VOLTAR

Após 25 anos, Tocantins se divide entre safra recorde e miséria da população

OESP, Economia, p. B1, B3
28 de Abr de 2013

Após 25 anos, Tocantins se divide entre safra recorde e miséria da população

LEONENCIO NOSSA
ENVIADO ESPECIAL

É tempo de silos cheios no Tocantins. A safra recorde de soja, porém, só traz para dentro das casas de palha a poeira do tráfego intenso de carretas duplas, tratores suecos e caminhonetes de luxo nas estradas de terra que cortam o horizonte que parece colar no céu de azul intenso.
Um quarto de século depois de sua criação, o Estado mais novo do País acumula profundas desigualdades econômicas. A fome e a anemia de crianças e adultos contrastam com a potência das colheitadeiras de última geração dos parceiros das gigantes Algar, Bunge e Cargill. A mortalidade infantil aumenta no ritmo da expansão da área agrícola na planície avermelhada.
O Estado foi criado na Constituinte de 1988 por esforço pessoal do deputado federal José Wilson Siqueira Campos, um ex-mascate e seringueiro que migrou do sertão cearense para o Norte de Goiás e, ainda no tempo da Arena, na ditadura militar, iniciou uma campanha com greves de fome para desmembrar a região.
Tocantins não conseguiu transferir para a população parte da riqueza dos grãos que avançam sem percalços o cerrado e chapadas. Nas cidades do Estado, o porcentual de pessoas na pobreza e na indigência ultrapassa 60%. Inspirado na ideia do projeto de Brasília, Tocantins só pode ser comparada com o Distrito Federal na gastança de dinheiro público. Não acompanhou o avanço dos índices sociais do restante do Brasil, vive uma realidade semelhante à do vizinho Maranhão e cumpriu apenas o objetivo de sua instalação: servir de feudo para um grupo que gira em torno de Siqueira.
Dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) mostram um crescimento "chinês" na produção tocantinense da oleaginosa exportada em sua maior parte para o gigante asiático: a safra 2012/2013 terá um aumento de 21,2% na colheita, atingindo 1,68 milhão de toneladas.
O casal Raimunda Batista, 38 anos, e Pedro Gomes, 40, sai todas as manhãs para capinar nas fazendas ainda não tomadas pelas "moscas gigantes de aço" - as modernas colheitadeiras - que reviram a terra, plantam e colhem sem precisar de enxadas. No horário do almoço, Raimunda volta para ver os oito filhos que passam o dia nas redes encardidas da casa de palha, sem energia elétrica e água encanada. Ela e o marido criam os filhos com R$ 150 do trabalho mensal na lavoura e R$ 250 do programa de transferência de renda Bolsa Família.
"Tenho fé em Deus que venço essa batalha", diz Raimunda, enquanto as crianças comem arroz com um caldo de carne em potes de margarina. A família mora em Palmeirante, um dos 79 municípios criados no Tocantins desde que o antigo Norte de Goiás foi desmembrado na Constituinte de 1988. O centro do município, formado por casas de barro e palha, fica entre uma área de eucaliptos e um campo de soja.
Tocantins não pode se queixar de repasses de verbas federais nem de controle dos órgãos de Brasília na aplicação do dinheiro. O Estado foi o quinto que mais recebeu recursos no ano passado. Os fundos de participação dos municípios e dos Estados garantiram R$ 3.400 por habitante. É o dobro do valor recebido por Estados do Norte e Nordeste, como Pará e Pernambuco, que receberam R$ 1.500 cada. Na Constituinte de 1988, uma manobra política incluiu Tocantins na região Norte, o que garantiu ao Estado privilégio na distribuição de dinheiro da União. Mas não passa de 15.o no ranking nacional de qualidade de vida.
Transferências. Neste ano, Tocantins, com um milhão e trezentos mil habitantes, recebeu R$ 241 milhões dos fundos de Participação dos Estados e Municípios. Piauí, com dois milhões a mais de moradores, recebeu R$ 229 milhões. Em Barra do Ouro, outro município criado após o desmembramento, a agricultora e comerciante Eriane Ribeiro de Oliveira, 56 anos, afirma que o dinheiro federal fica no ralo da burocracia e da corrupção.
"O governo manda dinheiro demais, mas não chega para quem precisa", diz. "Um dia apareceu um deputado aqui, disse que ia mandar um trator para ajudar nas plantações das pessoas necessitadas. Eu falei para ele: 'Não precisa mandar, porque a máquina vai direto para a fazenda de quem não carece da ajuda'."
Em Palmeirante, o lavrador Santana Fonseca Chaves, 41 anos e aparência de uma pessoa de mais idade, diz que o dinheiro do Bolsa Família recebido pela mulher Maria José, 38, não é suficiente para manter os oito filhos na escola. "Antes (da criação do Tocantins) era tudo do jeito que está agora", afirma. "Às vezes aparece uma novidade, mas continua a mesma coisa", ressalta. Dois de seus filhos sofrem problemas mentais.

Campos Lindos é fruto da megalomania do governador
Cidade que homenageia Siqueira Campos no nome depende exclusivamente dos repasses do Fundo de Participação dos Municípios

CAMPOS LINDOS (TO)

O município de Campos Lindos, a quase quinhentos quilômetros de Palmas, nasceu da visão megalomaníaca e da astúcia política do governador Siqueira Campos. Nos anos 1990, ele desapropriou em Goiatins uma área dez vezes maior que o território do município da cidade de São Paulo e distribuiu entre empresários que financiavam suas campanhas e até amigos do Congresso.
Em pouco tempo, os especuladores que não entendiam do ramo venderam os lotes para produtores de soja do Rio Grande do Sul e empresas multinacionais. Hoje a "Siqueilândia" é responsável por maior parte da safra recorde de 2,6 milhões de toneladas de grãos que Tocantins espera colher neste ano.
A poucos quilômetros do polo de produção, Siqueira planejou uma cidade para abrigar a sede do novo município, desmembrado de Goiatins. A cidade foi batizada com o sobrenome do governador - "Campos" Lindos - e avenidas com mais de 50 metros de largura e amplas áreas verdes. É uma Brasília que não saiu dos alicerces. A imagem de uma grande aldeia indígena formada por palhoças prevalece diante de qualquer tentativa urbanística.
A melancolia convive com o movimento frenético das carretas que transportam soja. A modernidade não chegou às casas. Em Campos Lindos, 55,2% das famílias são pobres ou indigentes. A cada mil crianças de até cinco anos, 29 morrem.
Hoje, a cidade de dez mil moradores depende exclusivamente dos repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e de serviços oferecidos aos caminhoneiros das carretas. Campos Lindos e outros produtores de soja servem como cidades dormitório. A prefeitura afirma que não recebe compensações pelas perdas de tributos estabelecidas pela Lei Kandir, que desonerou as exportações. "O problema aqui é tributário", diz o secretário municipal de Saúde, Eliakim Ferreira Mendonça.
Na cidade, só um médico atende os moradores. Campos Lindos gasta R$ 160 mil por mês em saúde, diz o secretário. A Unidade Básica de Saúde do município não faz operações e partos. Para agravar a situação, o vizinho é o Maranhão, da família Sarney. Uma parcela significativa das pessoas que procuram o posto médico vem das cidades maranhenses do outro lado do rio Manoel Alves.
O que não pode falhar em Campos Lindos é a ambulância da prefeitura, que leva os pacientes em estado grave para cidades maiores. / L.N.

Famílias enfrentam dramas do século 19
Mesmo nas regiões produtoras de soja de Tocantins, população mora em casas de folhas de palmeira e usa lamparinas a diesel para ter iluminação

LEONENCIO NOSSA, ENVIADO ESPECIAL, BARRA DO OURO (TO)

Quem entra nas vicinais da Belém-Brasília encontra cenas que surpreenderam viajantes dos sertões goianos nos séculos 18 e 19. A pujança da soja no Tocantins contrasta com imagens de mulheres com bócio - aumento da tireoide provocado pela falta de iodo -, crianças desnutridas, famílias em casas de paredes e coberturas de folhas de palmeiras. Em tempo de colheitadeiras equipadas com conjuntos de faróis potentes para trabalhar à noite, a lamparina continua sendo recurso muito útil no Tocantins do século 21. Assim como as fossas nos terreiros e as moringas de barro.
Antônia Rodrigues de Azevedo, 65 anos, os dois filhos Francisco e Francélio e três netos menores formam uma das últimas famílias que resistiram à chegada de produtores de soja em Barra do Ouro. A terra deles, porém, é arenosa, não produz como em outras áreas.
Nem sempre tem comida nas panelas sobre o fogão à lenha. "Hoje resolvi matar a galinha que comprei para dar pintinhos. Não tinha outro jeito. As crianças estavam chorando demais", conta Antônia. "Eu tento entreter os meninos com farinha de mandioca que planto, mas não é todo dia que consigo." Francisco, filho de Antônia, sofre de epilepsia. O irmão Francélio trabalha numa fazenda a 6 quilômetros. Ele ganha R$ 30 de diária. É o dinheiro de que a família dispõe para as refeições e a compra de diesel para abastecer as lamparinas. No ano passado, o governo estendeu os fios de energia elétrica até a casa de palha e barro da família.
Problemas frequentes no sistema, porém, tornam a eletricidade algo raro. "Em Araguaína, a diária é bem melhor. Lá, eles pagam R$ 40. Mas não tenho condições de levar minha mãe, meu irmão e meus filhos."
Apartheid caboclo. Quando o Estado chega com o "progresso" é dor de cabeça na certa para a população pobre. As obras da barragem da usina hidrelétrica de Estreito, na divisa com o Maranhão, têm tirado o sono dos que moram em casas de palha e barro nas cidades do interior do Tocantins. Em Palmeirante, Jocinézia da Silva Borges, 26, mostra rachaduras na sua residência. Ela conta que, de uns tempos para cá, o chão de terra, comum nas residências da região, ficou úmido, o que trouxe problemas de saúde para os filhos. "A casa começou a ruir desde que começaram o serviço no Estreito", relata. Inundações passaram a virar rotina no Mangal, área mais pobre de Palmeirante. Jocinéia recebe um salário mínimo da pensão da filha Alice Vitória, que teve paralisia infantil.
O mito de novo celeiro e Estado que deu certo não é visível nem nas cidades produtoras de soja. Barra do Ouro, Esperantina e Goiatins não acompanham os bons índices de qualidade de vida de cidades plantadoras de regiões emergentes de outros Estados e que tentaram sem sucesso se emancipar no passado. Dos 169 municípios tocantinenses, apenas três apresentam menos de 10% da população abaixo da linha de pobreza - Paraíso do Tocantins, Gurupi e Palmas.

Capital não tem indústria nem comércio fortes

PALMAS (TO) - O Estado de S.Paulo

A capital planejada do Tocantins, na beira da represa do Lageado, é uma ilha da fantasia financiada por dinheiro federal. A cidade que concentra a maior parte do dinheiro repassado ao Estado tem infraestrutura, mas não tem comércio, serviços ou atraiu indústrias fortes. Da manteiga ao sabão, quase tudo que é consumido na capital vem de Goiânia e Brasília. Mais da metade das famílias vive de empregos diretos do poder público.
A cidade ajuda a elevar os índices numa área sensível. O Estado está em 12.o lugar no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), à frente de Bahia, Maranhão, Pará e Piauí. De 0 a 10, os estudantes do Tocantins tiraram nota 4,9 em 2011. É a maior nota do Norte.
Palmas é criação do governador tucano José Wilson Siqueira Campos, 84 anos, que está no quarto mandato. Em 1988, ele negociou com Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Mario Covas e José Serra a criação do Estado em troca de apoio a propostas do grupo. O Triângulo Mineiro, o Nortão de Mato Grosso e o Sul da Bahia não conseguiram se desmembrar. No comando de cada prefeitura, ele emplacou aliados. Mas cidades projetadas viraram dormitórios, que vivem do dinheiro de caminhoneiros.
O então norte goiano, maior que o Uruguai, passou de 60 municípios para 139. A ideia era chegar a 146, mas novas leis impediram. A elite econômica mora longe de Tocantins e os pobres, bem perto de silos de grãos, pátios tomados por bags - depósitos improvisados de soja - e pastos de pecuária.
Nas eleições de 2010, Siqueira Campos derrotou o então governador Carlos Henrique Gaguim, do PMDB, por diferença de sete mil votos apenas. Enfrentou um adversário apoiado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A oposição estava fragilizada por denúncias. O ex-aliado Marcelo Miranda, do PMDB, teve o mandato de governador cassado em 2009. E o ex-prefeito de Palmas Raul Filho (PT) sofreu denúncia de envolvimento com esquema de corrupção./ L.N.

Secretário defende royalty de energia para resolver gargalos

PALMAS (TO) - O Estado de S.Paulo

O secretário de Relações Institucionais do Tocantins, Eduardo Siqueira Campos, filho do governador, afirma que os gargalos sociais poderiam ser resolvidos se o Estado recebesse royalties da energia que produz em sua bacia hidrográfica. Ele discorda que Tocantins é uma unidade da federação bancada pelo contribuinte brasileiro. "Se o Tocantins recebesse royalties pela energia que produz para São Paulo e outras cidades do Sudeste, não estaríamos sendo subsidiados por ninguém", diz.
Ele põe a culpa nos opositores por mazelas que ainda fazem parte do cotidiano do Estado. "Se fizer a conta certinha, nos 25 anos do Tocantins, governamos 12 anos e a oposição outros 12. Fomos nós que fizemos as escolas, as estradas e os hospitais e eles deixaram rombos", afirma.
Pelos números apresentados pelo secretário, Tocantins antes do desmembramento de Goiás tinha 68% de analfabetos; hoje são 14,3%. Ele diz que os números da educação e outros dados sociais colocam o Estado à frente dos vizinhos Maranhão, Mato Grosso, Piauí e Bahia. "A independência trouxe cidadania", diz.
"Eu penso que estamos fazendo algo de diferente. A divisão é um caso de sucesso." Ao comentar os problemas sociais da região de soja do Estado, ele diz que a área é um "gargalo". E observa que o Estado não é compensado pela União pelas desonerações.
"A saída de grãos in natura, a exportação de produto sem valor agregado, é crime de lesa pátria para nós", diz. O caminho, segundo o secretário, seria investimentos em indústrias no setor. "É preciso que o Brasil tenha um projeto de país, de nação, e não apenas a União arrecadando e não repassando os tributos." Na entrevista, o secretário citou obras de construção de estradas na região da soja como alternativa para acabar com a miséria. / L.N.

OESP, 28/04/2013, Economia, p. B1, B3

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,apos-25-anos-tocantins-se-d…

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,campos-lindos-e--fruto-da-m…
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,familias-enfrentam-dramas-d…
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,capital-nao-tem-industria-n…
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,secretario-defende--royalty…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.