40 mil exemplares no Brasil. Traduzido para diversos idiomas, chegou a 1 milhão de exemplares vendidos, principalmente, em inglês e alemão. A pesquisa não foi fácil, porque os arquivos da estrada de ferro haviam sido queimados pelo 5.o Batalhão de Engenharia de Construção, que em 1966 assumiu a administração da linha de ferro.
"Tive de consultar arquivos de bibliotecas de Londres e Paris sobre ferrovias construídas em áreas tropicais semelhantes à Madeira-Mamoré. O que mais me impressionou foi o descaso com a história. Os dirigentes dos Estados recém-criados vêm de fora e não querem saber da cultura", afirmou Souza.
O escritor, que vendeu os direitos autorais de Mad Maria para a Rede Globo, explicou que em Porto Velho serão rodadas cenas somente na Cachoeira de Santo Antônio. "A Globo me informou que é impossível filmar na ferrovia, porque não houve conservação. Cenários terão de ser recriados a partir do arquivo fotográfico da Madeira-Mamoré."
Souza acredita que seria melhor que o Ministério dos Transportes repassasse o patrimônio da ferrovia para a Associação dos Amigos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. "Pessoas que conhecem a importância do patrimônio histórico podem zelar melhor por ele."
A minissérie, de 35 capítulos, irá ao ar no que vem. Para o autor, Benedito Ruy Barbosa, a história da ferrovia é a saga de um projeto que nunca deu certo. "É uma verdadeira epopéia. Uma grande história que vale a pena ser contada."
Segundo Benedito, o roteiro está pronto há 15 anos e quando ele o escreveu chegou a entrevistar pessoas que trabalharam no ferrovia. A minissérie fará parte das comemorações dos 40 anos da Rede Globo e tem estréia prevista para março. (Nilton Salina e Natália Zonta)

OESP, 10/07/2004, Cidades, p. C8

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